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brasil
Como STF pode regular plataformas digitais após impasse no PL das Fake News
O Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar nesta semana quatro ações com impacto sobre plataformas digitais, como redes sociais e aplicativos de troca de mensagens. O tema ganhou urgência devido à percepção de parte da sociedade de que é preciso adotar regras mais rígidas sobre esse setor para evitar a circulação de conteúdo criminoso nas redes, como mensagens que incentivem assassinatos em escolas ou ataques contra o sistema democrático. Mas a questão divide a opinião pública — também há temor de que novas regras adotadas pelo Congresso ou pelo Supremo acabem limitando a liberdade de expressão. Grandes plataformas como Google (dona do YouTube), Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp), Telegram e Twitter usam esse argumento para se opor às mudanças, que podem aumentar seus custos operacionais e o risco de punições, como multas elevadas caso não cumpram novas regras. Fim do Matérias recomendadas Algumas empresas têm, inclusive, usado suas plataformas para divulgar mensagens contra o PL das Fake News, o que levou o ministro do STF Alexandre de Moraes a determinar na sexta-feira (12/5) a abertura de um inquérito para investigar diretores do Google e do Telegram por suposta campanha abusiva contra o projeto de lei. Duas ações abordam a possibilidade de aumentar a responsabilidade das empresas sobre moderação de conteúdo, o que pode significar mais remoção de postagens e contas, caso tenham teor criminoso. As outras duas tratam da possibilidade de suspensão de aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram em todo o país devido ao não cumprimento de decisão judicial. Embora a análise das quatro esteja prevista para esta quarta-feira, existe a possibilidade de adiamento caso outro processo se alongue. No mesmo dia, o STF retoma uma ação penal que pode resultar na condenação e prisão do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O julgamento começou na semana passada e foi suspenso ainda em seu início. Entenda a seguir em quatro pontos o que está em jogo para as plataformas digitais no STF. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As quatro ações questionam a constitucionalidade de trechos do Marco Civil da Internet — ou seja, se trechos dessa lei estariam em desacordo com princípios da Constituição e, por isso, devem ter sua aplicação alterada pelo STF. Duas delas discutem a validade do artigo 19, que estabelece que as plataformas digitais não podem ser responsabilizadas por conteúdos compartilhados pelos usuários, com exceção dos casos de "pornografia de vingança" (divulgação de imagens de nudez sem autorização da pessoa fotografada/filmada). Ou seja, o artigo 19 significa que as empresas, na maioria dos casos, só são obrigadas a apagar postagens após ordem judicial. As duas ações em julgamento tratam de casos concretos, mas a decisão terá repercussão geral, ou seja, fixará parâmetros gerais para o funcionamento das plataformas. Num dos casos julgados, uma professora processou o Google porque a empresa se recusou a apagar uma comunidade contra ela criada por alunos no Orkut, rede social que já não existe mais. A professora chegou a notificar extrajudicialmente a plataforma solicitando a exclusão da página antes de ingressar na Justiça, mas não foi atendida. No outro caso em análise, uma mulher processou o Facebook (rede social do grupo Meta) por se recusar a apagar um perfil falso criado com seu nome para divulgar conteúdo ofensivo. As duas empresas argumentaram que não poderiam apagar conteúdos sem decisão judicial, sob risco de ferir a liberdade de expressão. "Ser obrigação dos provedores de aplicações na internet as tarefas de analisar e excluir conteúdo gerado por terceiros, sem prévia análise pela autoridade judiciária competente, acaba por impor que empresas privadas — como o Facebook Brasil e tantas outras — passem a controlar, censurar e restringir a comunicação de milhares de pessoas, em flagrante contrariedade àquilo estabelecido pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da Internet", argumentou o Facebook na ação. Em argumentação semelhante, a Google sustenta que não tem obrigação de indenizar a professora por não ter removido a comunidade no Orkut antes de uma determinação judicial: "Não sendo a Google possuidora do poder jurisdicional do Estado e não havendo qualquer conteúdo manifestamente ilícito no perfil objeto da lide, não se poderia esperar outra atitude sua do que aguardar o posicionamento do Poder Judiciário", disse a empresa. A professora que processou a rede social, por sua vez, argumentou ao STF que "admitir as razões da Recorrente (Google) seria correr o risco de se fazer da internet uma terra sem lei, onde anonimamente, invocando a liberdade de expressão e o direito de comunicação, praticar-se-á todo tipo de ato e crime sem vigilância, consequência ou punição alguma". Alguns ministros do STF já defenderam publicamente a necessidade de maior regulação do meio digital, como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes. Juristas especialistas em direito digital ouvidos pela reportagem acreditam que o STF vai ampliar a possibilidade de responsabilização das empresas em caso de conteúdos criminosos compartilhados em suas plataformas. Se isso ocorrer, a expectativa é que a Corte estabeleça uma nova interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet "conforme a Constituição" — ou seja, uma nova aplicação da lei que estaria mais adequada à conciliação de preceitos constitucionais como a inviolabilidade da honra e da imagem dos indivíduos e os direitos à liberdade de expressão e de livre comunicação. Embora concordem que esse parece o caminho mais provável, os juristas ouvidos discordam se ele seria o mais correto. Para o advogado Francisco Cruz, diretor do InternetLab, o tema deveria ser decidido no Congresso Nacional, com amplo debate e participação da sociedade. Na sua visão, o atraso da votação do PL das Fake News e os apelos de parte da sociedade por uma regulação urgente das plataformas não deveria justificar uma atuação do STF. "Quem deve se mover por clamor social é o Congresso. Quanto mais a gente transfere para o Supremo, essa responsabilidade, mais a gente vai estar colocando água no moinho da fragilização do Supremo e da sua legitimidade", acredita. Cruz nota que o Marco Civil da Internet determina que as empresas armazenem informações sobre os perfis que atuam em suas plataformas, permitindo que autores de discursos criminosos sejam identificados e punidos após investigações. Por isso, na sua visão, a atual aplicação do artigo 19 é compatível com os direitos à imagem e à honra e não deveria ser considerado inconstitucional. Já a advogada Patrícia Peck, membro titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD), não considera que o STF estaria usurpando uma competência do Congresso, caso mude a aplicação atual do artigo 19. Como o meio digital mudou muito desde que o Marco Civil foi aprovado, em 2014, ela diz que é necessária uma atualização rápida da lei. Nesse sentido, Peck argumenta que a decisão do Supremo é um caminho válido enquanto não é aprovada uma nova legislação no Parlamento. "É claro que a atualização de lei acontece de forma legislativa. No entanto, enquanto a gente não muda a lei, nós também temos previsão de que o Judiciário deve preencher as lacunas (da legislação). A tecnologia e a relação da sociedade com o uso da tecnologia avançou muito rápido. Já está muito diferente do que era dez anos atrás", argumentou Outra discussão é até onde o STF poderia ir na "regulamentação" do setor. Para Francisco Cruz, do InternetLab, o Supremo vai criar uma "zona cinzenta" caso estabeleça novas regras para o setor, já que a Corte não tem poder para criar um órgão de fiscalização. Já Ricardo Campos, professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, e diretor do LGPD (Legal Grounds for Privacy Design), instituto voltado à proteção de dados, defende que o STF estabeleça novas regras de funcionamento para as plataformas. Ele considera que o artigo 19 do Marco Civil da Internet cria uma espécie de "blindagem" das plataformas sociais, já que acionar à Justiça não é um procedimento simples para a maioria da população. Segundo Campos, a Corte pode "introduzir o que se chama no direito constitucional de obrigações de organização e procedimento", determinando, por exemplo, a criação de canais para receber as solicitações dos usuários. "O Supremo introduziria a necessidade dos serviços digitais receberem denúncias diretamente do usuário e estabelecerem procedimentos dentro da organização para que a própria plataforma responda em tempo hábil a essas queixas privadas, não mais (o usuário) precisando ir, então, ao Judiciário", exemplificou. "E, além disso, (a Corte pode) criar uma obrigação, por exemplo, de relatórios de transparência (sobre as denúncias recebidas e as providências tomadas)", acrescentou. Campos reconhece que o STF não poderia criar um órgão para fiscalizar a aplicação dessas novas regras, mas acredita que uma decisão da Corte nesse tema daria novo impulso ao Congresso para aprovar a medida. Enquanto isso, avalia, o descumprimento de eventual decisão do Supremo para as plataformas criarem novos procedimentos poderia levar a processos de responsabilização civil contra as empresas no Judiciário, com aplicação de multas, por exemplo. As outras duas ações foram movidas por partidos políticos (Cidadania e Republicanos) após juízes determinarem em 2015 e 2016 a suspensão do funcionamento do WhatsApp em todo o país porque a empresa não cumpriu decisão judicial para quebra de sigilo de conversas de usuários investigados criminalmente. Os partidos que apresentaram as ações pedem que o STF proíba esse tipo de decisão, sob o argumento de que a suspensão desses aplicativos é desproporcional e viola o direito de livre comunicação de todos os cidadãos, previsto no artigo 5º da Constituição Federal. O WhatsApp sustenta que é tecnicamente impossível disponibilizar acesso às mensagens trocadas no aplicativo porque as conversas são protegidas por criptografia de ponta-a-ponta. Isso significa que, em conversas privadas, as mensagens são transmitidas codificadas e apenas o emissor e o receptor da mensagem têm chaves próprias, geradas pelo aplicativo nos seus celulares, capazes de decodificar esse conteúdo. Nesse sistema, o WhatsApp alega que a própria empresa é incapaz de acessar o conteúdo. E argumentou ainda ao STF que criar algum mecanismo que permita à empresa quebrar a criptografia em casos específicos traria risco para a segurança da comunicação de todos os usuários. "Na segurança digital, os dados ou são seguros de todo mundo ou seguros de ninguém. Qualquer ferramenta que nos permitisse ter acesso às mensagens das pessoas poderia ser voltada contra os nossos usuários por partes hostis, como criminosos e hackers", disse um dos fundadores do WhatsApp, Brian Acton, ao participar de uma audiência pública sobre o tema no Supremo, em 2017. "A privacidade e a segurança são partes essenciais do serviço oferecido pelo WhatsApp. Os médicos usam o WhatsApp para compartilhar informação de saúde confidencial com seus pacientes, os tribunais se comunicam com juízes, as empresas usam o aplicativo para falar com seus clientes e compartilhar informações sensíveis e os cidadãos usam para relatar crimes", disse ainda Acton, ao defender a importância da criptografia. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal, por sua vez, ressaltaram que aplicativos de mensagens são usados não só para comunicações legítimas entre cidadãos, mas para crimes diversos como "tráfico de drogas, de armas e de pessoas, troca de pornografia infantil, preparação de sequestro, de homicídios e de atentados terroristas, dentre outros". Embora os órgãos de investigação consigam acessar mensagens trocadas em aplicativos como o WhatsApp quando há apreensão de aparelho celular de investigados ou acesso a mensagens armazenadas em sistema de nuvem (iCloud ou Google Drive, por exemplo), os investigadores gostariam de poder acessar essas mensagens mesmo sem a apreensão do aparelho ou realizar um monitoramento em tempo real, como é feito em caso de interceptação telefônica autorizada judicialmente. Os órgãos de investigação também argumentaram que deve ser obrigação da empresa viabilizar tecnicamente o acesso a essas mensagens e defenderam a legitimidade da suspensão do serviço em algumas situações. Segundo a PF, a suspensão do serviço não fere o direito à livre comunicação "pois nenhum direito individual é absoluto, devendo sempre ser interpretado dentro do princípio da razoabilidade, de forma a garantir o reconhecimento da supremacia do interesse público sobre o particular, dotando as autoridades encarregadas da persecução criminal de meios necessários para dar cabal cumprimento aos seus deveres no interesse da sociedade". As duas ações começaram a ser julgadas em maio de 2020, mas a análise foi interrompida por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Por enquanto, votaram apenas os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, relatores das ações. Ambos decidiram que serviços de mensagens como o WhatsApp não podem ser suspensos por descumprimento de decisão judicial. A única hipótese que poderia levar à suspensão, ressaltaram os ministros, seria por descumprimento das regras de proteção de dados dos usuários, conforme está previsto no artigo 12 do Marco Civil da Internet. Fachin destacou ainda que cabe à Autoridade Nacional de Proteção de Dados decidir sobre eventual interrupção do serviço. "Em síntese, é inconstitucional proibir as pessoas de utilizarem a criptografia ponta-a-ponta, pois uma ordem como essa impacta desproporcionalmente as pessoas mais vulneráveis", disse Fachin em seu voto, ao defender a criptografia como forma legítima de proteção da privacidade dos indivíduos. O ministro ressaltou, porém, “que o reconhecimento de um direito constitucional à criptografia forte não diminui nem isenta as empresas que produzem os aplicativos de se conformarem com a legislação brasileira, nem a descumprirem as ordens judiciais que, na medida da estrita proporcionalidade, exijam a entrega de dados que não dependam da quebra de criptografia”. "Nada do que aqui se assentou exime as empresas de adotarem medidas que visem reduzir a prática de ilícitos, especialmente os que ocorrem por meio de seus canais de comunicação. A criptografia não autoriza o desvirtuamento deliberado de campanhas eleitorais, a disseminação de discurso de ódio e o envio indiscriminado de materiais ofensivos", acrescentou. As ações em julgamento discutem o não cumprimento de decisões judiciais para acesso do conteúdo criptografado. No entanto, caso a maioria dos ministros acompanhe a posição de Weber e Fachin, a decisão da Corte tem potencial de impedir a suspensão de serviços de mensagens também no caso de outras decisões da Justiça, avalia o advogado Christian Perrone, chefe das áreas de Direito & Tecnologia e GovTech no Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio). Isso poderia impactar, por exemplo, decisões semelhantes à tomada por Alexandre de Moraes na semana passada contra o Telegram. O ministro determinou que o serviço seria suspenso se a empresa não apagasse uma mensagem "distorcida" contra o PL das Fake News enviada a seus usuários. O Telegram apagou a mensagem e enviou outra, de retratação, cumprindo determinação de Moraes. "A conduta do Telegram configura, em tese, não só abuso de poder econômico às vésperas da votação do Projeto de Lei, por tentar impactar de maneira ilegal e imoral a opinião pública e o voto dos parlamentares — mas também flagrante induzimento e instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas no INQ 4.874, com agravamento dos riscos à segurança dos parlamentares, dos membros do Supremo Tribunal Federal e do próprio Estado Democrático de Direito, cuja proteção é a causa da instauração do INQ. 4.781", justificou Moraes na decisão. Para Christian Perrone, há outras formas de forçar uma empresa a cumprir decisões judiciais, como a imposição de multa. "Imagina se, na hipótese de uma empresa se recusar a entregar seu livro caixa para uma investigação, a Justiça diz que vai fechar a empresa, não deixar que ela possa mais vender. Com essa analogia você consegue entender o quanto é uma medida extrema, de fato, você determinar a suspensão do Telegram ou do WhatsApp", defende Perrone.
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nw53753pno
brasil
Por que bancos centrais estão comprando ouro no maior volume em 80 anos
Bancos centrais de todo o mundo estão usando os dólares de suas reservas para comprar ouro com o objetivo de reduzir sua dependência dos Estados Unidos. Segundo o Conselho Mundial do Ouro, organização dedicada ao desenvolvimento de mercado para o setor, as autoridades monetárias adicionaram em 2022 a maior quantidade de ouro às suas reservas desde 1950 (início da série histórica). E os dados deste ano indicam que essa tendência vai continuar. O dólar dominou o comércio mundial e serviu como moeda de reserva global desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas a invasão da Ucrânia pela Rússia vem mudando esse paradigma (entenda abaixo). Fim do Matérias recomendadas Analistas não acreditam que haverá uma transformação radical. Na visão deles, o dólar ainda tem anos de hegemonia. Mas bancos centrais de grandes economias como China, Índia ou Brasil, entre outros, estão comprando ouro para repor os dólares em suas reservas no ritmo mais rápido registrado desde o pós-guerra. Para alguns analistas, essa tendência começou antes mesmo da invasão da Ucrânia, mas a maioria aponta para a rapidez com que os Estados Unidos impuseram sanções à Rússia quando o conflito começou. "As nações ocidentais congelaram alguns dos ativos remanescentes devido à invasão da Ucrânia em 2022, que incentivou os bancos centrais de todo o mundo a aumentar ainda mais as participações em ouro fungível", explicam os analistas de commodities globais do Bank of America. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo eles, a economia global parece estar caminhando para um mundo multipolar. Prova disso é que as reservas globais em dólar caíram de 70% para 58% em duas décadas. "A Rússia, país mais alvo de sanções hoje, é um bom exemplo porque está entre os maiores desdolarizadores e compradores de ouro nos últimos anos", acrescentam. Quando os Estados Unidos impuseram sanções a Moscou pela invasão à Ucrânia, congelando reservas de US$ 300 bilhões da Rússia, isso só foi possível porque elas estavam em dólar. "Depois das sanções dos EUA após a guerra na Ucrânia, os países tentaram reduzir sua exposição a possíveis sanções no futuro. Isso levou a uma valorização monetária tanto em ouro quanto em renminbi chinês", diz Omar Rachedi, professor adjunto do Departamento de Economia, Finanças e Contabilidade na faculdade de administração e negócios Esade, em Barcelona, na Espanha. Empresas privadas que negociam com a Rússia também são potencialmente vulneráveis a sanções dos EUA. Desde o início do ano, o ouro tem mostrado um desempenho estelar. Até agora neste ano, o valor em dólares do metal subiu mais de 10%. "Esperamos que as compras (de ouro) pelos bancos centrais permaneçam robustas em um mundo cada vez mais multipolar, mas não esperamos que o recorde de 2022 se mantenha", escreveu Carsten Menke, chefe de pesquisa da empresa de investimentos Julius Baer, em um relatório recente para investidores. "Não compartilhamos da visão da desdolarização, embora encaremos a compra de ouro pelos bancos centrais principalmente como uma declaração política contra o dólar americano", acrescentou ele. Os bancos centrais gostam do ouro pela expectativa de que mantenha seu valor em tempos turbulentos e, ao contrário de moedas e títulos, não dependa de nenhum emissor ou governo. O ouro também permite às autoridades monetárias diversificarem seu portfólio de ativos. "Os motivos pelos quais os bancos centrais estão acumulando ouro variam, mas provavelmente o principal é que eles precisam diversificar seus ativos de reserva", diz o professor Lawrence H. White, do Departamento de Economia da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "A China, por exemplo, tem comprado ouro e, ao mesmo tempo, vendido parte de sua grande carteira de títulos do Tesouro americano. Manter ativos em ouro em vez de dólares também é uma forma de reduzir a exposição ao risco de desvalorização do dólar”. Mas "o dólar continua sendo a moeda dominante para pagamentos internacionais, e nem o euro nem o yuan devem tomar seu lugar", acredita White. O aumento das taxas de juros por todo o mundo também influenciou a decisão de muitos países de se "desdolarizarem". "As necessidades de diversificação dos bancos centrais são ainda mais exacerbadas pelo fato de que seus títulos do Tesouro dos EUA perderam valor devido aos aumentos das taxas de juros pelo Federal Reserve (banco central americano)", diz Rachedi. Isso porque o preço do título possui uma relação inversa com a taxa de juros. Quando os juros sobem, o preço do título cai. Já uma redução nas taxas de juros tem o efeito contrário. Portanto, a mudança para ativos que não sejam a moeda americana — e especialmente os títulos do Tesouro dos EUA — tem sido um fator que também tem impulsionado a diversificação, explica o professor. Para qualquer economia latino-americana com dívida em dólares, o aumento dos juros também foi um revés. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva também falou recentemente sobre o predomínio do dólar. Em um discurso proferido durante sua recente viagem à China, o petista exortou os países do Brics — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — a desenvolver uma nova moeda e se afastar do dólar. "Por que não podemos negociar nossas próprias moedas?", perguntou ele. "Quem foi que decidiu que o dólar era a moeda após o desaparecimento do padrão-ouro?", acrescentou Lula, em alusão à substituição do ouro pelo dólar como sistema monetário até a Primeira Guerra Mundial. Falando no Novo Banco de Desenvolvimento de Xangai, comandado pela ex-presidente Dilma Rousseff, Lula pediu aos países do Brics que estabeleçam uma moeda comum com a qual possam fazer transações. A proposta surgiu poucos meses depois do anúncio de Brasil e Argentina de articular uma moeda comum chamada Sol. "É uma ambição antiga. Ninguém quer depender de uma moeda que não pode controlar, mas a realidade é que ninguém pode viver sem ela. A ampla hegemonia do dólar estará assegurada enquanto não houver rival de igual magnitude”, explica Gonzalo Toca, analista do think tank espanhol Esglobal. “Estamos falando da moeda da principal economia mundial e da moeda do principal fomentador da globalização e do sistema monetário internacional como o conhecemos. Por isso mesmo a arquitetura institucional a favorece”, lembra. "Dito isso, a hegemonia avassaladora de que desfrutava o dólar obviamente começou a enfraquecer com a valorização do euro e do yuan. E continuará enfraquecendo, nos próximos anos, à medida que eles ganharem peso como moeda de reserva e de pagamento", diz Toca. Nesse contexto, vale lembrar que as relações entre Washington e Pequim, por outro lado, embora não sejam boas, são agora menos tensas do que durante a "guerra comercial" que o ex-presidente dos EUA Donald Trump travou com a China. Para o professor Rachedi, o principal desafio ao domínio global do dólar americano pode vir do renminbi (ou yuan) chinês, já que a China começou a fechar contratos de petróleo com países do Golfo a preços em renminbi e não em dólares. Além disso, o grande esforço da Iniciativa do Cinturão e Rota (ou Nova Rota da Seda) vem com o desembolso de contratos entre a China e países da Ásia, África e América do Sul, que são cotados em renminbi e não em dólares. "No entanto, enquanto a China não fornecer um ambiente bem protegido para os investidores e permitir que o governo controle diretamente os mercados financeiros e possivelmente se apodere de quaisquer contas financeiras, o gigante asiático não vai conseguir desafiar a supremacia do dólar", diz ele. "Enquanto os Estados Unidos conseguirem manter mercados financeiros livres com uma taxa de inflação estável, seu domínio estará aqui para ficar na próxima década ou mais", acrescenta.
2023-05-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cge445px1pqo
brasil
As sacerdotisas africanas perseguidas pela Inquisição no Brasil
Entre as histórias da população negra no Brasil que conseguiram sobreviver ao processo de apagamento, há episódios que ainda permanecem sob a sombra do desconhecimento. Um livro se propõe a investigar um deles: a vida de mulheres africanas que obtiveram (relativo) sucesso econômico, assumiram a liderança de suas comunidades nas Minas Gerais do século 18 e também acabaram alvo de uma literal caça às bruxas empreendida pelo Estado português. Sacerdotisas Voduns e Rainhas do Rosário: Mulheres Africanas e Inquisição em Minas Gerais (Chão Editora, 2023), dos historiadores Aldair Rodrigues e Moacir Rodrigo de Castro Maia, reúne denúncias do Tribunal da Inquisição de Lisboa que tinham o objetivo de punir manifestações religiosas fora da fé católica. O trabalho da dupla também revela uma faceta da África que fincou pés no Brasil distinta da tradição dos Orixás, fundada pelos iorubás e mais documentada e divulgada ao longo da história. Trata-se da cultura e fé da população originária da região conhecida como Costa da Mina (atualmente territórios de Gana, Togo, do Benin e um pedaço da Nigéria) e parte dela devota da religião Vodum. O termo possui uma história e acepção muito mais ampla do que ficou cristalizado no imaginário popular pelos bonecos espetados do vodu haitiano (que também tem raízes nas tradições da Costa da Mina). Fim do Matérias recomendadas "É um termo muito antigo para esses povos, especificamente da África Ocidental, usado para designar as suas divindades", diz Maia. "A religião tinha características muito abertas, agregadoras. Havia cultos pertencentes à população em geral, por exemplo voduns associados a árvores ou serpentes e, ao mesmo tempo, havia cultos individuais, particulares da família, do clã, da linhagem." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rodrigues afirma que "o Vodum é um sistema de crenças que organiza a relação dos vivos com o mundo invisível dos ancestrais. Com o racismo religioso, tudo isso foi lido como culto ao demônio". "Mas, na verdade, você tem a dimensão material de práticas que envolvem a confecção de objetos sagrados, acionados por meio de rituais que levam a um poder tanto para práticas maléficas como benéficas, de proteção etc." Esse sistema, que regia uma parte importante das vidas naquela porção da África ocidental, colapsa quando essas populações são arrancadas de suas terras para embarcar em uma brutal — e muitas vezes mortal — viagem pelo Oceano Atlântico. "Essas pessoas são tiradas da sua comunidade e de sua relação com o mundo dos ancestrais. É uma violência que vai além da violência física, porque você é retirado das suas redes de parentesco, algo crucial para ajudar alguém a se inserir na sociedade", diz Rodrigues, que é professor na Unicamp. Os que sobrevivem à jornada em navios de condições sub-humanas tentam se adaptar à vida no Brasil colônia da forma que podem. Uma delas é recuperar elementos de suas terras de origem junto a outros escravizados. Em Minas Gerais criou-se uma língua geral da "Nação Mina", já que os diferentes idiomas pertenciam ao mesmo ramo linguístico. Eram variados níveis de intercompreensão, mas de comunicação facilitada. Com o tempo, também organizam-se os espaços físicos para reviver as tradições da religião Vodum que tinham tanta importância em suas genealogias. Maia, também pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que documentos sobre um caso ocorrido em Paracatu, interior mineiro, apontam um encontro do "assim classificado grupo específico da área Vodum, que cultua o que as autoridades chamam de 'cultuar o Deus de sua terra'. Então há ali uma necessidade, após esse terror que foi a migração, de se reconectar ao seu universo cultural". O documento descreve um culto numa área mais afastada de Paracatu, instalado no local de moradia da vodúnsi (sacerdotisa) Josefa Maria, formado por uma maioria de mulheres. "E tinham na mesma casa uma cozinha, onde ela testemunha não entrou nem viu o que estava dentro dela, mas que viu saía de lá uma preta forra por nome Josefa Maria embrulhada em umas chitas velhas e [entrava] na dança [em que proferia] algumas palavras que encontrava a nossa santa fé e outras que ela não entendeu e na mesma dança se fingia morta, caindo no chão, e outras a pegavam e levavam para dentro da tal camarinha", registra o documento. O evento na casa de Josefa ocorria com regularidade, sempre aos sábados, reunindo libertos e escravizados. "Há o estereótipo de que todo negro, toda mulher negra naquela época era escrava. Mas havia mulheres negras livres, são elas que predominam nas alforrias. É uma liberdade precária, mas o livro fala de uma liberdade negra feminina na escravidão", diz Rodrigues. O professor da Unicamp explica que isso se deve, no caso de Minas Gerais, à presença feminina negra no comércio de alimentos, que abriam vendas e tinham consequentemente maior trânsito para negociar a obtenção das alforrias. "Os homens ficavam mais na mineração, nas lavras, com menos possibilidade de acumular dinheiro." As mulheres, assim, constituíam casa própria e um local possível para fazer reuniões. "Elas ocupam um espaço maior de autonomia, mesmo com todas as limitações e dificuldades. E, ao contrário da sociedade paternalista de seus locais de origem, elas conseguem um papel religioso ampliado no culto Vodum que se instala no Brasil", afirma Maia. Segundo Rodrigues, "essa liberdade é vivida de forma contraditória porque essas mulheres adquirem escravizados, muitas vezes da mesma região de onde elas vieram. No Brasil da época, a posição social, o prestígio eram medidos em relação à escravidão porque era uma sociedade escravista". Com a monarquia portuguesa fundamentada na religião católica, a estabilidade política também se fundamenta diretamente na unidade da fé. A Inquisição é um tribunal especializado em vigiar a pureza da fé e perseguir quem se desvia dela. "Tudo o que diz respeito a outras manifestações culturais religiosas vai ser perseguido. E um grande elemento para articular essa perseguição é a crença de que os adeptos de religiões de origem africanas estão cultuando o demônio. Havendo uma associação dos Voduns ao demônio isso legitima a violência", aponta Rodrigues. "Há um outro fator que, nesses cultos, são formadas lideranças que às vezes planejam rebeliões e fugas. Então, para o controle social dessa população, era urgente perseguir e eliminar esses espaços." A Inquisição também molda as estruturas de ascensão social à época. Candidatar-se a agente em Minas Gerais não proporcionava grande remuneração, mas apresentar-se como defensor da pureza da fé católica significava a obtenção de grande prestígio na sociedade. "Se você entra para a Inquisição, você tem uma prova pública de que passou por um processo rigoroso de investigação da sua pureza de sangue, diz Rodrigues. O ofício era vedado a descendentes de judeus, muçulmanos e pessoas escravizadas. "Então todos os elementos vão confluindo para a defesa desse ideário católico. O poder econômico não basta nessa época. Você precisa ter status social." Apesar da estigmatização e perseguição ao Vodum, muitos brancos procuravam nos cultos africanos um alívio para momentos de desespero e a busca por cura de doenças. Mas a possibilidade de ser envolvido em um processo contra manifestações do Vodum significava um incentivo para entregar sacerdotisas e devotos às autoridades. "A Inquisição distribui editais no Brasil para coletar denúncias, lidos no final das missas. Um dos elementos que a gente encontra nesses editais é que se as pessoas não denunciam o que elas sabem, elas estão automaticamente excomungadas", explica Rodrigues. "E, se você delata, muitas vezes há uma comutação da pena. Pessoas brancas, num momento de desespero, vão aos cultos, se sentem acolhidos, resolvem seu problema e depois eles se sentem culpados porque são católicos. E aí, para aliviar a consciência, denunciam os africanos com quem eles convivem." Os casos compilados em Sacerdotisas Voduns, apesar de perseguições e prisões, não chegaram a ter sentenças. Por alguma razão, ficaram sem desfecho. Segundo Maia, "pode-se pensar que o fato de que não viraram um processo depois e não houve uma condenação final indica uma significância menor desses casos. Quando a gente vê essas estruturas sociais agindo para colher informações e denúncias contra essas pessoas, principalmente africanas, a gente vê o terror que foi imposto àqueles locais". Mais de 250 anos depois, a perseguição a religiões de matrizes africanas permanece no Brasil. Rodrigues diz que é a representação do racismo de longa duração, que apenas se transforma no tempo e no espaço. "Eu diria que o principal elemento de permanência é associar entidades africanas ao demônio. É isso que provoca o medo e atiça a violência. O medo do que não se conhece, o medo do que é diferente e, ao mesmo tempo, a construção de uma identidade religiosa cristã. Ela é construída em relação ao outro. E o outro, no caso, é o africano."
2023-05-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw07ne17z2wo
brasil
Os ex-escravizados que voltaram para a África e fundaram comunidade que segue tradições brasileiras
O 13 de maio entrou para a história do Brasil como o dia em que a Lei Áurea foi assinada. O ano era 1888 - ou seja, há exatos 135 anos - e, no papel, foi decretado: "É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil". Mas antes mesmo da assinatura do documento, milhares de homens e mulheres arrancados à força de suas terras natais começaram um processo pouco conhecido de retorno às suas origens. Ao todo, estima-se que entre 3 mil e 8 mil afro-brasileiros tenham retornado ao continente africano durante o século 19. Eles implantaram o único exemplo, até então, de cultura brasileira exportada no mundo em comunidades na costa da África Ocidental, em territórios que hoje fazem parte de países como Benin, Togo, Nigéria e Gana. Neste último, os retornados ficaram conhecidos como "tabom" por se comunicarem em português e usarem com frequência a frase "tá bom". Fim do Matérias recomendadas "Há duas versões para esse nome", explica a historiadora Monica Lima e Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "A primeira é que como muitos deles não falavam bem a língua local, respondiam 'tá bom' para tudo que não entendiam. Já a segunda é que o 'tá bom' era usado com frequência como uma saudação, uma forma de saber se a outra pessoa estava bem." A comunidade que floresceu nos arredores do que hoje é Acra, a capital de Gana, ainda existe. Apesar de pouco numerosas, algumas famílias ainda carregam sobrenomes luso-brasileiros e realizam cerimônias com danças que misturam a tradição local à brasileira. Além disso, também é possível encontrar pratos típicos brasileiros, como a feijoada, sendo servidos em encontros da comunidade. Historiadores se baseiam nos poucos documentos da época e principalmente na história oral para reconstruir a história dos retornados. Considera-se que os primeiros brasileiros a chegar à área da Costa Ocidental da África desembarcaram antes da década de 1830 e eram traficantes de escravos ou pessoas próximas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Mas a partir da década de 1830 muitos retornos passaram a ter relação com as rebeliões e insurgências que aconteciam no Brasil, em especial a Revolta dos Malês em Salvador, na Bahia", explica Monica Lima e Souza. Segundo a historiadora, muitos dos escravizados libertos passaram a ser vigiados e perseguidos após esses movimentos e viram o retorno à África como uma alternativa. Muitos dos envolvidos também foram deportados à força. É neste contexto que alguns historiadores incluem a chegada a Acra, nas primeiras décadas do século 19, de um pequeno grupo de escravizados que conquistou sua liberdade em território brasileiro e viajou de navio a Gana. Posteriormente, a partir da década de 1850, uma nova leva de pessoas, motivadas principalmente pelo fim do tráfico de escravizados no Brasil, abolido por lei nesse mesmo ano, passou a retornar à África. "O objetivo principal delas era promover uma atividade comercial livre e combater o tráfico atlântico ou interno que ainda acontecia", diz Souza. Também há indícios de que um grupo significativo de retornados chegou a Gana vindo da Nigéria em um barco oferecido pelo governo inglês. A viagem supostamente deveria ser apenas para visita, mas eles foram tão bem recebidos pelos chefes das comunidades locais que resolveram ficar. A historiadora da UFRJ explica que muitos dos escravizados que decidiram deixar o Brasil eram nascidos na África que, após terem seus laços com suas comunidades originais cortados à força, acabaram se familiarizando mais com a cultura brasileira e o português do que com suas próprias tradições. Após conquistarem sua liberdade e um certo conforto financeiro, decidiram voltar em busca de oportunidades na área comercial. "No litoral da região que hoje é Acra existiam três grandes fortes - um holandês, outro britânico e outro dinamarquês - e em torno deles se desenvolveu a ocupação", explica. Antes da abolição do tráfico, os fortes eram usados pelos europeus para comércio de ouro e escravizados. "Quem retornava eram os libertos com condições financeiras melhores, seja porque conseguiram reunir dinheiro por meio do seu trabalho ou porque a família ou conhecidos bancavam a viagem", diz Souza. Segundo a professora, os custos da travessia eram altos e incluíam não só a passagem de navio como contratos para alimentação e segurança. Já em solo africano, os registros dão conta de que os brasileiros foram bem recebidos pelas comunidades e pelos holandeses que controlavam a região, recebendo terras para se estabelecer. Em seu livro Sou brasileiro: história dos tabon afro-brasileiros em Acra, Gana, os autores Alcione Meira Amos e Ebenezer Ayesu afirmam que alguns dos afro-brasileiros ainda chegaram com habilidades profissionais e dinheiro, recursos que eram bem recebidos pela população local. "Entre eles, de acordo com documentos encontrados, havia pedreiros, carpinteiros, alfaiates, ferreiros, ourives, escavadores de poços de água potável e famílias com habilidades no cultivo agrícola", diz a obra. Ainda segundo os historiadores, a comunidade formada pelos recém-chegados cresceu rapidamente e suas casas passaram a contrastar com as residências da população local - enquanto os afro-brasileiros edificaram prédios com pedra, como haviam aprendido no Brasil, os locais cobriam suas moradias com sapé. "Especialmente os retornados que chegam da década de 1880 em diante tinham uma visão sobre suas próprias comunidades muito baseada na ideia de que eles eram mais ocidentalizados, mais educados e até mais brancos", diz Monica Lima e Souza. E apesar de terem vivido alguns anos no Brasil, muitos dos primeiros tabom a chegarem em Gana eram muçulmanos. Mas segundo os registros, a grande maioria logo se converteu ao cristianismo, em especial ao anglicanismo e ao metodismo, devido à influência europeia na região. Mas mesmo após o fim do tráfico e apesar de suas origens, muitos tabom ainda mantiveram uma relação com a escravidão após deixarem o Brasil e, além de manterem escravizados em casa, atuavam no comércio. Segundo conta em alguns livros de história, em 1845, o governador dinamarquês Edward Carstensen reportou que "a Acra holandesa tem sido há algum tempo o centro de comerciantes de escravos, especialmente os negros brasileiros emigrados". O governador Carstensen continuou afirmando que, três meses antes, um desses traficantes brasileiros tinha sido preso no interior do país conduzindo dois escravos para a costa para serem vendidos. Quase vinte anos depois, em 1864, era ainda relatado que os afro-brasileiros de Acra estavam controlando "um florescente comércio de escravos do território Ewe para Acra". No entanto, em Gana e na África Ocidental em geral, a escravatura naquele momento diferia em natureza daquela que existiu no Brasil e nos Estados Unidos. Os escravizados eram considerados parte da família e do clã de seus captores e por isso poderiam até mesmo chegar a ocupar uma posição de autoridade. "Regras sociais e costumes [...] protegiam muito da dignidade do escravo [...] escravidão nativa em Gana não era [racial]", define Akosua Perbi, professora de história na Universidade de Gana e estudiosa do tema. Não há uma estimativa oficial do total de descendentes do povo tabom que ainda vivem hoje em Gana, uma vez que não existe um censo específico para isso, mas especula-se que a comunidade esteja em torno de 5 mil pessoas. Eles estão organizados como sempre estiveram desde o seu retorno à África, com um sistema de chefia tradicional equivalente ao do Gana, com um Mantse (chefe ou rei). O Mantse Nii Azumah 5º é o atual líder da comunidade. Mas segundo historiadores que se debruçaram sobre o tema, diferente da experiência dos ex-escravizados que retornaram para o Benin ou Nigéria, os tabom de Gana não possuem mais uma forte influência da cultura brasileira. Nem todos mantêm uma ligação com as tradições brasileiras, sabem detalhes de sua ascendência ou sabem falar português. Ainda é possível escutar trechos em português de músicas cantadas em celebrações religiosas e culturais, mas segundo pesquisadores que estudam as comunidades seus integrantes na maioria das vezes não sabem o que as palavras significam. Para Alcione Meira Amos e Ebenezer Ayesu, essa perda da identidade "pode estar relacionada ao fato de que alguns dos imigrantes muçulmanos que chegaram da Bahia a Acra nas décadas iniciais do século 19, não tenham ficado no Brasil por muito tempo". Além disso, segundo os autores, os tabom acabaram se fundindo de forma mais intensa com a comunidade local e acabaram, por vezes, deixando de lado a cultura que haviam trazido do Brasil. Ainda assim, muitos de seus descendentes ainda vivem em uma área que fica de frente para o mar e próxima ao antigo porto de Acra chamada Jamestown. Lá há uma rua chamada Brazil Lane, onde está localizada a primeira casa que abrigou os tabom, a Brazil House, e que hoje funciona também como museu e acervo.
2023-05-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw9pw50y92wo
brasil
Como Marília Mendonça continua a ser fenômeno após sua morte
As músicas da cantora Marília Mendonça, um dos maiores nomes do sertanejo nos últimos anos, continuam entre as mais tocadas no Brasil, após sua morte em novembro de 2021, no auge da sua carreira. A artista esteve no topo das paradas em 2022 e no início deste ano e segue sendo bastante ouvida nas rádios do país e plataformas de música. Por trás deste sucesso póstumo da cantora, também estão o trabalho e a estratégia traçados por sua gravadora, por seus familiares e pelo escritório que representa a artista. O principal projeto é uma série em quatro partes — a última deve ser lançada no fim de maio — com músicas retiradas de uma live feita por ela em maio de 2021. A canção Leão, que encabeça a série Decretos Reais, já foi ouvida 340 milhões de vezes nas plataformas de música e no YouTube, segundo a Som Livre. Fim do Matérias recomendadas A faixa foi a mais popular no Brasil no Spotify no último verão, e Marília Mendonça foi a artista mais ouvida em todo o país no mesmo período. Os números alcançados por Marília após a morte surpreenderam, avalia o jornalista André Piunti, especializado em música sertaneja. “Ninguém esperava que um lançamento póstumo fizesse tanto sucesso assim. Isso nunca aconteceu no sertanejo, não sei se em outro tipo de música no Brasil, mas acredito que não”, pontua Piunti. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um dos principais nomes do subgênero “feminejo” — música feita por e para mulheres —, Marília Mendonça é dona de inúmeras músicas de sucesso. A artista chegou à gravadora Som Livre em 2015, ainda como compositora. A carreira como cantora começou um pouco depois. Conhecida como a “rainha da sofrência” por cantar sobre o desamor, a artista chegou ao topo com Infiel, seu primeiro hit. A música tem hoje mais de meio bilhão de visualizações no YouTube, onde o canal de Marília tem quase 26 milhões de inscritos. Depois, vieram sucessos como Todo mundo vai sofrer, Vai lá em casa hoje, Troca de calçada e vários outros. “Ela mostrou, logo no início, que tinha muito potencial vocal, que a composição dela falava com todas as características das mulheres e que ela estava representando esse público. Foi uma quebra de estigma do segmento do sertanejo”, diz Júlia Braga, da Som Livre. Ao longo da carreira, Marília acumulou recordes. No auge da pandemia, em maio de 2020, sua live tornou-se a mais vista na história do YouTube, com 3,3 milhões de acessos simultâneos. A cantora foi a artista mais ouvida no Brasil no Spotify em 2019 e em 2020. Ela estava em um avião que caiu na cidade de Piedade de Caratinga, em Minas Gerais, em 5 de novembro de 2021. Além da cantora, também morreram o tio dela, Abicelí Silveira Dias Filho, o produtor Henrique Ribeiro, o piloto Geraldo Medeiros Júnior e o copiloto Tarciso Pessoa Viana. A tragédia causou comoção em todo o país e foi notícia pelo mundo. O velório dela, em Goiânia, reuniu milhares de fãs. Os representantes da cantora tinham um desafio após sua morte: como conduzir a obra deixada por uma das maiores artistas do Brasil? Isso significava, em parte, administrar os trabalhos que Marília havia deixado prontos antes do acidente. Marília tinha acabado de lançar Patroas, por exemplo, uma parceria com a dupla Maiara e Maraísa, suas amigas de longa data. As músicas do projeto alcançaram o topo das paradas nos meses seguintes. Ao mesmo tempo, a equipe decidiu revisitar todo o material já produzido pela cantora, pensando em produzir novos projetos. “A gente teve muito cuidado em fazer reflexão do que ela faria. É óbvio que nunca saberemos e queríamos que ela estivesse aqui. Mas não estando, tivemos o cuidado de tentar fazer com a cara dela”, explica Júlia Braga, diretora de comercial e marketing da gravadora Som Livre. Na live Serenata, feita no YouTube em maio de 2021, Marília cantou sucessos da sua carreira — alguns em nova versão — e de outros artistas. A apresentação tem mais de 10 milhões de visualizações atualmente. A transmissão foi remasterizada para melhorar a qualidade do som de algumas músicas, e a primeira parte foi lançada em julho passado. Os três volumes de Decretos reais que saíram até agora somam 780 milhões de reproduções em plataformas de áudio e no YouTube, de acordo com a Som Livre. “Acho que todo mundo entendeu que esse projeto de regravações — não é de inéditas — é muito potente”, diz Júlia Braga. “O que explica o sucesso atual dela é, sem dúvidas, a própria Marília. Nós estamos aqui apenas para ajudar.” Nos meses seguintes à morte da cantora, também foram lançadas gravações de Marília com outros artistas. Os lançamentos dessas canções seguiram o cronograma de cada parceiro, como os cantores Ludmilla, Naiara Azevedo e Zezé di Camargo, após aval dos representantes de Marília. A música Mal feito, com a dupla Hugo & Guilherme, foi umas das parcerias de maior sucesso. A canção, lançada em janeiro de 2022, foi a mais ouvida no ano passado nas plataformas de música do país, com 255 milhões de reproduções. “Falta a peça principal, que é a Marília e suas ideias geniais, mas fica o florescer das sementes que ela plantou”, diz o escritório Work Show, que cuidava da carreira da artista, em um comunicado à BBC News Brasil. O sucesso de Marília mesmo após a sua morte vai além do fato de ela ter sido um fenômeno em vida, avalia o jornalista André Piunti. Ele destaca que um ponto fundamental é que a artista deixou muito material produzido com qualidade. “Ela deixou coisas realmente prontas”, diz. “Não precisaram revirar arquivos, essas coisas, que sempre são complicadas. Por exemplo, o Cristiano Araújo (cantor sertanejo), que faleceu em 2015, teve o primeiro projeto póstumo lançado só no final do ano passado, porque tiveram que mexer em arquivos. Aí perde um pouco daquele apelo. O dela (Marília) foi lançado menos de um ano depois“, acrescenta. Somente no Spotify, Marília acumula atualmente pouco mais de 13,2 milhões de ouvintes mensais. É a quinta artista brasileira mais ouvida na plataforma nos últimos dias. Ela soma atualmente, segundo a Som Livre, mais de 27 bilhões de reproduções em plataformas de áudio e no YouTube. Os valores movimentados pelos lançamentos póstumos não foram divulgados. Outro ponto, diz André Piunti, é que a equipe dela adotou estratégia de lançamento dos projetos semelhante à que era feita enquanto Marília estava viva. “Reuniram fãs, imprensa, a gravadora e fizeram um lançamento como se a artista estivesse aqui”, comenta. A faixa Leão, uma parceria com o rapper Xamã, tornou-se um dos maiores sucessos póstumos de Marília Mendonça. A canção foi lançada originalmente em 2020 e foi reeditada pela cantora em uma nova versão solo na live de maio de 2021. Piunti diz que a música alcançou números expressivos principalmente por ser considerada quase inédita para muitos que acompanhavam a carreira de Marília. “A música tinha sido gravada com o Xamã, no estilo dele. Então, por mais que ele tenha feito um barulho com ela, ficou mais para o público do Xamã do que para o da Marília”, diz. “Muita gente que gostava da Marília sequer conheceu a versão com o Xamã. E aí ela fez uma versão totalmente nova na live, uma versão que a gente chama de brega, meio ‘sertanejão’ e misturando com alguns ritmos do Nordeste. Enfim, uma bagunça que ela gostava de fazer”, comenta Piunti. “Se fosse só uma regravação de uma música sertaneja bem conhecida, como tantas outras que ela fez (na live), a música teria força, mas não tanta assim”, avalia o especialista. Nos próximos meses (ou anos), devem ocorrer mais lançamentos póstumos de Marília. É uma estratégia que continua sendo traçada pela equipe dela, com o apoio da mãe da artista, Ruth Moreira. “É tudo costurado a muitas mãos. Lembro perfeitamente da primeira reunião, todos estavam muito emocionados. Até hoje, muita gente ainda tem a sensação de que ela vai aparecer, é uma coisa tão vívida que a gente sabe que ocorreu, mas não entende que ela não está mais aqui para discutir os planos e as ideias”, diz Júlia Braga. Parcerias musicais que não foram lançadas até o momento, uma biografia e um documentário estão nos planos. Além disso, uma equipe está catalogando músicas inéditas escritas pela cantora. Há “inúmeras canções e projetos criativos sendo desenvolvidos que em breve aparecerão”, diz o Work Show à reportagem. Segundo o escritório, os lançamentos ocorrerão conforme a vontade de Marília, “a curto, médio e longo prazo", como ela indicou para pessoas de confiança. “Ela assumiu um compromisso de ser além de uma cantora, um movimento, uma forma de ser e estar, uma ideia, e as ideias não morrem”, diz o escritório. Diversos trabalhos deixados pela cantora ainda devem ser avaliados por quem cuida de sua obra. “Não tive acesso a inéditas ou rascunhos, mas já me falaram que há muita coisa dela. Ela era uma mulher hiperativa, no auge e andava com um caderninho o dia inteiro. Ela sempre gravava áudios e mandava pros produtores”, diz Júlia Braga. “É uma infinidade de material que precisa ser ouvido e analisado para ver o que está à altura dela para o público. Sempre que tiver um projeto da Marília, vai ser grandioso", acrescenta.
2023-05-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckrk07gg2reo
brasil
Por dentro da 'machosfera', onde homens debatem reação ao feminismo e técnicas de sedução
Nas últimas décadas, as mulheres conquistaram direitos e avançaram no mercado de trabalho. Vários países aprovaram leis para coibir o assédio e a violência de gênero, e as redes sociais deram a elas a possibilidade de falar abertamente sobre abusos. Essas mudanças foram bem vistas por boa parte da sociedade. Mas, para um grupo de homens, as transformações os prejudicaram e geraram distorções. O mal-estar masculino gerou uma contra-ofensiva. Homens que se sentiam deslocados ou injustiçados recorreram a fóruns na internet para compartilhar dicas sobre como reagir a essas mudanças e se portar em relacionamentos com mulheres. Foi assim que surgiu a chamada machosfera. Fim do Matérias recomendadas Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast tratou, na primeira temporada, de conflitos que o Brasil viveu no ano eleitoral. Agora, na segunda, serão abordadas disputas que vêm surgindo ou ganhando fôlego após a troca no governo. Os episódios serão lançados sempre às sextas. Homens recorreram a uma metáfora do filme Matrix (1999) para batizar uma das principais correntes da machosfera: a "red pill" (pílula vermelha, em inglês). O personagem principal de Matrix é o hacker Neo, que é convidado a entrar num movimento. O líder do movimento oferece a Neo duas pílulas, uma azul e uma vermelha. Ele diz que, se Neo tomasse a azul, continuaria a viver na ilusão. Mas, se escolhesse a vermelha, o hacker teria acesso à verdade. Neo engole a pílula vermelha e descobre que a humanidade foi escravizada por máquinas, e que as pessoas estão todas presas num programa de computador que simula a realidade. A ideia por trás da "red pill" da machosfera é que, tomando essa pílula — o que os homens fariam simbolicamente ao frequentar esses fóruns e absorver seus ensinamentos —, eles conseguiriam sair do mundo das ilusões e veriam a realidade como ela é. Uma realidade que, segundo eles, é hostil aos homens. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Téo, codinome virtual de um homem carioca que frequenta grupos da machosfera há vários anos e pediu para não ser identificado, a "red pill" não é um movimento, mas sim um espaço em que homens trocam experiências e orientações sobre relacionamentos. "Nós passamos para o outro, para o incauto, para aquele que não tem experiência, como é que essa situação se desenvolve e qual a consequência que essa situação em que aquele indivíduo vai se envolver, o quanto ele pode estar se colocando em perigo. Então se trata de autopreservação", ele diz em entrevista ao podcast Brasil Partido. Téo diz ter se casado duas vezes, mas que nenhum matrimônio durou mais do que seis meses. "Infelizmente, as pessoas com quem eu me casei não eram as pessoas com quem eu namorei." Ele diz que as experiências negativas o fizeram mergulhar numa outra filosofia que conheceu nos grupos virtuais masculinos: o MGTOW (sigla para a expressão em inglês "Men Going their Own Way", ou homens seguindo seu próprio caminho). Há várias convergências entre o MGTOW e a "red pill". Mas, enquanto nos fóruns da "red pill" alguns homens só estão interessados em trocar dicas sobre musculação ou sobre como seduzir mulheres, Téo diz que o principal foco do MGTOW é adequar o homem ao mundo que se transforma. Tanto o MGTOW quanto a "red pill" são associados à alt-right — a direita alternativa que esteve nos holofotes depois da vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos, em 2016. Mas os grupos se expandiram e hoje estão presentes em vários países, inclusive no Brasil. O Southern Poverty Law Center — uma organização americana que é referência no monitoramento de movimentos extremistas — define o MGTOW e a "red pill" como grupos de supremacia masculina que querem subjugar as mulheres. O MGTOW é descrito ainda como um grupo de homens separatistas que decidiram se isolar completamente da influência das mulheres. Mas Téo contesta essa definição. "Essa história de que o MGTOW, ele marginaliza a mulher... Não, não, não é bem assim." "Ele não aceita se condicionar a determinadas, entre aspas, validações que a mulher quer. Ele não se submete ao shaming", diz. Shaming é o ato de criticar alguém em público, principalmente na internet. Téo diz que evitar se expor é uma das principais diretrizes do MGTOW. De certa forma, essa posição é uma resposta a movimentos feministas como o MeToo — que estimulam mulheres a usar a internet para denunciar violências que elas sofreram e a expor seus abusadores. O feminismo, aliás, é alvo de várias críticas de Téo. Ele diz que, apesar do discurso das feministas em prol da igualdade entre homens e mulheres, o movimento não quer abrir mão do que ele chama de "benesses". "Tudo que o feminismo, a mulher moderna e modernete tóxica não quer é perder as benesses: o homem que paga, o homem que é cavalheiro, o homem que é protetor, aquela coisa toda. O homem agora não quer mais saber de mais nada disso." Mas ficou para trás o tempo em que a machosfera era formada apenas por grupos e fóruns virtuais. Hoje esse universo virou também uma fonte de dinheiro para quem oferece cursos sobre como seduzir mulheres ou sobre como os homens devem se portar no mundo. "A testosterona, sem controle, ela é selvagem. Homem que é homem, saudável, ele é perigoso. Porque masculinidade, por essência, tem que ser perigosa", diz um coach de masculinidade popular nas redes sociais. São comuns nesse universo discursos com um suposto viés biológico e que valorizam características masculinas associadas a um passado remoto, quando os homens caçavam, guerreavam e protegiam a prole. "O masculino foi feito para liderar. Ou você é líder, ou você é liderado. Ou você é dominante, ou você é submisso", diz outro influencer. Para Bruna Camilo, ativista feminista e doutora em Ciências Sociais pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais, o mercado da machosfera promove uma "monetização da misoginia". Bruna pesquisa gênero, extrema direita e masculinismo — que é a ideologia que defende os direitos dos homens. Ela diz que, ao contrário do que prega essa ideologia, o feminismo não quer que os homens sigam pagando as contas. "O feminismo é um movimento que busca a igualdade entre todas as pessoas e fazer com que todos nós consigamos ter igualdade salarial, igualdade de acesso à política, igualdade de poder andar na rua e não ter medo de ser violentada", ela diz. Em março, Bruna defendeu uma tese de doutorado sobre o masculinismo. Para fazer a pesquisa, ela se infiltrou em grupos virtuais desses movimentos. Bruna conta que eram comuns nesses grupos queixas sobre leis voltadas à proteção das mulheres — como a opinião de que essas leis prejudicam os homens e só levam em conta a palavra das vítimas. Ela afirma, no entanto, que as críticas não são respaldadas pela realidade — e que muitas mulheres se valem dessas leis para se proteger. "Infelizmente, mulheres têm morrido muito pelas mãos de seus ditos companheiros", afirma. Mas Bruna concorda com um tipo de queixa que alguns homens compartilham nesses espaços: a de que, na nossa sociedade, os homens são cobrados a serem másculos, viris, racionais, provedores, assertivos e bem sucedidos. Para Bruna, essas cobranças são reais e causam um grande dano aos homens — mas ela diz que os masculinistas erram o alvo ao atribuir essas cobranças ao feminismo. "Isso é o machismo, é a misoginia, é o patriarcado", diz. "Enquanto feminista, eu te digo que o feminismo luta inclusive para a gente desconstruir essa masculinidade hegemônica." "Então, eu acho legítima a crítica a esses padrões, os homens são vítimas. Só que, ao invés dessa crítica se tornar algum debate saudável, para os masculinistas, se tornam violência. Eles se veem no direito de serem agentes da violência para conseguir quebrar essa lógica."
2023-05-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy90kg5l955o
brasil
As perguntas ainda sem resposta sobre suposto 'plano de golpe' de militares próximos a Bolsonaro
As investigações sobre a suposta fraude em cartões de vacina contra a covid-19 que teria beneficiado o ex-presidente Jair Bolsonaro, sua filha de 12 anos de idade e auxiliares próximos apontaram, também, a existência de conversas entre militares e ex-militares que chamaram atenção das autoridades. O funcionamento do esquema foi divulgado pela Polícia Federal no dia 3 de abril, após a deflagração da Operação Venire. A operação prendeu seis pessoas, entre elas o tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e o ex-major do Exército Ailton Barros. Segundo a PF, o esquema funcionaria a partir da inserção de dados falsos no Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI) indicando que Bolsonaro, sua filha e alguns de seus auxiliares mais próximos constasse como vacinados contra a covid-19 quando, na realidade, eles não teriam sido imunizados contra a doença. Em entrevista na semana passada à rádio Jovem Pan, Bolsonaro negou qualquer irregularidade e voltou a dizer que não se vacinou. "Não existe adulteração de minha parte. Eu não tomei a vacina", disse o ex–presidente. Nos dias que se seguiram, porém, emissoras de TV como a CNN Brasil e a Globo News passaram a divulgar o conteúdo de mensagens de texto e de áudio que mostravam aliados de Bolsonaro discutindo um suposto plano a ser executado pelas Forças Armadas após a derrota do ex-presidente para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para impedir que o petista assumisse o governo. Fim do Matérias recomendadas As mensagens teriam sido interceptadas pela Polícia Federal após perícia em telefones celulares apreendidos dos suspeitos. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, as mensagens foram classificadas como "tratativas para a execução de um golpe de Estado". Segundo as mensagens, o plano envolvia, inclusive, que militares das Forças Armadas prendessem Moraes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As mensagens também mencionam o coronel do Exército e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde Antônio Elcio Franco Filho. A BBC News Brasil procurou a defesa do presidente Jair Bolsonaro e Mauro Cid para se pronunciarem sobre o assunto. O advogado de Bolsonaro, Marcelo Bessa, disse que só se manifestaria sobre o caso nos autos do processo. Por mensagem de texto, o assessor de imprensa de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, negou que o ex-presidente soubesse do teor das conversas. "Zero (conhecimento). Tanto que ele não aparece nos áudios", disse. A BBC News Brasil não conseguiu identificar quem faz a defesa de Ailton Barros. A defesa de Mauro Cid não respondeu aos contatos. De acordo com as informações divulgadas pela CNN Brasil e pela Globo News, as mensagens mostram, de um lado, Ailton Ramos repassando a Mauro Cid o que seria um plano a ser executado após a derrota de Bolsonaro nas eleições. Em outro momento, as mensagens mostram Elcio Franco detalhando sua versão do plano a Ailton Ramos. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o impacto das mensagens é grave uma vez que elas se tratariam de um plano de golpe de Estado tramado por pessoas muito próximas ao então presidente. Eles apontam, no entanto, que ainda há perguntas importantes sem resposta sobre o caso, especialmente em relação à suposta participação ou conhecimento de Bolsonaro sobre o assunto. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o conteúdo das mensagens é "gravíssimo" e podem levar os envolvidos à cadeia. Porém, eles apontam que ainda há pontos a serem esclarecidos, especialmente, em relação à possibilidade de envolvimento ou conhecimento de Bolsonaro sobre o suposto plano de golpe de estado. As principais perguntas que, segundo eles, ainda faltam ser respondidas são: Para o advogado especialista em direito eleitoral e constitucional Arthur Rollo, uma das questões a serem respondidas pela investigação é se Mauro Cid tomou alguma medida ao receber as mensagens de Ramos para impedir o ex-militar de continuar com o suposto plano. "O conteúdo das mensagens é gravíssimo. Podemos dizer que estamos diante de atos próximos à preparação de um golpe de estado. O que precisamos saber é se Mauro Cid tomou alguma medida ao receber essas mensagens porque se ele não tomou, isso poderia configurar prevaricação, que é quando um agente público deixa de reportar uma conduta errada ou criminosa mesmo tendo conhecimento dela", disse Rollo. Rollo explica que, diante do conteúdo das mensagens enviadas a Mauro Cid, o ex-Ajudante de Ordens teria a obrigação, como funcionário público, de denunciar o ocorrido para impedir que o suposto plano continuasse a ser discutido. "Caso ele não tenha feito isso, há implicações tanto na esfera criminal quanto na esfera administrativa. Ele pode ser punido se ficar comprovado que ele não tomou nenhuma medida", afirmou o advogado. O professor do Departamento de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rodrigo Kanayama, disse que saber se Mauro Cid fazia parte da trama supostamente elaborada por Ramos e Elcio também é importante. Ele diz que, como até agora, não foram divulgadas as respostas do ex-Ajudante de Ordens a Ramos, ainda não é possível responder a essa pergunta com precisão. "O simples fato de haver agentes públicos trocando mensagens com esse tipo de conteúdo já merece ser investigado. Agora, com base no conteúdo que já foi divulgado, ainda não dá para dizer se ele compactuava com isso. É preciso que as investigações avancem para responder isso", disse o professor. Kanayama também diz que é preciso que as investigações conduzidas pela Polícia Federal ajudem a responder se Bolsonaro tinha conhecimento sobre o que Elcio Franco e Ailton Barros discutiam. Na época em que o diálogo entre os dois se deu, Franco era assessor especial da Casa Civil, que funciona no Palácio do Planalto. Era considerado um nome próximo ao núcleo militar do governo de Bolsonaro. Foi após deixar o Ministério da Saúde que Franco assumiu um cargo na Casa Civil. Franco foi o número 2 do Ministério da Saúde durante a passagem do hoje deputado federal Eduardo Pazuello como ministro da pasta, entre 2020 e 2021. Por sua participação na condução da resposta do governo à epidemia de Covid-19, ele foi alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia. Ailton Barros, por sua vez, era um antigo aliado de Bolsonaro no Rio de Janeiro. Ele participou de eventos com o ex-presidente e era chamado por ele de "segundo irmão". Ele chegou a se candidatar a deputado estadual pelo Rio de Janeiro, mas não foi eleito. Nos pedidos de prisão e busca e apreensão feitos pela Polícia Federal, os investigadores citam que teriam sido encontradas evidências de que Barros, possivelmente, mantinha contato com Bolsonaro. "As imagens capturadas de diálogos indicam inclusive que Ailton Barros trocava mensagens sobre os referidos temas com o contato registrado como 'PR01', chamado pelo investigado de 'PR', possivelmente se referindo ao ex-Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, revelando sua atuação como um dos propagadores da ideologia professada pela milícia digital investigada", diz um trecho do pedido feito pela PF ao STF. O documento, no entanto, não cita se ou como Bolsonaro respondia às mensagens de Barros. A expectativa, neste momento, recai sobre a perícia que a PF já começou a fazer no telefone celular do presidente, apreendido pelos investigadores na semana passada. Além de saber se Bolsonaro tinha conhecimento do que Franco e Barros conversavam, a expectativa é de que a análise do conteúdo do celular do ex-presidente possa responder à última pergunta elencada pelos especialistas: se chegou a saber do que se discutia, que medidas Bolsonaro tomou a respeito? "É preciso ter muito cuidado porque não é porque um assessor ou alguém próximo como Mauro Cid ou Elcio Franco discutiam isso que, necessariamente, o presidente tinha conhecimento. Isso ainda precisa ser alvo de investigação. Até agora, não foi divulgada nenhuma mensagem indicando algo nesse sentido. Não se pode presumir nada. É preciso haver um vínculo direto", diz Arthur Rollo. O professor Rodrigo Kanayana concorda com Rollo. "Neste momento, não vi nenhuma mensagem expressa do ex-presidente autorizando a discussão sobre essa hipótese (golpe de estado). Isso é uma das coisas que a PF deverá investigar", disse. Kanayana afirma, porém, que Bolsonaro pode ser responsabilizado pelo simples fato de ter conhecimento sobre o suposto plano. A lógica seria a da prevaricação. "Só fato de ele saber e se omitir já seria suficiente. Ainda que não haja evidências de que ele participou do plano, se ele se omitiu, já cabe uma responsabilização. Se ele se envolveu diretamente, o problema seria ainda maior", explica o professor. No dia 15 de dezembro de 2022, Ramos teria enviado uma mensagem a Cid detalhando seu plano. Naquele momento, milhares de pessoas acampavam em frente a quarteis e unidades militares de todo o país pedindo uma intervenção militar para impedir que Lula tomasse posse. Apesar dos apelos de diversos segmentos da sociedade, o Exército não tomou medidas para retirar os acampados. "[...] entre hoje e amanhã, sexta-feira, tem que continuar pressionando o Freire Gomes (então comandante do Exército) pra que ele faça o que ele tem que fazer. Até amanhã à tarde, ele aderindo… bem, (sic) ele faça um pronunciamento. Então, se posicionando dessa maneira para defesa do povo brasileiro. E se ele não aderir quem tem que fazer esse pronunciamento é o Bolsonaro para levantar a moral da tropa que você viu, né?", diz um trecho da mensagem. "[...] a primeira coisa é essa. É esse pronunciamento ou do Freire Gomes ou do Bolsonaro até amanhã à tarde. E também, até amanhã à tarde, todos os atos, todos os decretos da ordem de operações já têm de estar prontos", prossegue Ramos. Em seguida, Ramos cita o plano para prender Alexandre de Moraes, apontado por militantes bolsonaristas como um dos principais adversários do ex-presidente. "Nos decretos e assim nas portaria que tiverem que ser assinadas, têm que ser dada a missão ao comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia de prender Alexandre de Moraes no domingo, na casa dele. Como ele faz com todo mundo", diz a mensagem. Não há informações sobre como Cid teria respondido a Barros neste episódio. No outro conjunto de mensagens divulgado, Elcio Franco e Ailton Barros conversam sobre o assunto. “O Freire (possível menção ao então comandante do Exército Freire Gomes) não vai. Você não vai esperar dele que ele tome à frente nesse assunto, mas ele não pode impedir de receber a ordem. Ele vai dizer, morrer de pé junto, porque ele tá mostrando. Ele tá com medo das consequências, pô. Medo das consequências é o quê? Ele ter insuflado? Qual foi a sua assessoria? Ele tá indo pra pior hipótese. E qual, qual é a pior hipótese?", indaga Elcio. Em outro trecho, Elcio Franco volta a mencionar uma suposta hesitação de Tomás Freire em tomar as medidas cogitadas por ele e Ailton Barros. Ele menciona até o que poderia ser alegado por Freire em um hipotético julgamento pelo Tribunal de Nuremberg, que julgou lideraças nazistas após a Segunda Guerra Mundial. "Ah, deu tudo errado, o presidente foi preso e ele tá (sic) sendo chamado a responder. [...] Eu falei, ó, eu, durante o tempo todo [ininteligível] contra o presidente, pô, falei que não, não deveria fazer, que não deveria fazer, que não deveria fazer e pronto. Vai pro Tribunal de Nuremberg desse jeito. Depois que ele me deu a ordem por escrito, eu, comandante da Força, tive que cumprir. Essa é a defesa dele, entendeu? Então, sinceramente, é dessa forma que tem que ser visto", disse Elcio Franco a Ailton Barros, segundo a CNN Brasil. Em outra leva de mensagens, ainda segundo a CNN Brasil, Barros voltou a falar, agora com Elcio Franco, sobre a necessidade de usar os militares para prender Alexandre de Moraes. “[É preciso convencer] o general Pimentel (provável menção ao general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel). Esse alto comando de m… que não quer fazer as p…, é preciso convencer o comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia a prender o Alexandre de Moraes. Vamos organizar, desenvolver, instruir e equipar 1.500 homens”, disse Barros.
2023-05-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn4ee72v7mvo
brasil
O que o SUS está ensinando ao serviço de saúde britânico
Bater nas portas das casas para verificar a condição de saúde das pessoas e detectar problemas antes que eles se agravem é uma prática comum no Brasil. Mas essa abordagem poderia funcionar no Reino Unido? As agentes Comfort e Nahima estão em sua rotina em Churchill Gardens, uma área localizada no bairro de Pimlico, em Londres. Vestidas com uma blusa de lã azul, as duas sobem constantemente as escadas de concreto de cada prédio dos quarteirões onde trabalham. Comfort, uma enfermeira aposentada, visitou Stanley Smithson, de 88 anos. Ele diz que "a solidão é um aspecto muito assustador da velhice", que ele não percebia até que uma de suas filhas se mudou para a Nova Zelândia. Nesse contexto, ele brinca que as visitas de Comfort representam exatamente o que o nome dela significa em inglês — um conforto. Fim do Matérias recomendadas "Ela está sempre de olho em mim. Percebo que ela está sempre anotando discretamente e fazendo algumas observações", diz Smithson. "E então, antes que eu perceba, recebo uma orientação para ir a uma clínica ou fazer um exame de sangue." Comfort e Nahima são duas de quatro agentes de saúde que atuam neste pequeno trecho da capital britânica. O grupo visita os residentes como parte de um projeto-piloto que envolve um esforço proativo de saúde comunitária. Os profissionais podem ajudar com diferentes questões — de problemas de moradia que afetam a saúde à detecção dos primeiros sinais de diabetes — ao conversar informalmente com os residentes sobre o estilo de vida que levam. A inspiração para a iniciativa vem de uma abordagem de saúde que tem funcionado nas regiões mais pobres do Brasil atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) durante as últimas décadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Comfort também pode oferecer assistência prática — uma vez ela ajudou Smithson a ajustar um corrimão no banheiro depois que ele passou por uma operação no quadril. Ela explica que o trabalho deve ter um escopo amplo. "Não estamos falando apenas de saúde, vamos além disso. Podemos fazer a conexão com a habitação e praticamente com qualquer coisa", avalia. Na visão de Comfort, os agentes têm, acima de tudo, tempo para ouvir o que os clínicos gerais nem sempre conseguem devido ao limite de tempo durante as consultas. Nahima também vai de casa em casa e não se intimida quando recebe uma recusa ou uma porta batida na cara. Ela diz que o trabalho requer paciência, mas pode fazer diferença para a saúde da comunidade. Certa vez, por exemplo, ela conseguiu resolver o enigma de por que uma determinada área tinha baixa procura por exames de rastreamento do colo do útero. "Tivemos várias mulheres que, por serem de diferentes populações étnicas, pensavam que o teste lhes custaria dinheiro", lembra. "Quando começamos o trabalho, havia um número baixo de mulheres que realizavam papanicolau. Mas, desde então, essa taxa disparou." Os agentes comunitários de saúde são parcialmente financiados pelos conselhos locais, ou a autoridade que representa cada região da cidade. A outra parte do dinheiro vem o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês), que é responsável por fazer a coordenação entre as clínicas de saúde locais e outros serviços sociais. O Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde do Reino Unido ajudou a processar os dados do projeto-piloto. Os domicílios que receberam visitas regulares tiveram 47% mais chances de aceitar as vacinas e 82% mais probabilidade de fazer o rastreamento do câncer, em comparação com outras áreas não atendidas. A ideia de importar esse modelo para o Reino Unido partiu de Matthew Harris, especialista em saúde pública do Imperial College London, que trabalhou como clínico-geral no Brasil durante quatro anos. Na experiência brasileira, os agentes comunitários de saúde foram diretamente responsáveis por uma queda de 34% nas mortes por doenças cardiovasculares. "No Brasil, eles escalaram esse papel a tal ponto que possuem atualmente 270 mil agentes comunitários de saúde em todo o país, e cada um cuida de 150 famílias, visitando-as pelo menos uma vez por mês", pontua Harris. "Eles tiveram resultados extraordinários em termos de saúde da população nas últimas duas ou três décadas. Acreditamos que temos muito a aprender com isso." Numa das unidades de saúde do bairro de Pimlico, em Londres, a médica Connie Junghans-Minton está convencida de que o projeto-piloto já está dando resultados, pois agora há menos solicitações de consultas desnecessárias. Ela diz que gosta do fato de os agentes comunitários de saúde serem uma espécie de "olhos e ouvidos" da comunidade "Esses profissionais descobriram problemas médicos reais que não teriam chegado ao nosso conhecimento de outra forma", destaca a médica. "Antigamente, o clínico-geral do bairro conhecia todo mundo, mas, hoje em dia, não temos mais isso e não há como resgatar esse passado. Esta iniciativa [dos agentes de saúde] parece ser um caminho natural a seguir." Outras áreas do Reino Unido já estão replicando a iniciativa — esquemas semelhantes já foram implementados em locais como Calderdale, West Yorkshire, Warrington e Cheshire, por meio de redes locais de atenção primária. Partes de Norfolk e da Cornualha também estão interessadas em seguir o mesmo exemplo. Segundo o Imperial College, implantar uma iniciativa do tipo em todas as áreas mais pobres da Inglaterra custaria cerca de 300 milhões de libras (R$ 1,8 bilhão). Os defensores apontam que esse investimento permitiria economizar muito dinheiro no futuro.
2023-05-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5ww8jryk0o
brasil
Por que visita de Celso Amorim à Ucrânia pode melhorar posição de Lula na reunião do G7
A visita do assessor especial da Presidência, Celso Amorim, à Ucrânia deve reduzir a percepção de potências ocidentais de que o Brasil se aproximou demais da posição de China e Rússia em relação à guerra no país do Leste Europeu e perdeu condições de neutralidade para levar adiante seu plano de criar “um grupo da paz” capaz de negociar o fim do conflit, avaliam analistas e diplomatas estrangeiros ouvidos pela BBC News Brasil. Amorim chegou na noite de terça-feira (9/5) e, segundo o Palácio do Planalto, fez o mesmo trajeto que o presidente americano, Joe Biden, e outros líderes globais até Kiev: desembarcou de avião na Polônia e seguiu de trem para dentro do território ucraniano. Em Kiev, Amorim deve se encontrar com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para ouvir as posições do país sobre a guerra e apresentar as intenções do Brasil de contribuir para alguma solução que interrompa o conflito que já se arrasta por mais de um ano. "O Celso Amorim foi conversar com [o presidente russo Vladimir] Putin, como meu emissário especial, e vai agora conversar com a Ucrânia. Aí a gente vai juntando essas conversas — é que nem palavra cruzada, vai juntando essas conversas e vamos ver quais são as palavras que permitem que as pessoas se sentem em torno de uma mesa. E para isso, tem que parar de atirar. Esse é o meu dilema", afirmou o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em Brasília, na terça. O timing da visita de Amorim é especialmente relevante para melhorar as condições de negociação de Lula, que chegará a Hiroshima, no Japão, no dia 19, para participar de reuniões com o G7 (grupo composto por Canadá, Estados Unidos, Japão, Itália, Alemanha, França e Reino Unido). Fim do Matérias recomendadas O Itamaraty nega que tenha havido coordenação entre a visita de Amorim a Kiev e a reunião de Lula com G7 e diz que a ida do assessor à Ucrânia foi condicionada apenas pela agenda das autoridades ucranianas. Brian Winter, editor-chefe da publicação americana Americas Quartely, faz outra avaliação. "Com certeza a visita é uma tentativa de recuar um pouco das declarações de Lula que soaram como linguajar russo e vai ajudar a melhorar o diálogo e o ambiente com o G7. Aliás, acho que tem mais chance de ser útil para o sucesso com o G7 e pra fazer andar outras pautas do Brasil, como meio ambiente e acordo comercial Mercosul e União Europeia, do que propriamente levar a algum processo de paz", afirma Winter. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo auxiliares do presidente brasileiro, Lula tentará convencer os líderes do G7 que o Brasil é a ponte ideal para reabrir algum tipo de diálogo entre o grupo e os BRICS (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). E também para restabelecer funcionalidade e governança ao G-20, grupo que reúne as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia e que entrou em crise severa após a invasão da Ucrânia. O Brasil presidirá o G-20 a partir do ano que vem. Esta é uma função que europeus e americanos já sinalizaram que gostariam de ver o Brasil desempenhar, segundo Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mas a relação entre o país e o G7 ficou estremecida depois de uma série de movimentos de Lula encaradas como parcialidade pró-Rússia e que geraram reações negativas dos Estados Unidos e da Europa. Primeiro, o presidente brasileiro enviou Amorim para um encontro com Putin em Moscou. Depois, sugeriu que a Ucrânia deveria abrir mão de parte de seu território em prol da paz. Na sequência, em visita à China, maior antagonista global dos americanos, Lula acusou os Estados Unidos de “promover a guerra”. Dias mais tarde, recebeu em seu gabinete, em Brasília, o chanceler russo Sergey Lavrov. Na ocasião, Lavrov disse, sem ser corrigido pelo chanceler brasileiro, Mauro Vieria, que Brasil e Rússia compartilhavam entendimento semelhante sobre a guerra. Ao mesmo tempo, os movimentos do governo brasileiro em direção aos ucranianos foram considerados insuficientes, segundo diplomatas americanos. Vieira e o ministro de relações exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, se encontraram na Alemanha, em fevereiro, e Lula teve uma ligação de vídeo com Zelensky, mas os brasileiros não demonstraram por vários meses interesse em visitar a Ucrânia. O G7 tem dado à Ucrânia ajuda financeira e militar desde que a Rússia invadiu o país. Essa é a primeira ação bélica no continente desde a Segunda Guerra Mundial e que alguns enxergam como uma tentativa de redefinir fronteiras na região. Para os americanos, a vitória de Putin representaria um trunfo de um governo autoritário sobre uma democracia - além de uma vitória de um inimigo histórico. Tão logo o governo Lula começou, o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, foi a Brasília tentar convencer o presidente brasileiro a vender munições à Alemanha que mais tarde seriam repassadas à Ucrânia. Lula se recusou dizendo que alguém teria que estar completamente fora do conflito para poder negociar a paz. As propostas de Lula para um clube da paz foram encaradas com ceticismo tanto pelo americano Joe Biden, quanto por Scholz e mesmo pelo presidente francês Emmanuel Macron. Ao mesmo tempo, o Brasil foi o único país dos BRICS a repetidamente condenar a invasão russa à Ucrânia no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). A sequência de derrapadas de Lula no tema foram uma “surpresa negativa” para americanos e europeus. Os Estados Unidos foram mais claros na reação. “O Brasil está papagueando a propaganda russa e chinesa sem observar os fatos em absoluto", disse a jornalistas o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby, sobre a acusação de Lula de que o país promovia a guerra. Peter Stano, porta-voz principal para Assuntos Externos da União Europeia, rechaçou equivalências de Lula sobre a responsabilidade de Ucrânia e Rússia pela guerra. "O fato número um é que a Rússia – e somente a Rússia – é responsável. Ela gerou provocações e agressões ilegítimas contra a Ucrânia. Não há questionamentos sobre quem é o agressor e quem é a vítima”, afirmou Stano. E complementou: "‘Os Estados Unidos e a União Europeia trabalham juntos, como parceiros de uma ajuda internacional. Estamos ajudando a Ucrânia em exercícios para legítima defesa”. No fim de abril, na visita de Lula a Portugal e Espanha, reservadamente, diplomatas europeus deixaram clara a insatisfação com o posicionamento do líder brasileiro, segundo diplomatas brasileiros com conhecimento das conversas. Ainda em Portugal, Lula decidiu anunciar que mandaria Amorim a Kiev. Em Madri, calibrou o discurso público para deixar claro que não considerava Rússia e Ucrânia igualmente culpadas pela guerra. Mas ainda não parecia o suficiente, como deixou claro a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield. Embora o Itamaraty negue que houve coordenação para que a visita de Amorim à Ucrânia antecedesse a ida de Lula ao G7, o governo brasileiro sabe que a Ucrânia será um assunto obrigatório na agenda em Hiroshima. A ida de Celso Amorim à Kiev melhora a posição diplomática do Brasil, relataram assessores de Lula, e o presidente pretende ainda ganhar a atenção de europeus e americanos para tentar ajudar a Argentina a negociar sua dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). “A visita do Celso Amorim a Kiev é fundamental para o Brasil se projetar como um ator minimamente neutro, sobretudo depois do mal estar gerado com o assunto recentemente”, afirma Stuenkel, da FGV. “Eu perguntei a um diplomata europeu hoje sobre o quanto a visita melhorava a perceção sobre Lula. Ele disse 'muito pouco, muito tarde'. Mas isso não é necessariamente representativo, porque não há no Ocidente, a meu ver, uma resistência estrutural ao Brasil assumir um papel mais relevante para o fim da guerra.” Mesmo se Lula melhorar sua posição no tema, as expectativas são baixas de que uma mediação pela paz possa surtir efeito em breve. Após o inverno europeu, russos e ucranianos se preparam pra contraofensivas e parecem apostar mais em uma vitória no campo de batalha do que em uma solução negociada. Brian Winter, porém, questiona se qualquer movimento brasileiro junto aos ucranianos poderá surtir efeitos práticos mesmo no longo prazo. "Os diplomatas europeus ficaram ainda mais irritados com as palavras de Lula do que os americanos. E, com todo o respeito a ele, Lula acabou perdendo a confiança de Kiev, vai ser difícil reconstruir."
2023-05-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cll119mmrvpo
brasil
A embaixadora que luta por espaço para mulheres no Itamaraty: ‘Somos deixadas de lado’
A embaixadora Irene Vida Gala tornou-se nos últimos anos uma das principais vozes na luta por mais espaço para mulheres no Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, e assumiu de vez a frente desta mobilização como presidente da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB). Desde que tomou posse, a embaixadora fez críticas abertas às indicações do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) às chefias de embaixadas e representações do Brasil em organismos internacionais. Na lista inicial de 26 nomes, conforme um monitoramento da AMDB, havia 24 homens e duas mulheres, números que Gala diz serem "vergonhosos" e que indicavam uma falta de disposição do ministro Mauro Vieira, que comanda o Itamaraty, em alterar o quadro de desigualdade de gênero na instituição. "Minhas críticas não foram aos nomes em si, porque todos têm condições de ocupar os postos. Critiquei a opção por homens quando haveria mulheres igualmente habilitadas", diz Gala à BBC News Brasil. Na quinta-feira (11/5), o ministro Mauro Vieira estará na comissão de Relações Exteriores do Senado para falar sobre a política externa brasileira. Fim do Matérias recomendadas Também estão previstas as primeiras sabatinas dos novos embaixadores indicados pelo governo Lula. Além de serem submetidos à comissão, os nomes precisam ser aprovados pelo plenário do Senado. Desde que a primeira lista foi anunciada, mais um homem e uma mulher foram indicados para a chefia de embaixadas e representações internacionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outras quatro mulheres devem assumir embaixadas, segundo fontes do Itamaraty. Os nomes já foram escolhidos e aguardam a chancela dos países onde ficam os postos - procedimento de praxe antes de serem confirmados. Gala avalia que isso já é um reflexo da mobilização da sua associação. "A chefia do Itamaraty entendeu o equívoco que havia cometido ao fazer uma indicação absolutamente vergonhosa e está fazendo correções. Reconhecemos este esforço. De todo modo, os números ainda são francamente desfavoráveis às mulheres", diz a embaixadora, que inclui nesta conta as indicações para o comando dos consulados - de sete homens e uma mulher, até agora -, que não precisam ser aprovadas pelo Senado. Outro efeito, acredita ela, foi a nomeação da embaixadora Maria Laura da Rocha para a secretaria-geral, segundo cargo mais importante da pasta, e de Maria Luísa Viotti para chefiar a embaixada em Washington, uma das mais importantes. Ambas são as primeiras mulheres nesses postos. "Isso é fruto de uma luta por visibilidade para mulheres. Basta? De jeito nenhum. Uma mulher não vale por todas as outras. Então, a gente fez um gol ou, se você quiser, dois, mas tomou vários. Não é uma vitória. A gente ainda está perdendo feio esse jogo. Mas a gente não quer virar a partida. A gente quer empatar, ficar em igualdade de condições com nossos colegas." Procurado pela BBC News Brasil, o Itamaraty afirmou que "a atual gestão, além das inúmeras medidas tomadas em quatro meses nas áreas de gênero e de diversidade, abriu canal direto de diálogo institucional, que continua à disposição da AMDB". O Palácio do Planalto não respondeu ao contato da reportagem. A AMDB foi criada em janeiro para expor publicamente as demandas das mulheres na carreira diplomática. Isso inclui desde questões cotidianas da profissão à participação das mulheres na condução da política externa brasileira. Gala diz que houve avanços nesse sentido na diplomacia nacional desde que Maria José de Castro Rebello Mendes se tornou a primeira mulher a ingressar na carreira, há 105 anos. Mas ainda é pouco, diz Gala. Pelas contas oficiais, as mulheres representam 23% dos diplomatas e cerca de 12% dos cargos de chefia no exterior. À frente das secretarias, o segundo escalão da pasta, são 30%. Números ainda bem abaixo da proporção feminina na população em geral, de 51,1%, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021. O que Gala e a AMDB almejam é alcançar essa paridade também no Itamaraty, especialmente nos cargos de liderança, com a criação de metas e prazos. "Nosso mérito não está sendo reconhecido. Somos deixadas de lado. É uma estrutura que compromete a saúde física, moral e mental das diplomatas", afirma a embaixadora. Há 39 anos no Itamaraty, Gala é hoje ministra de primeira classe, o patamar mais alto que um diplomata pode alcançar. Ela fez sua carreira principalmente na África, em países como Zâmbia, Guiné-Bissau, Angola, África do Sul e Gana - no último, foi embaixadora -, e também trabalhou em Portugal, nos Estados Unidos e na Itália. Hoje, é subchefe do escritório de representação do Itamaraty em São Paulo. Gala diz que, ao longo desses anos, aspirou por posições de chefia que não alcançou, "porque o lugar estava reservado para um homem". Porém, reconhece que "passou bem pelos desafios". "A questão é que esses desafios foram de tal monta que várias não conseguiram passar. No conjunto, as mulheres ficaram para trás. Por isso, a gente tem os números que tem hoje. Eu saí bem na foto. Quantas não chegaram a tirar a foto? Essa é a pergunta", diz Gala. Confira a seguir os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - Neste ano, completa 105 anos que a primeira mulher começou a trabalhar no Itamaraty. O que mudou desde então? Irene Vida Gala – Mudou a posição da mulher na sociedade brasileira. O Itamaraty é um reflexo do que a gente vê fora dos muros da própria chancelaria. Há 105 anos, a mulher não estava no espaço público. Salvo raríssimas exceções, o caso da Maria José, que entrou em 1918, é essa exceção. Hoje, a mulher ocupa o espaço público e, portanto, isso também se alterou na chancelaria, na organização, reflexão e na execução da política externa brasileira. Uma coisa que gosto muito de lembrar é que a Maria José foi a primeira mulher funcionária pública concursada da história do Brasil. Isso coloca o Itamaraty em uma vanguarda no tocante à questão das mulheres. BBC News Brasil - Ao mesmo tempo, a senhora diz que as mulheres são invisíveis e inexistentes no Itamaraty ainda hoje. Por quê? Gala – Nosso mérito não está sendo reconhecido. Então, isso abre chagas, porque nós somos deixadas de lado. Não porque a gente tenha dúvida sobre nosso mérito, mas os colegas simplesmente não nos incluem. A invisibilidade se dá pela desqualificação da mulher. Os homens não têm o hábito de olhar para as mulheres e as entenderem como interlocutoras nos assuntos de Estado. Mais uma vez, o Itamaraty reflete o Brasil. Se a gente olha a política brasileira, a gente vê como é difícil. As mulheres têm que lutar por seu espaço, porque os colegas não reconhecem esse espaço, simplesmente não veem a mulher como parte do processo. Eles vão chamar outros homens, mas não vão chamar as mulheres. Temos algumas exceções, e, na atual gestão do Itamaraty, quero fazer um justo reconhecimento ao embaixador André Corrêa do Lago, que escolheu três mulheres para serem chefe dos departamentos submetidos à área dele. Isso é muito legal. Ele não está fazendo uma ação afirmativa. Está apenas reconhecendo o mérito que aquelas colegas têm, porque elas são as pessoas mais habilitadas para tratar daquele assunto. Ele enxerga a mulher. BBC News Brasil - Alguns tinham a expectativa que uma mulher pudesse ser nomeada pela primeira vez para ser chanceler no governo Lula. Isso não ocorreu. Por quê? Gala – Tive a oportunidade de tratar desse assunto pessoalmente com o presidente Lula. Ele se mostrou bastante sensível quando mencionei as vantagens que haveria para o Brasil ter uma chanceler, porque a vantagem não é da chanceler, não é do Itamaraty. A vantagem é do Brasil. No momento em que o Brasil vinha saindo de uma crise de visibilidade externa durante o período do governo anterior e que Lula queria se inserir no plano internacional com uma proposta de vanguarda, que reconhecia várias agendas, como a de direitos humanos, a luta contra a pobreza, a igualdade, a diversidade. Então, colocar uma mulher como face externa do Brasil, que é a chancelaria, seria indicar para o mundo que de fato havia um governo 100% comprometido. O presidente ouviu com muito interesse, e a imprensa chegou a dizer, em algumas ocasiões, que ele gostaria de ter uma mulher chanceler. Mas acho que ele foi dissuadido disso com base em argumentos do tipo ‘olhe os currículos’. BBC News Brasil – Dissuadido por quem? Gala - Bom, aí deixo para que cada um faça sua avaliação. Não sei dizer. Estou convencida que ele tinha simpatia pela ideia, porque conversei com ele. Vi como reagiu. Lula chegou inclusive a mencionar o nome de algumas mulheres que ele conhecia na carreira. Ele tomou a iniciativa de mencionar isso. Então, acredito que ele foi realmente dissuadido. Tem muita gente no seu entorno. Tendo a acreditar que não foi uma mulher. Terá sido um entorno masculino que o fez ficar preso a um aspecto formal dos currículos. O que define hoje a qualidade de um eventual chefe da chancelaria é exclusivamente o currículo. E, contra fatos, não há argumentos. Os melhores currículos não eram os de mulheres. O currículo do ministro Mauro Vieira é absolutamente louvável. Eu aplaudo. É realmente fantástico. Nada poderia se equiparar entre as mulheres ao seu currículo. Ele tem todas as condições de ser um excelente chanceler. Mas, se as mulheres não têm currículo, porque nunca lhes foi permitido construir um e nunca chegaram a uma posição de poder, não se pode pedir das mulheres um currículo. O que me pergunto - e várias de nós nos perguntamos dentro do Itamaraty e também na sociedade - é se apenas o currículo seria suficiente. O que que a gente precisava naquele momento? Mesmo sem ter currículo, não haveria mulheres que poderiam entregar resultados muito positivos? Uma mulher não teria condições e qualidades altamente valiosas? BBC News Brasil – Como a senhora avalia as indicações feitas até agora pelo governo Lula para os cargos de liderança no Itamaraty? Gala – Observando as primeiras indicações para embaixadas e organismos internacionais, faltou disposição política de reconhecer o talento de mulheres. No segundo escalão, havia quadros com competência para construir uma secretaria de qualidade e se optou por fazer 30% [das mulheres nos cargos]. Minhas críticas não são aos nomes em si, porque a qualidade dos colegas não está em jogo. Todos eles têm condições de ocupar os postos, e é natural que sejam escolhidos. Critiquei porque as indicações deixavam de contemplar um número mínimo de mulheres e a opção por homens quando haveria mulheres igualmente habilitadas. Faltou disposição de assegurar uma presença feminina relevante nas indicações feitas logo no início da gestão. O ministro de Estado e a secretária geral têm dito repetidas vezes que a presença feminina no Itamaraty é de 23%. Então, o ministro está usando o critério da proporcionalidade. Portanto, se nós somos 23%, ter 30% está muito bom. Quem tem compromisso com a diversidade não se pauta pela proporcionalidade. Ela representa a manutenção do status quo. Se a gente continuar nesse padrão, dos 23%, nós vamos ficar 50, 60, 80 anos, para alcançar um dia a paridade, que é o que a sociedade brasileira espera. A legitimação do espaço da mulher no poder foi uma escolha das urnas. Foi um compromisso do presidente Lula, e ele tem demonstrado isso. Os ministérios associados mais diretamente a ele têm demonstrado essa vocação de incluir mulheres. No Itamaraty, falta isso. BBC News Brasil - Desde então, outra mulher foi indicada para chefiar uma embaixada, e fontes do Itamaraty apontam que mais quatro serão e só aguardam a chancela dos países onde estão estes pontos. Gala - Sobre esses nomes, se dizem que haverá… Cabe aguardar e observar, se oportuno, para fazer uma análise. Caso se confirmem, já serão um reflexo da denúncia que começamos a fazer a partir das primeiras indicações. Mandamos cartas para os senadores da comissão de Relações Exteriores para dizer que eles tinham que zelar pelarepresentatividade. Foi uma atitude bastante inusitada, e isso em certa medida pode ter surpreendido a chefia do Itamaraty. Reconhecemos que está havendo um esforço para corrigir os números absolutamente vergonhosos da primeira lista. Diante da legítima reclamação, perceberam o equívoco. De todo modo, os números ainda são francamente desfavoráveis às mulheres. BBC News Brasil - Ao mesmo tempo, mulheres foram indicadas para a secretaria-geral e a embaixada em Washington pela primeira vez. O que isso representa? Gala - Isso é fruto de uma luta por visibilidade para mulheres e representa um gol nosso. Ou, se você quiser, dois gols. Pela primeira vez, a gente tem uma mulher na secretária geral, o que é muito bom, na medida em que não foi possível ter uma chanceler. Uma mulher está indo para embaixada em Washington. Isso basta? De jeito nenhum. Uma mulher não vale por todas as outras. Então, a gente fez um gol, mas tomou vários. Não é uma vitória. Se a gente concluir esse primeiro ano de governo com uma série de nomes de mulheres em posições importantes, obtendo um justo e legítimo reconhecimento, e tiver uma clara indicação de que há um compromisso com a diversidade, de que há metas, prazos, então, a gente vai ter uma vitória. No momento, a gente ainda está perdendo feio esse jogo. Mas a gente não quer virar a partida. A gente quer empatar, ficar em igualdade de condições com nossos colegas. O fato de estarmos denunciando números que são vergonhosos faz com que o ministério e a chefia sejam levados a falar do assunto. Onde é que estamos? Onde estão os talentos femininos? O que a gente espera é que haja paridade. A sociedade quer isso. Só que o Itamaraty está muito relutante. É um desgaste muito grande para todas nós ter que lutar por cada centímetro do espaço que a gente precisa conquistar. É importante entender qual é o ethos do Itamaraty, que é uma instituição historicamente encapsulada dentro de si própria. A Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, que eu presido, é a a primeira instituição que vem para fora dos muros do Itamaraty e diz que o que está acontecendo lá dentro, manter a diplomacia na mão de alguns homens, não é bom para o Brasil. BBC News Brasil - O ministro Mauro Vieira afirmou que houve avanços no Itamaraty, mas que não é possível atingir a paridade agora diante de um percentual de 23% de mulheres na diplomacia. Gala - Ele mostra desconhecer o debate sobre diversidade. Ao falar do assunto, o ministro usou o critério da proporcionalidade, mas em nenhum momento ele disse que não havia mulheres competentes para ocupar 50% dos cargos. Ele fugiu da questão ao ficar restrito a uma questão de representatividade numérica. Isso é uma falta de convergência com o discurso atual contemporâneo em torno da questão. O ministro e a secretaria-geral têm insistido que é preciso que haja mulheres entrando na carreira. A base tem que ser corrigida, mas você não pode esperar a base se recuperar. É a mesma coisa com as cotas nas universidades. Muita gente defende que tem que melhorar a escola básica. Mas, enquanto não há essa melhora, a gente tem que adotar medidas afirmativas para que essas pessoas possam entrar na faculdade. Sou uma ativa militante pela entrada de mais mulheres na carreira diplomática, umas das que mais tm atuado nesse sentido ao longo dos últimos anos. Mas isso de maneira nenhuma cumpre tudo o que é preciso fazer. Temos mulheres para ocupar chefias em número maior do que a sua proporcionalidade. Nós temos uma contribuição a dar como mulheres na formulação e execução da política externa, que hoje está sendo deixada de lado. Essa nossa qualidade, esse aporte diferenciado, está sendo absolutamente descartado. Isso a gente não pode aceitar. BBC News Brasil - A senhora afirmou que esse cenário delineado de desigualdade em postos de liderança é um "caso explícito de assédio moral" contra mulheres diplomatas. Por quê? Gala – Defendo que se trata de um assédio moral por três aspectos. O primeiro é que isso desqualifica uma profissional. No assédio moral, o chefe ou os colegas desqualificam o valor de alguém. Quando a seleção de nomes para ocupar o segundo escalão do Itamaraty, chefias de embaixadas e missões importantes não recai sobre mulheres que têm competência e talento, o que se está fazendo é desqualificar a profissional. O segundo componente é que o assédio faz as pessoas se sentirem mal, ficarem doentes. O que nós vemos é um quadro que hoje deixa profundamente abaladas as mulheres na carreira diplomática. Cumprimos todos os mesmos requisitos, sem exceção, que nossos colegas homens. E, hoje, nós somos preteridas. O assédio pode ter um impacto coletivo, como nesse caso. É nítido que isso afeta o conjunto das mulheres diplomatas brasileiras. Produz uma doença em cada uma de nós associada à nossa autodesqualificação, nossa frustração. A invisibilidade nos torna cidadãs menores dentro da carreira. É uma estrutura que compromete a saúde física, moral e mental das diplomatas. O terceiro componente do assédio é a intencionalidade do gestor ou do chefe, no caso, quando a gente está falando de uma estrutura hierárquica. A intencionalidade existe, porque (as indicações) são um ato discricionário do ministro, se não há nenhum tipo de procedimento republicano para a seleção. BBC News Brasil – O Itamaraty é machista? Gala – Não gosto de colocar nesses termos, porque simplifica uma coisa que é mais sofisticada. Machismo é um termo antiquado. Isso já passou, porque a absoluta maioria dos colegas, se têm que negociar com a gente, reconhece a capacidade do nosso trabalho. Não estão nos maltratando individualmente. Cada vez mais, temos colegas homens que defendem plenamente essa incorporação da presença feminina. O que há, na verdade, é uma competição por espaços de poder. No Itamaraty, eles são ocupados por homens. Para as mulheres entrarem, os homens vão ter que sair. É simples assim. Há um clubismo. São estruturas de poder historicamente construídas em torno de núcleos masculinos. Há um espírito de corpo masculino que se preserva e que não mostra nenhuma disposição de abrir espaço para as mulheres e que continua usando as suas estruturas de legitimação entre os homens. Esse bloco ascende junto. Os homens que estão nesses grupos e que estão sentindo a pressão que está vindo da sociedade, da imprensa, dos parlamentares por haver mulheres. Eles estão se sentindo acossados no lugar que, de direito, sempre foi deles. A própria secretária-geral e a embaixadora Viotti são um pouco o rompimento disso e produz inclusive uma reação. Então, enquanto as mulheres não forem capazes de romper esses blocos, nós vamos ter dificuldade em alcançar a paridade. Por isso, a gente precisa de ações afirmativas para romper esses nichos de poder masculino. BBC News Brasil – Estamos falando de cotas? Gala - Não gosto de falar de cotas. Hoje em dia, a gente fala de metas. O que a gente quer são medidas afirmativas no sentido de definição de metas, prazos, mecanismos de supervisão do alcance destas metas. Uma coisa que é muito importante sobre a diversidade é que não é só sobre gênero. A gente precisa de uma diversidade com relação aos negros, indígenas, da comunidade LGBT. Temos que olhar a questão das mulheres sob uma perspectiva muito mais ampla. A gente luta por um Itamaraty mais diverso. BBC News Brasil – A senhora já chegou a tratar desse assunto com o ministro? Gala - Não tive a oportunidade. Ele nos honrou muito com sua presença na criação da nossa associação. Ficamos realmente agradecidas. Mas nossa associação buscou um diálogo privilegiado com o ministro e com a chefia do Itamaraty, mas não tivemos resposta positiva. Houve a iniciativa de promover diálogos sobre equidade de gênero, raça, pessoas com deficiência. O ministério convidou todo mundo para participar do diálogo de gênero. Vejo isso como uma forma de esvaziar nossa representação. Se nós somos uma associação legalmente constituída, que representa 2/3 das mulheres do Itamaraty, o fato de não querer tratar de gênero conosco e de levar a questão para uma ampla assembleia, é uma tentativa de nos esvaziar. Mas a gente entende. É uma demonstração de que há uma dificuldade de conviver com um grupo que representa 2/3 das mulheres diplomatas. BBC News Brasil – Por que a associação foi criada? Gala – Ela foi criada após dez anos de existência de um grupo informal de mulheres que se reunia por meio de plataformas digitais para discutir temas que eram de interesse dessas mulheres, desde ter uma sala de amamentação no Itamaraty – que não tinha até recentemente - até questões como assédio ou sermos transferidas dentro dos prazos escolares. Porque, se eu sou mãe solo e eu tenho que levar meu filho, não posso sair no meio do ano escolar. As mulheres desse grupo tentaram conversar com a administração, houve alguns avanços, que foram interrompidos no último governo. Quando chega o presidente Lula, há uma possibilidade de um diálogo amplo, transparente e construtivo. As diplomatas entenderam que era o momento delas se constituírem como associação e apresentarem legitimamente em público suas pautas, que incluem questões do dia a dia até questões mais amplas que dizem respeito à concepção e condução da política externa e na construção de uma política externa feminista. BBC News Brasil - A senhora sempre foi muito vocal em relação a esse tema. Podemos dizer que hoje é uma liderança dessa mobilização por mais espaço para mulheres no Itamaraty? Gala - Não tenho dúvida disso. Deram esse mandato a mim e à diretoria. O Itamaraty ainda é uma instituição muito orientada por uma hierarquia. A associação queria se pautar publicamente, mas entregar a presidência a uma colega de nível hierárquico inferior a embaixadora poderia coloca-la em uma condição de muita vulnerabilidade para construir uma carreira. Então, pediram que eu, sendo uma embaixadora antiga, assumisse essa posição. É um embate difícil. Preferia que não fosse. Preferia que nosso diálogo fosse construtivo. Até o momento, a gente não tem encontrado espaço para construir esse diálogo positivo. Preferia estar discutindo políticas e prazos para a maior presença das mulheres em cargos em que elas têm condições de ocupar. Infelizmente, a gente não está nesse momento ainda, por isso nossa opção de fazer denúncias, porque não nos tem sido dado espaço para negociar. BBC News Brasil – A senhora tem algum receio de sofrer algum tipo de retaliação? Gala - Durante o governo Bolsonaro, passei quatro anos denunciando as idiossincrasias de uma política externa e de uma gestão que entendia ser contra os interesses do Brasil. Passei quatro anos me expondo publicamente e, felizmente, não sofri nenhuma represália. Não acho que vai ser agora, em pleno regime de liberdades amplas, que vou sofrer. Estou muito confortável, tenho o apoio de grande parte das minhas colegas e sei que estamos do lado certo da história. BBC News Brasil - O que a levou a assumir a frente desta mobilização? Gala - Sempre fui uma pessoa que escolheu uma carreira um pouco diferente. Muitos colegas fazem uma carreira centrada na Europa e na América Latina. Eu fui para a África. Construí minha carreira com base em estruturas de mérito exclusivamente. Eu não tinha na África um espaço de poder onde você se associa a outras pessoas e pega emprestado seu prestígio. Então, isso me deu condições de ter, vamos dizer assim, um protagonismo temático. Também é um pouco a natureza da minha personalidade. Tem pessoas que são mais receosas, outras são menos. Sou do time das menos receosas. No início da minha carreira, fui trabalhar, por exemplo, em um país em guerra. As pessoas falavam para mim "você é mulher sozinha". Eu falei "qual o problema?". Tive um chefe que disse que gostaria de me mandar para trabalhar num consulado de fronteira. Eu perguntei por quê. Ele disse "porque você carrega a faca na bota". Acho que desde muito cedo fui construindo uma persona no Itamaraty de alguma independência, de alguma capacidade de construir meu próprio caminho. Hoje, a minha independência é o prestígio da minha carreira, e isso me permite usar esse lastro para poder defender uma causa profundamente legítima. BBC News Brasil - Quais obstáculos a senhora enfrentou por ser mulher? Gala – Quando entrei na carreira, nós mulheres não tínhamos exemplos femininos, mulheres em quem a gente se espelhasse. Construímos nossa carreira meio que mimetizando os homens para assegurar nossos espaços. Hoje, vejo que o processo foi especialmente dolorido, porque a gente teve que perder um pouco da nossa identidade. Ninguém nunca me disse que não ocupei tal posto porque sou mulher, mas eu não fui para postos para os quais eu estava totalmente habilitada porque não fazia parte dos grupos de poder. Aspirei por posições de chefia que não alcancei. As mulheres são preteridas porque tm que entrar alguém do time do clubinho dos homens. Então, fui preterida porque o lugar estava reservado para um homem. Mesmo agora, houve mulheres – e não quero citar nomes - que foram preteridas para assegurar o espaço dos homens. Fiz minha carreira com muita coragem e nunca me deixei intimidar pelos homens. E homens foram meus aliados. Aliás, eu acho que a grande maioria das colegas diplomatas vai dizer que homens participaram das carreiras delas e deram contribuições positivas. Na minha turma, éramos dez mulheres. Seis chegaram a ministras de primeira classe, o máximo da carreira. Não sei se há turmas de homens que chegaram a ter 60%. Então, fomos uma turma de mulheres que nos apropriamos de um novo espaço e nos solidarizamos, construímos juntas. Quebramos juntas um teto de vidro. Construímos uma nova história no Itamaraty. Então, eu passei bem pelos desafios. A questão é que esses desafios foram de tal monta que várias não conseguiram passar. O fato é que, no conjunto, a gente vê que as mulheres ficaram para trás. E é por isso que a gente tem os números que a gente tem hoje. Eu saí bem na foto. Quantas não chegaram a tirar a foto? Essa é a pergunta. BBC News Brasil - A senhora acredita que, ainda na sua carreira, verá a paridade de gênero ser alcançada no Itamaraty? Gala - Acho que sim. Por que a paridade, como eu disse, não é em todas as áreas e funções. A paridade é sobretudo para ocupar espaços de liderança. A liderança é a medida da paridade, porque funciona como fator definidor de políticas. Quando digo que a mulher tem uma contribuição a dar, a mulher líder vai construir políticas diferenciadas em vários segmentos. Não se trata de ter 50% de mulheres na carreira. Isso talvez demore mais tempo do que a minha sobrevida na carreira diplomática. Mas a paridade na liderança, nas posições de destaque, acho perfeitamente possível de se fazer em um período de tempo pequeno. O ministro tem todas as condições de produzir uma sucessora na medida em que ele garanta espaços de representação política relevante para mulheres. Ele está contribuindo para que mulheres possam aspirar à apresentação de belos currículos. Se a questão é currículo, as mulheres vão ter belos currículos. Então, meu desejo é que o ministro tome para si a disposição de fazer uma chanceler e prepare mulheres para ocupar essa posição. É claro que vai depender de quem for o novo presidente da República. Ainda falta muito tempo, mas o ministro tem condições de dizer "eu fiz minha parte, deixei uma lista de mulheres perfeitamente aptas a serem indicadas", seja pelo currículo, seja pela sua liderança reconhecida, seja pelas oportunidades que tiveram, inclusive, de se mostrar politicamente. Então, acho que o próximo chanceler será uma mulher, e espero que seja fruto de uma ação propositiva do ministro.
2023-05-09
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brasil
David Miranda: quando uma infecção intestinal pode se agravar?
O ex-deputado David Miranda (PDT-RJ) morreu nesta terça-feira (9/5) aos 37 anos, após ficar quase nove meses internado numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por causa de uma infecção gastrointestinal. A morte foi confirmada pelo jornalista americano Glenn Greenwald, marido do político e ativista. Segundo informações divulgadas pela família nas redes sociais, Miranda foi internado em 6 de agosto de 2022 numa clínica no Rio de Janeiro para tratar uma infecção gastrointestinal. O quadro, porém, teve complicações e gerou infecções sucessivas, além de pancreatite (inflamação do pâncreas) e sepse (inflamação generalizada do organismo). Mas que fatores podem estar por trás do agravamento de uma doença tão frequente como a infecção gastrointestinal? Fim do Matérias recomendadas Antes de entrar nos detalhes sobre essa enfermidade, vale ressaltar que as informações compartilhadas a seguir são gerais, e não refletem a condição específica de David Miranda. Elas têm como fonte os estudos científicos sobre o tema e consensos de sociedades de especialistas, mas é claro que podem variar de acordo com a situação de cada paciente — portanto, só a avaliação médica individualizada será capaz de fornecer orientações específicas para cada caso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre os possíveis causadores dessa condição, estão os vírus, as bactérias, os parasitas e os fungos. Dessa lista, os agentes mais comuns são os vírus. “Os principais patógenos desse grupo que afetam o sistema digestivo são os norovírus, os rotavírus e os adenovírus”, lista a gastroenterologista Débora Poli, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, que não esteve diretamente envolvida com o caso do ex-deputado. Apesar de frequentes, as infecções virais do sistema digestivo costumam ser mais leves. Na sequência, aparecem as bactérias. Elas estão por trás de gastroenterites um pouco mais graves, com sintomas mais fortes e difíceis de tratar. Entre as espécies que causam o problema com frequência, destacam-se a Salmonella, a Campylobacter, a Shigella, a Clostridium e a E. coli. Nesses casos, a infecção acontece geralmente pelo consumo de comidas contaminadas com esses micro-organismos, como maioneses que ficaram fora da geladeira ou carnes cruas ou mal passadas. “Em cerca de 95% dos casos, o paciente só necessita de repouso e hidratação. Isso é suficiente para que o organismo tenha condições de se recuperar”, calcula Poli. Quando a infecção está mais intensa e há fortes suspeitas de que ela é causada por bactérias, o médico também pode receitar o uso de antibióticos. Essa classe de remédios vai conter o crescimento dos micro-organismos na região afetada. Mas há situações em que a gastroenterite pode gerar consequências mais graves. Segundo o mesmo estudo americano, quadros agudos de diarreia infecciosa estão entre as doenças mais comuns em todo o mundo. Elas estão associadas a 1,5 a 2,5 milhões de mortes a cada doze meses. Esses episódios costumam ser bem mais graves em crianças menores de cinco anos — essa é a segunda principal causa de morte de origem infecciosa nessa faixa etária. Para ter ideia, todos os anos as gastroenterites exigem 1,5 milhões de consultas em serviços de emergência e 200 mil internações de crianças pequenas só nos Estados Unidos. Indivíduos mais velhos, acima dos 60 anos de idade, também são mais vulneráveis aos efeitos da infecção gastrointestinal. “Outro grupo que pode ter infecções severas são os portadores de doenças crônicas, como diabetes ou câncer, ou pacientes que estão com o sistema imunológico debilitado”, acrescenta Poli. Nesses indivíduos, uma gastroenterite bacteriana aparentemente simples pode se agravar — o que gera uma reação exagerada das células de defesa (quadro conhecido como inflamação) ou episódios repetidos de infecção no sistema digestivo. Mas Poli reforça que situações como essa são mais raras quando o assunto é gastroenterite. “Em linhas gerais, mesmo o paciente que precisa de UTI costuma ficar cerca de 24 ou 48 horas nos cuidados intensivos e se recupera bem”, diz. Segundo a médica, o principal motivo que demanda o cuidado em UTI é a desidratação extrema, em que o indivíduo não tem líquidos e sais minerais suficientes para o funcionamento do corpo. Com isso, órgãos vitais (como os rins e o coração) podem falhar — e é necessário estabilizar todos os parâmetros do corpo antes de receber alta. Porém, às vezes, o próprio ambiente hospitalar pode ser a fonte de uma complicação. “O paciente internado em UTI por qualquer motivo de saúde corre um risco maior de sofrer infecções oportunistas e, com isso, os problemas acabam se acumulando”, destaca a gastroenterologista. Ainda segundo a médica, existem alguns sinais da infecção gastrointestinal que exigem uma visita imediata ao pronto-socorro. “Se a pessoa está com febre alta que não diminui, não consegue se hidratar adequadamente sem colocar o líquido para fora, sente um mal-estar muito grande, está pálida ou apresenta sangramento nas fezes ou no vômito, é importante buscar uma avaliação”, pontua. “Também é necessário visitar um especialista se aqueles sintomas iniciais de vômito, diarreia, mal-estar e febre não vão embora depois de 24 ou 48 horas”, conclui Poli.
2023-05-09
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brasil
Morre Rita Lee: relembre a trajetória da rainha do rock brasileiro
Morreu nesta segunda-feira (8/5), aos 75 anos, Rita Lee, considerada a rainha do rock brasileiro por seu papel fundamental no gênero e uma das artistas mais versáteis da música brasileira. A família divulgou a seguinte nota: "Comunicamos o falecimento de Rita Lee, em sua residência, em São Paulo, capital, no final da noite de ontem (segunda), cercada de todo o amor de sua família, como sempre desejou". O velório será aberto ao público, no Planetário do Parque Ibirapuera, na quarta-feira (10/5), das 10h às 17h. Ela foi diagnosticada com câncer de pulmão em maio de 2021. Em abril do ano passado, um dos filhos da cantora, o guitarrista e produtor Beto Lee, anunciou que Rita estava curada do câncer de pulmão. Fim do Matérias recomendadas "A cura da minha mãe me emocionou pra c******. Melhor notícia de todos os tempos. Manteve a cabeça erguida, com vontade de lutar e encarou tudo com seu bom humor habitual, tanto que apelidou o tumor de "Jair". That’s Rita", disse ele em uma rede social. Cantora, compositora, multi-instrumentista, além de escritora e apresentadora, Rita construiu uma carreira de sucesso que começou com o rock, mas que flertou com diversos gêneros: da psicodelia d’Os Mutantes ao pop, passando por disco, MPB, bossa nova e eletrônica ao longo de mais de cinco décadas. Também se tornou uma das mulheres mais influentes do país, reconhecida por gerações de artistas por seu pioneirismo empunhando uma guitarra nos palcos, a irreverência que a levou à televisão, as opiniões fortes, a defesa da liberdade e dos animais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rita Lee Jones de Carvalho nasceu no último dia do ano de 1947 em São Paulo (SP). Mais nova das três filhas do dentista Charles Fenley Jones, paulista descendente de imigrantes norte-americanos confederados estabelecidos em Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo , e de Romilda Padula, também paulista e filha de imigrantes italianos. O “Lee” incluído no nome das filhas foi uma homenagem do pai ao general Robert E. Lee, do exército confederado americano. Ela cresceu no bairro da Vila Mariana, onde teve aulas de piano e cedo foi influenciada pelo rock de Elvis Presley, Beatles e Rolling Stones, mas também pela música brasileira que os pais escutavam em casa, com clássicos da MPB como Cauby Peixoto, Angela Maria, Maysa e João Gilberto. Começou a compor as primeiras canções na adolescência e a integrar bandas com amigos. Em 1963, formou com mais duas garotas as Teenage Singers, que faziam pequenos shows em festas colegiais. Com Os Seis, outra banda que integrou, gravou o primeiro compacto, com duas músicas. A saída de três componentes do sexteto acabou deixando o trio formado por Rita, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, que rebatizam a banda como Os Bruxos. Por sugestão de Ronnie Von, o grupo passaria a se chamar Os Mutantes. Em 1968, chegou a entrar no curso de Comunicação da USP, a Universidade de São Paulo, mas desistiu no ano seguinte. “Passei um ano bundando na USP (na mesma classe da Regina Duarte, a futura namoradinha do Brasil), na base do ‘assina a presença pra mim'”, contou em Rita Lee: Uma Autobiografia, lançado em 2016. Depois disso, resolveu abandonar o curso e se dedicar à música. Com os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista, Rita gravou alguns dos álbuns fundamentais do rock brasileiro, compondo e estrelando performances memoráveis, como em 1967, quando o grupo acompanhou Gilberto Gil no III Festival de Música Popular Brasileira, na Record, com a apresentação de Domingo no Parque. Entre 1966 e 1972, período em que fez parte do trio, Os Mutantes gravaram apenas seis álbuns, que marcaram para sempre a história da música brasileira. O disco homônimo de 1968 já trazia hits como A Minha Menina, Balada do Louco e Ando Meio Desligado. No mesmo ano, a banda participou da gravação do clássico Tropicália ou Panis et Circenses, marco do movimento tropicalista, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé. Rita foi casada com o colega Arnaldo entre 1968 e 1972, parceria que também deu origem a dois discos solo acompanhada dos companheiros da banda: “Build Up” (1970) e “Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida” (1972). O fim do casamento dos dois e divergências sobre os rumos da banda provocaram a saída da cantora. Rita logo formaria outra banda, a Tutti Frutti, com a qual gravou diversos discos de sucesso. Fruto Proibido, de 1975, consagrou a cantora com o título de rainha do rock brasileiro, com faixas como Agora Só Falta Você, Esse Tal de Roque Enrow e Ovelha Negra. Mas foi com a entrada do músico Roberto de Carvalho na banda que Rita iniciou a parceria musical e amorosa que duraria a vida inteira. Em 1976, já morando com Roberto e grávida do primeiro filho, foi detida pela ditadura militar por porte e uso de maconha, num ato do regime para “servir de exemplo à juventude” da época. Rita foi condenada a um ano de prisão domiciliar, e precisava de autorização de um juiz para sair e fazer shows. Rita e Roberto tiveram três filhos: Beto Lee, em 1977, João, em 1979 e Antônio, em 1981. O fim da prisão domiciliar e da Tutti Frutti, pouco depois, fizeram o casal dar início à parceria que consagrou a cantora como artista popular, emendando um sucesso após o outro, ao borrar de vez as fronteiras entre o rock e o pop. São dessa época sucessos como Mania de Você, Chega Mais e Doce Vampiro. A dupla emplacou turnês de sucesso, temas de novelas e grandes shows, com o primeiro Rock in Rio, em 1985, e a abertura do primeiro show dos Rolling Stones no Brasil, dez anos depois. Ao mesmo tempo, Rita nunca deixou de flertar com outros gêneros. No início dos anos 1990, a roqueira que se definia como não radical, lançou a turnê Bossa’n’roll, em que se apresentava com voz e violão. Com a carreira em ascensão, começaram a surgir episódios de internação por abuso de calmantes e álcool. Em 1986, a cantora sofreu uma queda da varanda do segundo andar de seu sítio, que a fez fraturar o maxilar e passar por uma cirurgia de reconstrução. Rita contou só ter conseguido se livrar das drogas e do álcool em 2006, após procurar ajuda numa clínica de reabilitação. "Estou limpa há 11 anos, desde que minha neta nasceu. Canalizei minha energia e estou achando muito louco esse negócio de ser careta", contou numa entrevista ao programa Conversa com Bial durante o lançamento da sua biografia, em 2017. O humor ácido e o visual futurista fizeram Rita cair nas graças da televisão. A cantora participou de novelas da Globo como Top Model, Vamp, Celebridade e Ti Ti Ti quase sempre interpretando a si mesma. Também comandou programas como o TVLeeZão, na MTV e, ao lado de Roberto, o talk show Madame Lee, no canal pago GNT. Entre 2002 e 2004, integrou o time de apresentadoras do Saia Justa, programa de debates do GNT, ao lado de Mônica Waldvogel, Marisa Orth e Fernanda Young. Rita também é autora de sete histórias infantis, três delas protagonizadas pelo rato cientista Dr. Alex, que publica desde os anos 1980. O lançamento de Rita Lee: Uma Autobiografia em 2016 revelou aos fãs passagens pouco conhecidas da trajetória da cantora e entrou na lista de mais vendidos do país. Em 2018, lançou o livro FavoRita, em que reúne registros fotográficos raros, além de lembranças e reflexões ao completar 70 anos. A cantora anunciou sua aposentadoria dos palcos em 2012, devido à sua fragilidade física: "Me aposento dos shows, mas da música nunca", explicou no Twitter. Sua última apresentação, no Festival de Verão de Sergipe, terminou em polêmica, após Rita se revoltar com uma ação policial que considerou agressiva com o público. Acusada de desacato à autoridade, foi encaminhada a uma delegacia após o show para prestar depoimento, e liberada em seguida. Rita passou os últimos anos reclusa em um sítio na Grande São Paulo com o marido, Roberto. Em meio à pandemia de covid-19, em 2020, contou sobre a vida isolada em um texto para a revista Veja. "Não vou morrer desse vírus vodu e peço ao Universo que minha morte seja rápida e indolor, de preferência dormindo e sonhando que estou com minha família numa praia do Caribe", escreveu.
2023-05-09
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brasil
3 fatores que explicam repetição de violência contra negros em mercados no Brasil
Um casal negro foi agredido após supostamente tentar furtar sacos de leite em pó em um supermercado Big Bompreço em Salvador (Bahia) na última sexta-feira (5/4). Um vídeo do momento repercutiu nas redes sociais. Nas imagens, os dois são mostrados encostados a uma parede enquanto são xingados e agredidos pelos homens, que não aparecem na gravação. A mulher, que se identifica como Jamile, diz que pegou o produto para sua filha. “Estava precisando”, diz. A Polícia Civil da Bahia instaurou um inquérito para apurar o caso. "Diligências investigativas ao estabelecimento comercial e em outros pontos da cidade, oitivas de representantes do mercado e busca de imagens de câmeras de vigilância estão sendo realizadas, para identificar os envolvidos", disse a instituição em nota. A identidade dos agressores ainda está sob investigação, segundo o grupo Carrefour, dono da rede. Em nota, a empresa afirmou que no vídeo é possível identificar que um dos agressores tem uma tatuagem na mão, mas disse que nenhum profissional direto ou indireto que atua na unidade tem essa tatuagem. “Mesmo assim, não podemos aceitar que um crime como esse tenha ocorrido em nossas dependências”, afirmou a empresa em nota. (Leia o posicionamento completo da empresa ao final da reportagem) Fim do Matérias recomendadas “Por isso, desligamos a liderança e equipe de prevenção da loja, reforçando nossa tolerância zero com a violência, inclusive nos cargos de gestão, além de rescindir o contrato com a empresa responsável pela segurança da área externa, onde a violência ocorreu. Assumimos a nossa responsabilidade e tomamos medidas rápidas e duras.” “É inadmissível que qualquer pessoa seja tratada desta maneira. É um crime, com o qual não compactuamos. Estamos buscando o contato das vítimas para oferecer suporte psicológico, médico ou qualquer outro apoio necessário.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Este não é o primeiro caso de violência ou discriminação contra pessoas negras a ocorrer nas dependências do Carrefour ou de outros supermercados do país. Em 2020, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças em uma das filiais da empresa em Porto Alegre. No ano anterior, Pedro Henrique Gonzaga, de 19 anos, foi asfixiado até a morte na frente de sua mãe por seguranças de um supermercado Extra na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Outro caso também foi registrado em 2019, quando um jovem de 17 anos foi agredido no supermercado Ricoy, na zona sul paulista. Ele foi amarrado, torturado e açoitado por dois seguranças. Mais recentemente, em abril, uma professora negra denunciou ter sido vítima de racismo em uma unidade do Atacadão, que também faz parte do grupo Carrefour, ao ter sido perseguida por um segurança enquanto fazia compras. A BBC News Brasil consultou especialistas da área de combate ao racismo, diversidade e defesa dos direitos coletivos e individuais na área trabalhista para perguntar por que casos de violência e discriminação racial se repetem em supermercados do país. Segundo eles, além da realidade de racismo estrutural no Brasil, a popularização dos contratos de terceirização para serviços de segurança e a falta de comunicação efetiva entre a direção das empresas e seus funcionários também colaboram para o cenário. Para Juliana Kaiser, professora do Laboratório de Responsabilidade Social e Sustentabilidade do Instituto de Economia da UFRJ e diretora da startup Trilhas Impacto, o racismo da sociedade brasileira é o elemento central para explicar os casos de violência e discriminação. “Como mulher negra, posso dizer que minha experiência fazendo compras no Brasil é péssima”, diz. “No momento em que se tem qualquer ato que de alguma forma não corrobora com uma leitura escrita da lei, se esse corpo é negro, ele vai ser vilipendiado e escorraçado.” Especificamente quando se trata de casos envolvendo estabelecimentos comerciais, Kaiser afirma que a falta de funcionários negros em posições de destaque colabora para esse cenário. “O varejo até emprega pessoas negras, mas majoritariamente em posições de bastidores e não na frente das lojas ou em posições de atendimento”, diz. “Quanto mais pessoas negras, mais mudamos a percepção das pessoas que frequentam e trabalham nesses estabelecimentos.” Segundo a especialista, que faz mentorias para empresas e talentos negros, a representatividade negra no atendimento também beneficia a imagem das lojas e pode colaborar para uma mudança no panorama socieconômico das cidades brasileiras, onde a maior parte da população que vive na periferia e sofre com a pobreza é negra. Juliana Kaiser afirma ainda que casos de racismo podem ser mais comuns em supermercados do que em outras lojas do varejo porque estes são locais aos quais a população negra têm mais acesso. “Em muitos shoppings centers, pessoas negras de mais baixa renda são barradas logo na entrada”, diz. O ex-procurador-geral do Trabalho e advogado Ronaldo Fleury considera que a prática cada vez mais comum de terceirizar serviços, especialmente de segurança, também tem grande papel na situação atual. “A terceirização virou uma forma de busca de isenção de responsabilidade”, diz. “E, nos supermercados, a regra hoje é a terceirização — seja para seguranças, repositores, caixas ou controladores de estoque.” Segundo Fleury, o grande problema desse sistema é que se perde o controle sobre os trabalhadores. “Algumas características próprias da terceirização, como a rotatividade alta, a baixa remuneração e o trabalho mais precário fazem com que os funcionários tenham menos sensação de pertencimento e instinto de preservação pela empresa”, diz. O especialista explica, porém, que mesmo se tratando de funcionários terceirizados, as empresas contratantes também têm responsabilidade legal sobre as atitudes dos funcionários, além da prestadora de serviços. No caso que levou à morte de João Alberto Silveira Freitas em 2020, o Carrefour assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões no caso. O dinheiro é destinado para políticas de enfrentamento ao racismo. A empresa de segurança Vector, contratada na época pelo supermercado, também assinou um acordo judicial. Já os seis funcionários envolvidos no incidente foram acusados de homicídio triplamente qualificado e aguardam a data do julgamento popular. Sobre o episódio registrado em Salvador na semana passada, o ex-procurador-geral do Trabalho afirma que, mesmo que se prove que os atos de violência não foram cometidos por funcionários ligados ao supermercado, o Carrefour deve ser responsabilizado de alguma maneira, já que manter a segurança no local é dever do estabelecimento. “A empresa pode até comprovar que não teve culpa, mas o ônus dessa prova é do supermercado”, diz. Especialistas apontam ainda a dificuldade de comunicação entre o comando das redes de varejo e os funcionários na ponta do serviço como outro fator importante para a realidade atual. Para Marcus Vinicius Bomfim, consultor de relações-públicas e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), poucas são as empresas que apresentam um formato de gestão sensível à realidade atual brasileira e que conseguem orientar seus trabalhadores de forma efetiva sobre esse cenário. “Não se cogita do ponto de vista de gestão corporativa a ideia de que temos uma sociedade com alto índice de desemprego e que passa por um retorno forte da fome pós-pandemia. As empresas não apresentam esse quadro social como um fator a ser levado em consideração pelas equipes de atendimento ou segurança.” A questão da violência racial, segundo ele, não pode ser tratada apenas como um problema operacional, mas sim de relação entre a empresa e seus funcionários. “Os diretores das empresas que implementam programas de conscientização sobre racismo não estão nas lojas no dia a dia. Falta uma relação mais próxima com os funcionários na ponta, entender quais são os desafios que eles enfrentam.” Para Juliana Kaiser, é muito comum em estabelecimentos do ramo de varejo que os treinamentos e ações de conscientização acabem nos supervisores ou coordenadores das lojas. “A informação não chega na ponta. Muitas vezes, o segurança que trabalha no supermercado não foi letrado sobre o tema e, apesar de também ser da periferia, carrega uma cultura racista”, diz. Em nota enviada à BBC Brasil, a companhia afirmou que os casos citados envolvendo o supermercado “são motivos de profundo pesar e inconformismo em nossa empresa”. “Nosso compromisso no combate ao racismo vai além do discurso. A tragédia que vitimou João Alberto é um capítulo lamentável e irreparável em nossa história, do qual não vamos esquecer. Após a tragédia, indenizamos e oferecemos apoio psicológico aos familiares. Além disso, desde então, implementamos mais de 50 ações de combate ao racismo.” Entre as ações citadas pela empresa estão uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação, com desligamento imediato do profissional envolvido após a comprovação do ato, treinamentos constantes para atuação antirracista, programa de letramento racial para os colaboradores da empresa e investimentos em programas de estágio e trainee, aceleração de carreira e bolsas de graduação, mestrado e doutorado para pessoas negras, entre outras. “Sabemos que ainda temos muito a fazer e por isso os nossos processos e operações continuarão passando por revisões contínuas para a implementação de novas medidas que nos ajudem a avançar cada vez mais nessa frente”, disse o Carrefour na nota.
2023-05-09
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brasil
'Menina Veneno', 40 anos: a história do roqueiro inglês que fez sucesso no Brasil cantando em português
Numa manhã qualquer de agosto de 1982, o cantor e compositor Ritchie acordou com uma melodia na cabeça. Ainda sonolento, no Rio de Janeiro, tocou os acordes sonhados no teclado Casiotone que a mulher, a arquiteta e estilista Leda Zuccarelli, tinha comprado em Nova Iorque. Naquele mesmo dia, Ritchie recebeu a visita de Bernardo Vilhena. Na descida de Nova Friburgo, região serrana do Rio, o poeta começou a rascunhar os primeiros versos de uma nova canção: Menina Veneno. Sua inspiração veio do livro O Homem e Seus Símbolos, de Carl Gustav Jung, que ganhara de aniversário de dois ex-companheiros do Vímana, banda de rock progressivo dos anos 1970: Ritchie e Lulu Santos. Com a cabeça fervilhando de ideias, letrista e compositor logo se trancaram num dos quartos do duplex para burilar a canção. Ou, como diria Ritchie, "montar o quebra-cabeça". A toda hora, eram interrompidos por Mary, a filha mais velha do cantor, que tinha acabado de completar dois anos e estava aprendendo a andar. De fraldinha, ela subia as escadas e, triunfante, abria a porta do quarto. Na terceira ou quarta vez, Bernardo soltou uma risada e, bem-humorado, resolveu incluir a frase "Ouço passos na escada / Vejo a porta abrir…" na canção. "Em 20 minutos, a música já estava pronta. Nunca mais fizemos outra tão rápido!", relata Ritchie, hoje aos 71 anos. "A menina veneno da canção não é uma pessoa; é uma aparição. É uma figura onírica, muito sensual e quase mitológica". Fim do Matérias recomendadas Uma das peças desse quebra-cabeça causa polêmica até hoje. É o tal do abajur cor de carne. Já houve quem dissesse que Ritchie cantava cor de carmim. "Você está cantando errado!", chegou a ouvir de um fã mais exaltado. "Como assim?", rebateu. "A música é minha!". "Quando ouço a música de outro artista, não vou lá na casa dele perguntar: 'Vem cá, o que você quis dizer com isso?'", ironiza o cantor. "Não me peça para explicar minhas músicas. Cada um interpreta como quiser". Bernardo Vilhena, o autor da letra, tenta elucidar o mistério: quando a atriz e cantora alemã Marlene Dietrich (1901-1992) se hospedou no Copacabana Palace, em agosto de 1959, elogiou os abajures cor de pergaminho (fleisch farbe, no original) do hotel. Quanto ao lençol azul, bem, azul era a única cor que rimava com "nu". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quem era vizinho de Ritchie no número 698 da Estrada da Gávea era Lobão. Certa noite, o cantor inglês foi à casa do ex-baterista do Vímana pedir uma xícara de açúcar. Quem atendeu a porta foi a cantora Fernanda Abreu. Dentro do apartamento, um burburinho que lembrava o ensaio de uma banda de rock. Mal sabia Ritchie que, poucos meses depois, nasceria ali a Blitz, uma das bandas pioneiras do rock nacional, formada por Evandro Mesquita nos vocais, Ricardo Barreto na guitarra, Antônio Pedro no baixo, Billy Forghieri nos teclados, Fernanda Abreu e Márcia Bulcão nos backing vocals e Lobão na bateria. Por divergências artísticas, Lobão saiu da banda pouco depois do lançamento de As Aventuras da Blitz (1982) e foi substituído por Roberto Gurgel, o Juba, nas baquetas. "Eu e Ritchie fizemos a maioria das músicas juntos. Na juventude, era minha forma preferida de trabalhar. Hoje é raro ser assim", explica o letrista Bernardo Vilhena. "A melhor lembrança que guardo daquela época foi fazer esses dois primeiros discos: Cena de Cinema, com o Lobão, e Voo de Coração, com o Ritchie. Os dois moravam em um prédio em São Conrado. Era uma verdadeira loucura. Só mudava de apartamento". Quando compôs o maior hit de sua carreira, Ritchie ainda não era um popstar. Dava aula de inglês em um cursinho de idiomas em Ipanema, o Berlitz. Entre seus alunos, uma cantora baiana chamada Gal Costa. Certo dia, Ritchie tomou coragem e entregou uma fita com algumas de suas canções para Gal escutar. Na aula seguinte, ela devolveu o cassete. "Então, Gal, vai gravar uma das minhas músicas?", perguntou o professor, com um sorriso amarelo. "Não", respondeu a aluna. "Quem tem que gravá-las é você! Sua voz é linda". Richard David Court, conhecido como Ritchie, nasceu em Beckenham, na Inglaterra, em 6 de março de 1952. Filho de militar, morou em países como Quênia, Iêmen do Sul e Alemanha e estudou, dos 7 aos 19 anos, em colégios internos. Em 1972, largou os estudos na Universidade de Oxford, no Reino Unido, para tocar flauta na banda Everyone Involved. Estava no estúdio gravando o disco Either/Or quando o guitarrista Mike Klein o apresentou a três músicos brasileiros: a cantora Rita Lee, o baixista Liminha e a guitarrista Lucinha Turnbull. Conversa vai, conversa vem, Liminha deixou escapar um "Pinta lá em casa" para Ritchie. No finalzinho de 1972, o inglês de cabelo comprido e visual andrógino "pintou" em São Paulo. "Você veio mesmo?", tomaram um susto. "Ué, vocês não me convidaram?", espantou-se o cantor que aprendeu as primeiras palavras em português assistindo aos episódios de Vila Sésamo. Antes de seguir carreira solo, Ritchie tocou e cantou em várias bandas: Scaladácida, A Barca do Sol, Soma… Foi em um sarau do Nuvem Cigana que conheceu o poeta Bernardo Vilhena e o convidou para escrever algumas das letras do Vímana, grupo formado pelo guitarrista Lulu Santos, o tecladista Luiz Paulo Simas, o baixista Fernando Gama e o baterista Lobão. "A banda mais famosa que ninguém nunca ouviu", nas palavras de Ritchie, fez shows no Museu de Arte Moderna (MAM), acompanhou Marília Pêra no espetáculo A Feiticeira e lançou um compacto simples pela Som Livre, em 1977. Dali a alguns anos, Bernardo Vilhena se tornaria um dos maiores letristas do rock nacional. Sua primeira música a estourar nas rádios foi Mais Uma de Amor (Geme Geme), da Blitz, em 1982. Com Lobão, compôs alguns de seus maiores sucessos, como Corações Psicodélicos, Vida Bandida e Chorando no Campo. "Na adolescência, fui convidado a cantar em uma banda de rock. Fiz dois shows, mas não gostava dos ensaios. Gostava mesmo era de fazer música", admite o letrista que já compôs com Cláudio Zoli, Max de Castro e Ivo Meirelles, entre outros. "O prazer do letrista é entrar num bar e ouvir a menina do caixa cantarolar as palavras que escrevi sem saber quem sou eu. Ou, na estrada, ler o título de uma de minhas canções no para-choque de um caminhão". Só com Ritchie, Bernardo Vilhena compôs mais de 30 canções. Dessas, oito estão em Voo de Coração, lançado em junho de 1983. As que fizeram mais sucesso, além da onipresente Menina Veneno, são A Vida Tem Dessas Coisas, Pelo Interfone e Casanova, que virou tema de Champanhe (1983), novela da TV Globo. "A música não fez sucesso porque entrou na novela. Entrou na novela porque fez sucesso", avisa o cantor. "Voo de Coração está entre os 10 álbuns mais importantes do rock brasileiro", aponta o jornalista e escritor Arthur Dapieve, de Brock: O Rock Brasileiro dos Anos 80. "O que mais me chama a atenção é a facilidade do Ritchie em compor músicas pop: de curta duração, que grudam no ouvido, com letras inteligentes, que dialogam com todos os públicos". O disco contou com a participação de Lulu Santos na guitarra, Liminha no baixo, Lobão na bateria, Zé Luis no sax, Chico Batera na percussão e Lauro Salazar no piano e sintetizadores. Não bastasse, Steve Hackett, ex-Genesis, tocou guitarra na faixa-título. Já Ritchie se revezou entre o microfone, o teclado Casio MT 40 e a flauta. "Era amigo de praia do Bernardo e de colégio do Lobão. Quem me chamou para tocar no disco foi o próprio Ritchie. Nos conhecemos nos ensaios do Vímana", recorda o saxofonista Zé Luís, que tocou, entre outras bandas, com a Blitz e o Barão Vermelho. "Gravei os solos de Baby, Meu Bem (Te Amo) e Pelo Interfone no banheiro da Warner". "Mesmo não sendo brasileiro, Ritchie foi um dos maiores – talvez o maior – fenômeno do pop brasileiro dos anos 1980", garante o jornalista e escritor André Barcinski, que dedicou um dos capítulos de Pavões Misteriosos – 1974-1983: A Explosão da Música Pop no Brasil ao cantor inglês. "O mais incrível é que a música do Ritchie não tinha nada a ver com o tipo de pop que se fazia no Brasil na época: uma música mais solar, praiana, tipo Blitz e Lulu Santos. Voo de Coração é um disco de synthpop (ou technopop), eletrônico e urbano". Mas o caminho percorrido pelo LP até vender 1,2 milhão de cópias e conquistar quatro discos de platina e dois de ouro foi longo. Para começo de conversa, nenhuma gravadora se interessou pelo material. "Gringo cantando em português? Isso não vai dar certo!", alegavam os executivos. Um dia, Ritchie estava na Warner, fazendo cópias de Voo de Coração e Baby, Meu Bem (Te Amo) no escritório de Liminha, quando o produtor Fernando Adour, ao ouvir Voo de Coração, detectou algo diferente no ar. E pediu uma cópia da fita para entregar a um executivo da CBS. Ritchie, desiludido, recusou. Adour, confiante, insistiu. No mesmo dia, o cantor recebeu uma ligação de Cláudio Condé, diretor de A&R da gravadora, agendando uma reunião na sede da CBS, hoje Sony Music, no Flamengo. Condé também gostou do que ouviu. E contratou Ritchie. A gravadora propôs que o cantor regravasse Voo de Coração em uma mesa de 24 canais — a gravação original tinha sido feita numa de oito nos porões da Warner. Mas, para não sacrificar o solo de Hackett, Ritchie optou por incluir outra de sua autoria: Menina Veneno. "Fiquei impactado ao ouvir Menina Veneno. Tudo me pareceu perfeito: o arranjo, a letra, a voz…", recorda Condé, hoje sócio da LCTM Brand Builders. "Me lembro de ter ligado para o Ritchie na sexta-feira para saber se ele tinha mais músicas e nos encontramos no sábado. O repertório que deu origem a Voo de Coração estava todo lá". Uma das primeiras rádios a tocar Menina Veneno, distribuída em rudimentares fitas de rolo, foi a Verdes Mares, de Fortaleza. Em pouco tempo, os telefones da emissora cearense não pararam mais de tocar. Eram ouvintes e mais ouvintes pedindo para o locutor repetir a música do tal de Rin Tin. Ou seria Riqui? Houve até quem o chamasse de Hitler. De tudo, menos de Ritchie. "É claro que eu não esperava esse sucesso todo. Para falar a verdade, eu não esperava nem gravar um disco. Fui rejeitado por todas as gravadoras. Já tinha até desistido da carreira!", diz o cantor. Na sede da CBS, os executivos correram para lançar, no dia 14 de fevereiro de 1983, o compacto simples: de um lado, Menina Veneno; do outro, Baby, Meu Bem (Te Amo). Em duas semanas, vendeu 500 mil cópias. "Quando ouvi Menina Veneno pela primeira vez, tive a mesma sensação de quando ouvi, ainda garoto, Quero Que Vá Tudo Pro Inferno, do Roberto Carlos", recorda o músico Nico Rezende. "Tinha um arranjo simplesmente hipnótico". O sucesso era tanto que, no dia 24 de junho, a gravadora decidiu soltar o LP Voo de Coração, com dez faixas. Ao todo, Ritchie vendeu, segundo estimativas, 1,7 milhão de cópias — 1,2 milhão do LP e 500 mil do compacto. No ano seguinte, não deu outra: na categoria de melhor cantor, o inglês desbancou Roberto Carlos e Tim Maia e levou para casa o Troféu Imprensa, o então maior prêmio da TV brasileira, criado em 1958 pelo jornalista Plácido Manaia Nunes e apresentado desde 1970 por Silvio Santos. "O sucesso do Ritchie é similar ao do RPM. São dois fenômenos de venda, que se baseavam no techno-pop, com muito teclado. A diferença é que o RPM era uma banda de rock e o Ritchie, um artista pop. Eram, inclusive, colegas de gravadora: a CBS", explica Dapieve. "Ritchie e RPM desagradaram o então campeão de vendas da CBS: Roberto Carlos. Ele morria de ciúmes. Até então, reinava soberano como o cara que vendia mais de um milhão de discos a cada Natal. Com Ritchie e RPM, teve que dividir esse bastão". Ritchie bem que tentou conciliar as carreiras de professor e de cantor. Chegava no Berlitz às sete da manhã e saía ao meio-dia, com jaqueta de couro, óculos escuros e gomalina no cabelo. Não deu muito certo. Se Menina Veneno tocava em todas as rádios, das mais populares às mais sofisticadas, o cantor participava de todos os programas. Semana sim, outra também, batia ponto no Cassino do Chacrinha, da TV Globo. Logo, Ritchie montou uma banda para cair na estrada: o guitarrista Torcuato Mariano, o baixista Nilo Romero, o tecladista Nico Rezende, o baterista Fred Maciel, o saxofonista Chico Sá e as backing Mariza Fossa e Sônia Bonfá. A banda excursionou por todo o país. Um dia, estava em Belém; no seguinte, em Curitiba. Em sete meses, fez 139 shows, média de cinco por semana. "Foi uma turnê quase beatlemaníaca", diverte-se Nico Rezende. "Lembro dos shows lotados e das mulheres desmaiando na frente do palco". Ritchie chegou a se apresentar na final do Miss Universo, em Lima, no Peru. Só não foi à Argentina porque, filho de militar inglês, não queria se aventurar por território inimigo. "Foi exaustivo? Muito! Perdi quilos e mais quilos. Mas estava feliz fazendo o que amava fazer", avalia Ritchie, 40 anos depois. "Quando meu pai morreu, eu estava em Punta del Este, no Uruguai. Só soube da morte dele, alguns dias depois, quando voltei ao Rio. Naquele tempo, não havia celular, nem WhatsApp". No Paraguai, o tecladista da banda Nico Rezende mostrou uma música de sua autoria com o empresário do cantor, Paulinho Lima: Transas. "Daqui não sai", brincou o artista. "Quem vai gravar sou eu!". Foi incluída na trilha-sonora de Roda de Fogo (1986), da TV Globo. Ao longo da carreira, Ritchie teve 14 músicas tocadas em novelas. Só em 1983, ano de lançamento de Voo de Coração, foram três: Menina Veneno em Pão Pão, Beijo Beijo; Tudo O Que Eu Quero (Tranquilo) em Eu Prometo; e Casanova, em Champanhe, todas da Globo. Houve um momento em que nem Bernardo Vilhena aguentava mais ouvir a voz do parceiro. Foi quando alugou um barco em Manaus e seguiu até Santarém. Durante o trajeto de 740 quilômetros pelo Amazonas, visitou uma comunidade ribeirinha. Adivinhe a música que as lavadeiras estavam ouvindo à beira do rio? Pois é, Menina Veneno. No rastro do sucesso, Ritchie foi convidado a gravar Shy Moon com Caetano Veloso, fazer vocal de apoio na faixa Tempo Rei de Gilberto Gil e contracenar com Mick Jagger numa ponta do filme Running Out of Luck. Em um intervalo das gravações do álbum Velô (1984), Caetano Veloso confessou ao colega que, por causa de versos enigmáticos como "Fico falando pras paredes até anoitecer" e "E toda noite no meu quarto vem me entorpecer", achava que Menina Veneno era uma metáfora para heroína. Terminada a turnê, Ritchie voltou a entrar em estúdio. Com produção de Liminha, E a Vida Continua (1984) apresentava dez canções, sete em parceria com Bernardo Vilhena. Aos poucos, Ritchie começou a compor com outros artistas, como Liminha (Bons Amigos) e Lobão (Bad Boy). "No estúdio, deixei claro que o segundo disco não seria igual ao primeiro", afirma o cantor. "Artisticamente, quero continuar evoluindo sempre. E não ficar me repetindo". A gravadora, relata o artista, foi a primeira a perguntar: "Você não tem outra Menina Veneno para gravar?". "Já compus Menina Veneno", respondeu o artista. "Não quero compor outra igual!". "O segundo LP merecia ter sido melhor divulgado", lamenta o cantor. "Fui praticamente ignorado pela CBS". Mesmo assim, E A Vida Continua vendeu 100 mil cópias. "É uma marca extraordinária!", esclarece Dapieve. "Mas, em comparação com o álbum anterior, parecia um fracasso". Indagado sobre por que E a Vida Continua vendeu menos que Voo de Coração, Condé cita o exemplo de Michael Jackson: "Bad (1987) vendeu menos que Thriller (1982)". "O sucesso do Ritchie provocou uma tempestade de ressentimento e boicote", observa Barcinski. "Como alguém pode explicar o fato de o artista mais famoso e adorado do pop brasileiro não ter sido convidado para o Rock in Rio?". Um ano depois, Ritchie lançou seu terceiro álbum: Circular. Das dez músicas, nove levaram a assinatura Ritchie & Bernardo Vilhena. A exceção foi Favela Music, de Jim Capaldi. Vendeu menos ainda: 60 mil. Apesar de o contrato prever quatro discos, Ritchie foi dispensado sem gravar um quarto álbum ou pagar multa rescisória. Da CBS, Ritchie migrou para a Polygram, onde lançou mais três discos: Loucura e Mágica (1987), Pra Ficar Contigo (1988) e Sexto Sentido (1990). Juntos, os três venderam 44 mil cópias. Afastado dos estúdios por 12 anos, voltou a lançar um álbum de inéditas em 2002: Auto-Fidelidade, pela Deckdisc. No álbum, parcerias com Erasmo Carlos (Onde Que Eu Errei?) e Ronaldo Bastos (Um Lugar ao Sol). Em 2009, Ritchie lançou Outra Vez – Ao Vivo no Estúdio, onde revisita seus maiores sucessos. "As músicas são as mesmas, mas a embalagem é outra: menos new wave, mais rock’n’roll", explica. Quando esgotou a tiragem inicial do DVD, disponibilizou a gravação no YouTube. Só A Vida Tem Dessas Coisas tem hoje 33 milhões de views. "São, ao todo, quase 70 milhões de visualizações. Nada mal para um senhor de 71 anos que está há 20 sem gravadora. Estou satisfeito com os rumos da minha carreira. Novos fãs não param de chegar". Na década de 2010, Ritchie lançou três álbuns de covers: 60 (2012), seu primeiro trabalho 100% em inglês, e Old Friends (2016) e Wild World (2019), que revisitam os repertórios de Paul Simon e Cat Stevens. Até pensou em lançar um terceiro volume, dedicado a James Taylor, mas a pandemia não o deixou. Por ora, só pensa em comemorar os 40 anos de Voo de Coração. Até o momento, tem cinco shows agendados: Cine Jóia, em São Paulo (25/5); Vivo Rio, no Rio de Janeiro (11/8); Espaço Unimed, em São Paulo (13/8); e Palácio das Artes, em Belo Horizonte (16/9). No dia 19 de agosto, abre o show de Steve Hackett na Praia de São Francisco, em Niterói (RJ). "Quando subo ao palco, me sinto um garoto", brinca Ritchie. "O rock rejuvenesce!".
2023-05-08
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brasil
Por que brasileiros não são considerados latinos nos EUA
Em 2020, ao menos 416 mil brasileiros vivendo nos Estados Unidos se identificaram como "hispânicos ou latinos" na ACS (American Community Survey), maior pesquisa domiciliar americana. O número chamou a atenção porque, em 2019, apenas 14 mil brasileiros haviam sido classificados dessa forma. Em 2021, foram 16 mil. O salto registrado em 2020 foi fruto de um erro no processamento da ACS pelo Departamento do Censo dos Estados Unidos. O equívoco trouxe à luz uma desconexão entre a classificação oficial americana e a identidade dos brasileiros. Oficialmente, brasileiros não são considerados "hispânicos ou latinos" nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas A origem disso está numa lei aprovada em 1976 pelo Congresso Americano, que determinou a coleta de dados no país sobre um grupo étnico específico: "americanos de origem ou descendência espanhola". Essa legislação classificava esse grupo da seguinte maneira: “Americanos que se identificam como sendo de língua espanhola e traçam sua origem ou descendência no México, Porto Rico, Cuba, América Central e do Sul e outros países de língua espanhola.” Dessa forma, estavam incluídos na classificação 20 países falantes de espanhol na América Latina, mas não o Brasil, falante de português, ou outros países latinos, mas não hispânicos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 1977, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA publicou então os padrões para a coleta de dados étnicos e raciais no país com cinco classificações: indígena americano ou nativo do Alasca; asiático ou ilhéu do Pacífico; negro; hispânico; ou branco. Pela definição de 1977, "hispânico" era considerado uma etnia, não uma raça — a raça dizia respeito a características físicas, herdadas entre gerações; enquanto a etnia dizia mais respeito à identidade cultural e linguística, nessa classificação. Assim, na coleta de dados americana, os hispânicos podem ser de qualquer raça. Vinte anos depois, no entanto, essa classificação foi revisada. E, em 1997, a categoria "hispânico" mudou para "hispânico ou latino". À época, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA justificou a mudança dizendo que o uso dos termos tinha variações regionais, com "hispânico" sendo mais usado no Leste do país e "latino" mais no Oeste. "Essa mudança pode contribuir para melhores taxas de resposta", argumentava o departamento americano. Aí criou-se a confusão para a classificação dos brasileiros. Porque, embora para o governo americano, a classificação "hispânico ou latino" diga respeito somente às pessoas de "cultura ou origem espanhola", para nós, o termo "latino" remete ao fato de sermos latino-americanos e falarmos uma língua latina, o português. Nos censos de 1980 e 1990 nos EUA, valia a autodeclaração. Então, em 1980, 18% dos brasileiros vivendo nos EUA foram contabilizados como hispânicos. Em 1990, foram 33%. Mas, a partir de 2000, o Departamento do Censo dos EUA passou a fazer uma recategorização posterior. Assim, quem dizia ser "hispânico ou latino", mas, ao mesmo tempo, informava ser brasileiro, era então reclassificado como "não hispânico ou latino". O mesmo acontecia com pessoas de outros países não falantes de espanhol, que porventura se declarassem latinos, como filipinos, portugueses e nativos de outros países centro-americanos e caribenhos não-hispânicos, como Belize, Haiti, Jamaica, Guiana, entre outros. Desde 2006, além do Censo decenal, os EUA passaram a contar também com a American Community Survey (ACS), uma contagem populacional anual. Com esse esquema de reclassificação em vigor, a parcela de brasileiros quantificados como "hispânicos ou latinos" caiu para 4% ou menos em quase todas as edições da ACS. Esse percentual residual de brasileiros contados como "hispânicos ou latinos", mesmo nos anos em que a reclassificação funcionou adequadamente, se explica porque, quando a pessoa responde ser hispânica "de outra origem", mas não preenche essa origem, o Departamento do Censo não faz a reclassificação. O Pew Reserach Center consegue identificar que são brasileiros olhando para dados de país de nascimento e ancestralidade, em outra parte do formulário da ACS, o que não é considerado pela autoridade censitária americana no processo de reclassificação. Mas por que dizemos que o percentual de brasileiros classificados como "hispânicos ou latinos" caiu para 4% ou menos em "quase" todas as edições da ACS? Porque, em 2020, foi diferente. Durante o processo de edição dos dados da ACS de 2020, o Departamento do Censo dos EUA cometeu um erro e deixou brasileiros e outros grupos sem esse processo de reclassificação. Com isso, o número de brasileiros que se identificaram como "hispânicos ou latinos" saltou de 14 mil em 2019, para 416 mil em 2020. Entre os filipinos, o número passou de 44 mil para 67 mil; entre belizenhos, de 4 mil para 19 mil; e entre pessoas de países caribenhos não-hispânicos, de 36 mil para 71 mil. Mesmo o fenômeno afetando outros grupos, o caso dos brasileiros se destaca, pois 70% da comunidade brasileira nos EUA contabilizada na ACS se declarou "hispânica ou latina", revelou o erro de pesquisa, comparado a 41% dos belizenhos, 3% dos filipinos e 3% dos caribenhos não-hispânicos. "O grande número de brasileiros que se identificam como hispânicos ou latinos destaca como a visão deles de sua própria identidade não necessariamente se alinha com as definições oficiais do governo", observam Jeffrey S. Passel e Jens Manuel Krogstad, autores do estudo publicado pelo Pew Research Center. "Também ressalta que ser hispânico ou latino significa coisas diferentes para pessoas diferentes", acrescentam os pesquisadores. Para o brasileiro Raphael Nishimura, diretor de amostragem do Survey Research Center na Universidade de Michigan, o caso serve para refletir sobre como pesquisas são feitas. "Metodologicamente, isso [o erro na ACS de 2020] é bastante interessante para ilustrar um dos aspectos do erro de mensuração em pesquisas: o impacto do entendimento da pergunta por parte do respondente no que se pretende mensurar", escreveu Nishimura, sobre o estudo do Pew Research Center. "Nesse caso, me parece que o U.S. Census Bureau [Departamento do Censo dos EUA] deveria deixar mais claro nessa questão o que é e o que não é considerado como latino, hispânico ou origem espanhola", defendeu o estatístico. Segundo Nishimura, apesar da desconexão entre classificação oficial e identidade dos brasileiros revelada pelo erro de pesquisa em 2020, parece improvável que o governo americano reveja essa classificação em algum momento próximo. Em junho de 2022, o governo anunciou uma revisão na coleta de dados sobre raça e etnia nos EUA, que poderá valer já para o Censo de 2030. Mas essa reavaliação parece estar mais focada nas comunidades do Oriente Médio e Norte da África, que podem ganhar uma classificação própria nas pesquisas demográficas americanas, separada da categoria "branco", observa o estatístico, que mora nos EUA há 13 anos. Se os brasileiros fossem oficialmente considerados "hispânicos ou latinos", seríamos o 14º maior grupo latino dos EUA, acima da Nicarágua (395 mil) e abaixo da Venezuela (619 mil). Ainda assim, a população hispânica é tão grande nos EUA (61,1 milhões), que a comunidade brasileira contabilizada (569 mil na ACS de 2021) não chegaria a 1% do total de latinos. "Aparentemente, apesar de sermos algo como a 14ª maior população latina nos EUA, mal contaríamos como uma casa decimal nessa população como um todo. Então não deve nem haver um incentivo para isso [mudar a classificação de 'hispânico ou latino' para incluir os brasileiros]. Mas quem sabe agora que temos um brasileiro no Congresso", brinca Nishimura, fazendo referência ao congressista republicano George Santos, filho de brasileiros, envolvido em diversas polêmicas nos últimos meses. A comunidade brasileira contabilizada na ACS pode, no entanto, estar subestimada. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil calcula o número de brasileiros vivendo nos EUA em 1,9 milhão — trata-se da maior comunidade brasileira no exterior, segundo relatório de agosto de 2022 sobre o tema.
2023-05-07
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brasil
Como ‘vazio legal’ impulsiona consumo e venda de cogumelos psicodélicos no Brasil
Em uma rápida busca na internet, é possível encontrar mais de dez sites diferentes que anunciam a venda de cogumelos do tipo Psilocybe cubensis, apelidados de "cogumelos mágicos" no Brasil. Algumas das páginas oferecem os cogumelos inteiros ou desidratados embalados à vácuo, exaltando suas propriedades psicodélicas e ritualísticas, enquanto outras comercializam as chamadas micro dosagens, já calculadas para um consumo controlado com objetivos terapêuticos. Muitos dos sites ainda prometem entrega em até 24 horas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e afirmam enviar os produtos em embalagem discreta e sem remetente. Não há dados atualizados sobre o consumo de cogumelos para fins recreativos ou medicinais no país, mas especialistas da área afirmam notar um aumento recente na popularidade desses alucinógenos naturais. Segundo eles, a tendência muito provavelmente é impulsionada pela facilidade com que esses fungos podem ser adquiridos, assim como pela divulgação de diversas pesquisas e documentários nos últimos anos sobre os possíveis benefícios do uso dos cogumelos para tratamento de doenças mentais. Fim do Matérias recomendadas "É possível que o consumo tenha se popularizado nos últimos anos por conta da facilidade de acesso, apesar do uso de cogumelos ser uma prática ancestral tradicional”, afirma Renato Filev, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. “Temos a impressão de que houve sim um aumento no consumo, assim como muito provavelmente aumentou o consumo da maconha por conta da inserção do tema no debate público. Mas não temos dados epidemiológicos”, resume Clarice Madruga, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e estudiosa da área de epidemiologia e prevenção do uso de substâncias psicoativas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Madruga, o lançamento de séries documentais em plataformas de streaming sobre os benefícios dos psicodélicos e o mundo dos cogumelos é um dos fatores que podem estar impulsionando esse movimento, ainda que não de forma homogênea em toda a sociedade. “Essas séries tiveram um grande repercussão em extratos da sociedade de nível socioeconômico mais privilegiado e com maior acesso à informação”, diz. O advogado Emílio Nabas, membro do Conselho Consultivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, presta consultoria para um dos maiores sites de venda de cogumelos no Brasil atualmente. Ele também atende clientes com casos relacionados ao uso da cannabis medicinal e percebeu um aumento considerável na busca por assistência legal para consumo e comercialização dos cogumelos. “Hoje eu tenho praticamente o mesmo número de clientes buscando consultoria jurídica para cogumelos e para cannabis”, diz. Apesar de não haver dados sobre o consumo dessas substâncias no Brasil, outros países têm monitorado a tendência. Nos Estados Unidos, uma pesquisa dos Institutos Nacionais da Saúde (NIH, da sigla em inglês) identificou um crescimento drástico no consumo de alucinógenos a partir de 2020. Em 2021, 8% dos jovens adultos relataram terem usado alucinógenos no ano anterior, um recorde histórico desde que esses números passaram a ser monitorados em 1988. Entre as substâncias mais citadas estão os cogumelos, além da psilocibina pura, LSD, MDMA e outras. A sensação de que os cogumelos alucinógenos se tornaram mais populares é compartilhada também por quem frequenta festas nas grandes cidades do país, onde se tornou mais comum ver pessoas dividindo lascas armazenadas em pequenos sacos plásticos. Segundo usuários ouvidos pela reportagem, além da facilidade de adquirir o produto, a promessa de ficar mais relaxado e alegre sem perder o controle também atrai muitos para o consumo. Existem distintos tipos de cogumelo, mas o neurocientista Renato Filev explica que o mais comumente utilizado no Brasil para fins recreativos ou terapêuticos é o Psilocybe cubensis. Seus efeitos são diversos, mas em geral podem alterar a subjetividade e os sentidos, assim como a percepção de espaço e tempo, e causar vertigem, relaxamento, euforia e distúrbios visuais. Isso porque essa espécie de fungo apresenta como principais princípios ativos a psilocibina e a psilocina. Embora muitas pesquisas ainda estejam em andamento, estudos sugerem que essas substâncias afetam principalmente os receptores 5-HT2A no cérebro, que normalmente são ativados pelo neurotransmissor (mensageiro químico) serotonina. “Percebo que há uma aceitação maior dos cogumelos até em detrimento de outros psicodélicos, porque além de ser natural, é uma substância que o usuário consegue manejar melhor os efeitos do que o LSD, por exemplo”, diz Filev. Os pesquisadores concordam, porém, que a facilidade em adquirir os cogumelos está entre os principais atrativos atuais. Atualmente, o fungo Psilocybe Cubensis não está entre as plantas e fungos proibidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). No Brasil, as substâncias sujeitas a controles especiais são reguladas pela Portaria 344 de 1998 e divididas em categorias e listas. E apesar dos cogumelos não estarem na lista, a psilocina e a psilocibina constam na chamada lista F2 de substâncias psicotrópicas, cujo uso está proibido no Brasil. Isso significa que, a rigor, a venda e compra dos cogumelos não é proibida, mas a comercialização direta das substâncias extraídas dos fungos sim. Ainda assim, há cada vez mais registros de prisões por venda de cogumelos. Na semana passada, a Polícia Civil do Distrito Federal realizou uma operação para fechar um laboratório e prender o responsável pela venda de cápsulas, extratos, culturas e cogumelos in natura pela internet. Muitos entusiastas do uso de cogumelos questionaram a legalidade da operação. Em nota divulgada, a PCDF afirmou que prendeu um homem de 29 anos após cinco meses de investigação. Ainda segundo a instituição, a forma de exposição das drogas nesse caso chamou a atenção da Polícia pela "ampla comercialização dos cogumelos e derivados e por trazer perigo à saúde pública ao disseminar desinformação para aliciar compradores". Não ficou claro se o envolvido comercializava apenas cogumelos ou as substâncias psilocina e psilocibina separadamente. A professora de Direito Penal Econômico da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fernanda Vilares explicou à BBC Brasil que as normas atuais podem ser interpretadas de formas diversas devido à natureza pouco específica das leis. “Em uma interpretação extremamente legalista, normativa e dogmática pode-se entender que como a psilocibina é proibida, o consumo dos cogumelos e sua venda também estão proibidos”, diz. “Mas em uma concepção mais progressista e liberal, que tende a maximizar as liberdades dos indivíduos e protegê-los sem paternalismo exacerbado, o uso de cogumelo in natura não é ilgeal, porque não está previsto na lista da Anvisa.” Segundo Vilares, o caráter impreciso da legislação atual pode estar relacionado à atualidade do fenômeno. “A ciência está descobrindo só agora sobre os benefícios dos cogumelos. Pode ser que venha a se tornar necessário por uma questão de saúde regulamentar seu uso, mas até então não tinha porque o Estado despender energia nisso”, diz. O advogado Emílio Nabas afirma alertar seus clientes sobre essas inconsistências. “Há uma zona nebulosa que não deixa claro o que pode e o que que não pode dentro de uma atividade empresarial", diz. "Não há segurança jurídica hoje quando falamos dessas substâncias.” As recentes pesquisas sobre os benefícios do uso dos cogumelos, em especial para o tratamento de doenças mentais, também atraíram muita atenção para o tema, segundo as fontes ouvidas pela reportagem. As descobertas, que indicam que tais propriedades podem aplacar sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, vêm entusiasmando as comunidades científica e médica. Também se discute cada vez mais o uso das substâncias psicodélicas para cuidados paliativos, que amparam portadores de doenças graves tanto em problemas físicos quanto em questões existenciais, como a finitude da vida. Um dos mais promissores estudos atuais, realizado por pesquisadores da Imperial College London, parece estar próximo de revelar como os alucinógenos tiram uma pessoa deprimida "de uma rotina de pensamento negativo" — segundo os envolvidos, a psilocibina "reintegra" um cérebro deprimido, tornando-o mais fluido, flexível e conectado. Outra pesquisa, do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência da Universidade King's College London (Inglaterra), mostrou que um comprimido de 25mg de psilocibina coloca os pacientes em um estado de sonho, tornando a terapia psicológica mais provável de ser bem-sucedida. Os estudiosos ingleses, porém, alertaram que os efeitos colaterais de curto prazo podem ser assustadores e o suporte clínico deve estar sempre disponível. Por esse e outros motivos especialistas dizem que estudos mais amplos e com um acompanhamento muito mais longo ainda são necessários antes de uma conclusão definitiva sobre os benefícios do uso de cogumelos. “Na farmacologia, primeiro é preciso compreender as moléculas de uma substância encontrada na natureza para eventualmente poder sintetizá-las - e nesse caso ainda não passamos desse estágio”, afirma Clarice Madruga. “São necessários mais ensaios prévios e ensaios controlados randomizados para que se possa reproduzir as moléculas de forma controlada e em dose terapêutica.” Segundo a psicóloga, o uso para fins terapêuticos sem acompanhamento pode ser perigoso, pois já se sabe que parte da população pode apresentar maior vulnerabilidade diante dessas substâncias. “Precisamos entender o que é o uso terapêutico de uma substância. Não pode ser algo subjetivo, como alguém que de forma autônoma começa a usar cogumelos e julga que lhe faz bem.” O neurocientista Renato Filev também alerta para o risco de intoxicação alimentar quando os cogumelos são coletados diretamente da natureza por pessoas sem conhecimento para o tema. Além disso, algumas espécies de cogumelos podem ser venenosas. O psicólogo afirma, porém, que diferente de outras drogas ilícitas e até do próprio álcool, os cogumelos têm baixíssimo potencial para a adicção. “Nenhum psicodélico clássico tende a levar a um transtorno por uso da substância, pois produzem um quadro de tolerância após dias consecutivos de consumo que acaba evitando o consumo compulsivo”, explica. “E os cogumelos em especial, pelas próprias características do efeito provocado, que pode ser desafiador para algumas pessoas, não tende a levar à compulsividade."
2023-05-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nzr26p352o
brasil
Fissura ou 'desbolsonarização': como CPMI do 8 de janeiro pode afetar relação de militares com governo Lula
Militares fardados sob os holofotes da imprensa, o escrutínio de parlamentares questionados sobre sua participação em atos classificados como atentados à democracia. Esta imagem não aconteceu no Brasil durante o processo de redemocratização do final dos anos 1970 graças à Lei de Anistia, que impediu a punição pelos crimes cometidos durante a ditadura militar que durou entre 1979 e 1985. Mas poderá ocorrer agora, em 2023. A expectativa é de que a recém-autorizada Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que vai investigar a invasão das sedes dos Três Poderes, deverá convocar oficiais das Forças Armadas para que esclareçam se houve qualquer participação de militares nos atos do dia 8 de janeiro deste ano. O Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) foram invadidos e depredados. A principal suspeita que surgiu após a ação foi a de que militares teriam sido coniventes com os militantes bolsonaristas que acamparam em frente a quartéis em todo o Brasil logo após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022 e de onde teriam partido caravanas em direção a Brasília no dia da invasão. Fim do Matérias recomendadas E a iminência de que militares sejam colocados nessa espécie de "banco dos réus" de uma CPMI surge em meio ao já conhecido clima de desconfiança entre a categoria e o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). É nesse contexto que militares da reserva, políticos e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que, a depender de como a CPMI for conduzida, ela pode aumentar, ainda mais, a fissura entre os militares e o atual governo. Segundo eles, essa fissura poderia aumentar caso a bancada governista da CPMI decida "emparedar" as Forças Armadas ao longo dos depoimentos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As suspeitas em torno do suposto papel das Forças Armadas ou de alguns de seus integrantes nos episódios que levaram aos atos de 8 de janeiro começaram ainda no final de 2022, logo após a derrota de Bolsonaro para Lula nas eleições presidenciais. Nos dias que se seguiram, milhares de pessoas passaram a acampar em frente a unidades militares em diversos estados do Brasil. Um dos maiores acampamentos foi montado em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília. Os acampamentos reuniam militantes bolsonaristas insatisfeitos com o resultado das eleições que alegavam, sem evidência, que o pleito havia sido fraudado. Alguns pediam um golpe militar para impedir que Lula tomasse posse. Apesar do apelo de lideranças do futuro novo governo para que os acampamentos fossem desmontados, as Forças Armadas não retiraram os manifestantes. A situação se agravou ao longo de novembro, especialmente depois que manifestantes atearam fogo em ônibus e automóveis em frente à sede da Polícia Federal após a prisão de um militante bolsonarista suspeito de fazer ameaças a autoridades. Os atos aconteceram no dia 12 de novembro, mesmo dia em que Lula foi diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Apesar dos apelos, o Exército não retirou os manifestantes. Na época, os comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha divulgaram uma nota oficial e defenderam o que classificaram como "livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional". Em dezembro, a Polícia Civil do Distrito Federal prendeu um homem suspeito de preparar um atentado a bomba no Aeroporto Internacional de Brasília. Ele admitiu que obteve o artefato no acampamento em frente ao Quartel General do Exército. Os acampamentos só foram desmontados após a invasão das sedes dos Três Poderes. Outro foco de desconfiança sobre o papel exercido pelos militares no episódio surgiram logo após a invasão. O Exército abriu duas sindicâncias (investigações internas) para apurar omissão ou participação de militares da ativa nos atos de 8 de janeiro. Elas foram abertas a pedido do comandante da instituição, o general Tomás Paiva. O Ministério Público Militar (MPM) encaminhou três inquéritos policial-militares ao Supremo Tribunal Federal (STF) relatando as supostas condutas de integrantes das Forças Armadas no episódio. Também houve questionamentos sobre como o Gabinete Segurança Institucional (GSI), vinculado à Presidência da República, não se planejou para impedir as invasões, apesar dos alertas feitos por órgãos de segurança. Além disso, imagens do circuito interno de TV do Palácio do Planalto mostraram militares do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) servindo água para os manifestantes que invadiram o prédio e agindo de forma aparentemente cordial em relação a eles. As imagens foram centrais para que a CPMI fosse instalada pois também mostraram o então ministro do GSI, o general Gonçalves Dias, circulando pelo prédio sem prender nenhum dos invasores. Dias é considerado, no entanto, um antigo aliado de Lula. Em seu depoimento à Polícia Federal, Dias alegou que não prendeu ninguém na ocasião porque tentava gerenciar a crise causada pela invasão. Interlocutores do governo, porém, alegam que apesar de estar oficialmente sob o comando de Dias, boa parte dos cargos do GSI eram ocupados por militares nomeados na gestão de Bolsonaro. Para o general da reserva do Exército Luiz Eduardo Rocha Paiva, a CPMI dos atos de 8 de janeiro tem "potencial" para aumentar a desconfiança entre militares e o governo Lula. Ele afirma que essa desconfiança em relação ao governo do PT, contudo, já existe e atribui ela à suposta diferença de valores entre os militares e o partido o presidente Lula. "Tanto ideologicamente como na questão de crenças e valores, patriotismo, nacionalismo, liberdade e justiça, existe uma divergência dessas características entre o governo e o militar brasileiro", disse Rocha Paiva, que é autor do prefácio do livro Verdade Sufocada, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por tortura cometida durante o regime militar. Rocha Paiva diz que essa desconfiança pode aumentar a depender da forma como a CPMI for conduzida. "Se prevalecer ali o radicalismo, o revanchismo e a ideologia de um lado só, seja radical de esquerda ou de direita, pode causar uma fissura não só entre as Forças Armadas e o governo, mas uma fissura política no país", disse. A pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também avalia que o impacto da CPMI nas relações entre o governo e os militares pode variar. "Isso pode pode ter zero impacto e pode ter um impacto grande sim, a depender de dizer do sentimento que foi mobilizado ali", afirma. Ela admite, no entanto, que a possibilidade de que militares de alta patente sejam interrogados sob os holofotes de uma CPMI deverá causar desconforto na caserna. "Se forem militares do ativa, certamente vai gerar uma situação desconfortável. Podemos lembrar, por exemplo, que durante a CPI da Pandemia, havia a expectativa de que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que era general, não fosse fardado prestar depoimento justamente porque isso causaria uma situação incômoda aos militares", diz a professora. Pazuello, ao final, não foi fardado ao seu depoimento. O professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Ciência Política Augusto Teixeira também avalia que a CPMI pode aumentar a desconfiança entre governo e militares. Ele pontua que um dos elementos que pode levar a isso seria a imprevisibilidade da dinâmica de uma comissão como essa. "Existe, sim, um risco de que a CPMI dos atos de 8 de janeiro possam aumentar essa desconfiança. Uma CPMI é algo incontrolável na perspectiva de que a gente sabe como começa, mas não sabe como acaba. Ademais, você tem um colegiado de atores muito heterogêneos que apesar de seguirem orientações partidárias, eles também têm suas próprias especificidades", disse o professor. Teixeira aponta ainda um outro elemento que pode acirrar os ânimos. "O processo de coleta de provas e novas evidências que surgem podem apontar para problemas relacionados a como as Forças Armadas, institucionalmente, lidaram com os momentos prévios aos atentados de 8 de janeiro, tal como a existência de diversos acampamentos diante de quartéis", disse o professor. Adriana Marques avalia que esse potencial de conflito poderá se materializar se, de alguma forma, a bancada governista tentar, de alguma forma, responsabilizar as Forças Armadas como instituição pelos atos de 8 de janeiro. "Se o processo de responsabilização for individual, não acho que haverá grandes problemas. Mas se tentarem responsabilizar as Forças Armadas como um todo, acho que isso vai criar sérias resistências entre os militares", afirmou. Rocha Paiva diz que, ainda que tentem, não haveria risco de "emparedar" os militares que prestem depoimento. Ele defende que os militares não têm responsabilidade sobre o que aconteceu no dia 8 de janeiro. "No dia em que o militar for chamado a comparecer, acho que quem vai ficar mais preocupado com o que ele vai dizer são os interlocutores que quiserem usar a CPMI para emparedar as Forças Armadas. Como não existe flanco aberto no que elas fizeram nesse período que levou ao 8 de janeiro, não há condições de emparedar as Forças Armadas", disse o general. Apesar de reconhecerem que há potencial para que a CPMI aumente a distância entre militares e o governo Lula, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que o ânimo dentro do governo petista é de evitar um confronto direto com as Forças Armadas. Os sinais teriam sido dados desde o início da formação do governo, com a nomeação, por exemplo, do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. O político seria conhecido por ter um perfil conciliador e ter bom trânsito entre os militares. Além disso, o movimento mais recente teria sido o de manter um militar, no caso o general Marcos Antônio Amaro dos Santos, no comando do GSI, em substituição a Gonçalves Dias. A nomeação ocorreu apesar das pressões internas para que o governo promovesse uma total desmilitarização do GSI, especialmente após os atos de 8 de janeiro. Adriana Marques diz que, embora considere necessário debater o papel que as Forças Armadas tiveram nos atos de 8 de janeiro, ela acredita que o governo não vai se empenhar nisso durante a CPMI. "Esse não tem sido o caminho do governo. A natureza do Lula é conciliar. Então, ainda que eu ache que seja necessário discutir a participação dos militares nesses atos, acho que isso não vai acontecer", disse. O professor Augusto Teixeira também concorda que o governo deverá adotar um tom mais moderado durante a CPMI. "O governo realiza um trabalho forte no sentido de distensionar as relações com as Forças Armadas e não aumentar essa desconfiança. É por isto que o trato dos parlamentares da bancada governista na CPMI será, obviamente, muito sensível", disse. A estratégia de evitar o confronto se materializa nas declarações de parlamentares da base governista. "Nós não vamos investigar as Forças Armadas enquanto instituição. Não é uma CPMI sobre o Exército, a Marinha ou a Aeronáutica. Se eventualmente houver militares envolvidos nos atos, são eles que serão investigados, não o conjunto", disse à BBC News Brasil o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP). Augusto Teixeira disse que a estratégia que o governo deverá adotar para evitar um confronto aberto com as Forças Armadas é focar no que chamou de "desbolsonarização" da instituição. "Acho que o governo vai tomar cuidado para que não haja tensionamento. A orientação daqueles parlamentares palacianos ou envolvidos na base do governo vai se dirigir na questão do bolsonarismo ou da bolsonarização das Forças Armadas e na atuação política dos militares, mas enquanto indivíduos e não como instituição", disse. Adriana Marques avalia que se essa for, de fato, a estratégia a ser adotada pelo governo, os militares não deverão se opor. "Se isso acontecer, acho que vamos ver uma situação em que os militares vão preferir perder alguns aneis a se expor enquanto instituição", afirmou.
2023-05-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czrpm9xyl78o
brasil
'Novo Cangaço': o que acontece nas cidades onde bandidos explodem bancos
A cena é cinematográfica. Um grupo formado por dezenas de criminosos, usando armas de grosso calibre, explosivos e ateando fogo em veículos para bloquear vias de acesso acaba com a paz durante a madrugada em alguma pequena cidade brasileira. Explodem e roubam agências bancárias, fazem reféns durante a fuga, trocam tiros com a polícia e deixam para trás toda uma população aterrorizada. A ação ficou conhecida na imprensa no final dos anos 1990 como “novo cangaço", uma alusão aos grupos sertanejos que, na primeira metade do século 19, percorriam o Nordeste e norte de Minas Gerais sitiando e saqueando cidades, vilas e fazendas. Mas o que acontece nessas cidades depois que as agências bancárias explodem? Um grupo de pesquisadores criou um banco de dados inédito catalogando 1.396 explosões de bancos, em 775 municípios, de 15 Estados brasileiros, entre 2018 e 2021. Cruzando essas informações com dados sigilosos do Banco Central do Brasil, eles investigaram como a redução na oferta de dinheiro em espécie nos municípios alvos dessas ações criminosos impacta a adoção de tecnologias financeiras pela população local. O que eles encontraram ajuda a entender o que determina o uso dessas tecnologias pelas pessoas e pode contribuir para maior inclusão financeira e competição bancária no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Queríamos entender o efeito da transição dos bancos comerciais tradicionais, de um modelo de negócios muito focado nas agências, para um modelo de mercado digital", explica Lucas Argentieri Mariani (Universidade de Milão), um dos autores do estudo, ao lado de José Renato Ornelas (Banco Central do Brasil) e Bernardo Ricca (Insper). No Brasil, essa transição acontece de forma acelerada: foram 4.903 agências bancárias fechadas entre 2016 e 2021, uma redução de 22%. Como resultado, o número de agências por 100 mil habitantes diminuiu de 11 para 8,3 e a parcela de municípios sem agências subiu de 36% para 44%. Essa mudança tem impactos, por exemplo, no emprego. Segundo dados compilados pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), entre 2013 e 2021, o setor bancário já perdeu mais de 69 mil postos de trabalho com carteira assinada no Brasil. E a mudança deve continuar: um estudo de 2021, produzido pela The Economist Intelligence Unit, mostrou que 65% dos executivos de bancos acreditava que o modelo baseado em agências deve desaparecer em cinco anos, ante 35% que pensavam assim em 2018. "Os bancos estão diminuindo sua presença física e queríamos entender melhor o efeito disso sobre o uso de tecnologia", diz Mariani, que também é pesquisador do Economic Research Southern Africa (ERSA), programa de pesquisa financiado pelo banco central da África do Sul. Os pesquisadores queriam saber ainda se a presença de agências bancárias funciona como uma barreira para a entrada de novos agentes – como bancos digitais e fintechs – nos mercados locais. Eles então encontraram uma forma engenhosa de estudar esses dois fenômenos: olhar para cidades brasileiras que passaram por ataques a agências bancárias com uso de explosivos. Esses ataques são uma espécie de "experimento natural", explicam os economistas. Porque eles produzem uma interrupção do serviço bancário que independe da decisão dos bancos. Além disso, como as ações são realizadas por organizações criminosas não-locais, elas não estão relacionadas a mudanças no padrão de criminalidade dos municípios que também poderiam influenciar na opção das pessoas por usar mais tecnologias financeiras e serviços digitais. Com uma bolsa de pesquisa do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Mariani e Ricca expandiram a base de dados sobre roubos a bancos, a partir de estatísticas fornecidas pelas secretarias de Segurança Pública dos Estados e de notícias publicadas na imprensa. A amostra construída por eles contempla 75% dos municípios, 82% das agências bancárias e 81% do PIB nacional. "Os ataques exigem pessoal qualificado, planejamento cuidadoso e equipamentos caros", observam os pesquisadores. Segundo força-tarefa de combate a roubos a bancos de São Paulo, é necessária a participação de ao menos dez pessoas e o custo das ações é estimado em cerca de R$ 400 mil. Os pesquisadores então entraram em contato com o Banco Central para saber se poderiam usar o dados sigilosos da autoridade monetária na investigação. Foi quando o pesquisador José Renato Ornelas, servidor do BC, se juntou ao grupo, que passou assim a trabalhar com dados extremamente detalhados sobre o sistema financeiro brasileiro. O primeiro resultado encontrado mostra um impacto impressionante desses roubos a banco com uso de explosivos: nas agências atacadas, a disponibilidade de dinheiro fica praticamente zerada após os assaltos, com queda de 97% na comparação com agências que não sofreram ataques em municípios similares. E a oferta segue baixa por pelos menos seis meses após a ação criminosa, criando um cenário perfeito para descobrir o que acontece quando não há dinheiro em espécie disponível numa cidade. "Depois do roubo, quando tem uma diminuição do acesso a dinheiro naquele município, as pessoas começam a procurar novas formas de pagamento", conta Mariani. Os pesquisadores observam um aumento de 9,2% no número de transações com Pix, crescimento de 7,6% no valor dessas transações e também maior número de usuários do meio de pagamento instantâneo. Após esse crescimento, que dura cerca de dois meses, o uso do Pix se mantém em patamar elevado, mostrando que a adoção de novas tecnologias tem um efeito de longo prazo. Os pesquisadores também comparam os efeitos antes e depois da criação do Pix, lançado pelo Banco Central em novembro de 2020. Antes do Pix, cresciam nos municípios com agências atacadas o uso do cartão de débito e TED – uma forma de transferência bancária cara e que demorava até algumas horas para ser realizada. Depois do Pix, a TED perde espaço como alternativa à falta de dinheiro físico. Eles avaliam ainda o que acontece com as empresas nos municípios. Entre as pessoas jurídicas, cresce o uso de Pix para receber pagamentos, mas não para realizá-los. Isso faz sentido, avaliam os pesquisadores, porque o dinheiro já não é o meio mais usado nas transações entre empresas. Por fim, eles avaliam os efeitos sobre instituições que operam nos municípios, mas não tiveram agências atacadas. E encontram que o número de transações e de usuários de Pix aumenta também entre bancos tradicionais não afetados, mas cresce especialmente entre bancos digitais e fintechs. "Isso está em linha com estudos de outros países que mostram que as fintechs são muita melhor preparadas para prover esse tipo de serviço digital do que os bancos tradicionais", diz Mariani. Entender o que torna as pessoas mais propensas a usar novas tecnologias financeiras é fundamental num contexto onde a inclusão tecnológica ainda é muito desigual, explica o pesquisador da Universidade de Milão. O Pix, por exemplo, é um grande sucesso. Lançado em novembro de 2020, ele já era usado por 117,5 milhões de indivíduos (55% da população) e 9 milhões de empresas (cerca de 47% das firmas em atividade) até abril de 2022, movimentando mais de R$ 5 trilhões somente em 2021. Ainda assim, em janeiro de 2022, cerca de 71 milhões de pessoas (ou 40% da população brasileira adulta) nunca tinham usado um sistema eletrônico de pagamento, segundo dados do Banco Central. "O Pix conseguiu diminuir o quanto as economias locais dependem do dinheiro", observa Mariani. "Quanto menor é o custo de uma nova tecnologia, mais pessoas vão utilizá-la, vão aprender a usar e vão confiar mais no uso de tecnologias financeiras. Isso tem impacto sobre o uso de bancos digitais, que têm potencial para aumentar a competitividade bancária local." No Brasil, a concentração bancária diminuiu nos últimos anos, mas ainda é considerada elevada. Em 2016, os cinco maiores bancos comerciais do país concentravam 78% dos ativos totais e 81% das operações de crédito. Em 2021, esses percentuais recuaram a 69% dos ativos e 64% do crédito, citam os pesquisadores, com base em dados do Banco Central. "A participação de novos bancos no mercado tem potencial para diminuir as taxas de juros de mercado e as taxas de provisão de serviços", diz Mariani, sobre a importância de maior competição nos setor bancário. "Empresários relatam, por exemplo, que a taxa cobrada pelas maquininhas de cartão diminui depois do surgimento do Pix, então aumenta a competição entre meios de pagamento. O Pix também reduziu o custo para as firmas de fornecer meios de pagamentos para as pessoas, então isso reduz o custo das transações que as pessoas fazem", observa o pesquisador. Quando um lojista começa a usar o Pix, por exemplo, o banco passa a ter muito mais informações sobre aquele comerciante e seu faturamento, diz Mariani. Isso facilita na hora em que esse lojista quer tomar um financiamento – o banco será mais propenso a emprestar a um cliente que ele já conhece. Assim, o avanço das tecnologias financeiras tem potencial para democratizar o acesso ao crédito, mas também para tornar as operações financeiras mais baratas para pessoas e empresas.
2023-05-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0vxw220n42o
brasil
Como conversar com filhos sobre ataques a escolas
A neuropsicopedagoga Fernanda Martins está acostumada a atender e acolher as dificuldades de crianças e adolescentes em seu cotidiano profissional em Cotia, no interior de São Paulo. Mas foi dentro de casa que ela se deparou com um desafio: como lidar com o medo da sua filha de 9 anos de que sua escola fosse alvo de um ataque em 20 de abril? Rumores falsos circulavam pelas redes sociais de que neste dia – que marca os 24 anos do massacre de Columbine, nos Estados Unidos e é também aniversário do ditador nazista Adolf Hitler – haveria ataques em todo o país. Ao mesmo tempo, desde o final do ano passado, aconteceram pelo menos cinco ataques. No primeiro, em novembro, um adolescente matou a tiros quatro pessoas e deixou 12 feridas em duas escolas no Espírito Santo. Em São Paulo, um adolescente esfaqueou três alunos e uma professora, que acabou morrendo, no final de março. Dias depois, um homem assassinou brutalmente quatro crianças e feriu outras cinco em uma creche em Santa Catarina. Fim do Matérias recomendadas No Amazonas, um menino feriu a faca uma professora e dois outros alunos. E, em Goiás, um estudante feriu duas colegas. Também com uma faca. A filha de Fernanda escutou os boatos dentro da própria escola e, preocupada, procurou a mãe. Primeiro, ela tentou tranquilizar a menina mostrando que a escola e as famílias já estavam sabendo do problema. “Falei para ela que os adultos, que são os responsáveis pela segurança das crianças, estavam cuidando disso”. Além disso, Fernanda optou por trabalhar com a filha questões de segurança em geral e tirar um pouco o foco da escola. “Falo que existem sim situações perigosas e que temos que tomar cuidado com pessoas desconhecidas.” Ou seja, o medo é um sentimento que tem o seu papel, já que está relacionado com prudência. “Criança sem medo sai correndo pela rua. O que não pode é travar e deixá-la em pânico”, explica. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A psicóloga Elaine Alves, pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), acrescenta que é importante falar para a criança ou adolescente que esse tipo de ataque é raro e reforçar que a escola é um lugar seguro. De acordo com a psicóloga, que é doutora em Psicologia do Desenvolvimento humano e coordenadora do Núcleo de Intervenções Psicológicas em Emergências e Desastres (NIPED), trazer informações concretas ajuda a colocar a situação em perspectiva nesta hora. Por exemplo, ao mostrar que, dentro de um universo de dezenas de milhares de escolas, esse tipo de violência ocorreu poucas vezes ao longo do tempo. Alves também aconselha a manter a rotina e não deixar que os alunos deixem de ir para a escola por causa do medo de ataques. “A rotina é o que nos organiza”, diz. A psicóloga está atendendo famílias, alunos e funcionários da escola estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, onde a professora atacada por um aluno morreu. Também fez esse trabalho na escola Primo Bitti, uma das escolas atacadas no Espírito Santo, e na escola estadual Raul Brasil, em Suzano, no interior de São Paulo, onde, há quatro anos, dois ex-alunos mataram sete pessoas, cinco adolescentes e duas funcionárias, e se suicidaram em seguida. Alves diz que, apesar dos ataques serem chocantes, a preocupação dos pais e das escolas deveria ser com as violências do cotidiano, como abusos físicos e emocionais, racismo, misoginia e preconceito religioso, e que o foco deve ser trabalhar o respeito aos colegas e professores. A psicóloga também afirma ser fundamental trabalhar a confiança dos estudantes nos pais desde sempre e não apenas em momentos de crise. Por exemplo, não fazer ameaças como dizer que se o filho tiver certa atitude o pai ou a mãe vai largá-lo sozinho em algum lugar ou não vai mais gostar dele, porque isso mina a confiança da criança ou adolescente nos adultos, explica Alves. Caso um filho demonstre estar com medo de ir à escola, a recomendação de especialistas é para os pais conversarem com a instituição. O apoio de um “adulto de segurança” na escola, que não precisa necessariamente ser o professor principal, pode ajudar um aluno que esteja mais fragilizado. “Pode ser uma coordenadora, um inspetor. Uma pessoa a quem a criança vai recorrer se perder um material, se for mal na prova ou se estiver triste, alguém para oferecer um abraço”, diz Fernanda Martins. “Algumas crianças passam pela escola sem nenhum conflito, mas tem outras que vão precisar de mais apoio.” Se a criança ou adolescente ainda não quiser ir para a aula, outro recurso é estabelecer objetos de segurança, como uma naninha, bicho de pelúcia, uma foto da família, um chaveiro na mochila ou um amuleto. “Algo que torne mais concreta a sensação de que a criança está segura”, diz a neuropsicopedagoga. Os pais também podem transmitir segurança sem ter de esconder seus próprios sentimentos. Fernanda Martins diz que não há problema se os pais demonstram preocupação, mas reafirmando que confiam na escola e que as medidas necessárias estão sendo tomadas. Ao expor seus medos, os adultos validam os sentimentos dos filhos. A psicóloga Elaine Alves concorda que os pais podem mostrar vulnerabilidade. Quando choram na frente dos filhos, por exemplo, é como se “autorizassem” que os filhos façam o mesmo. Mas o modo como os adultos lidam com os receios dos filhos deve variar de acordo com sua idade. Fernanda Martins aconselha, por exemplo, que crianças de até 7 anos não tenham contato com informações a respeito de ataques e massacres, se for possível evitar. Até esta idade, a criança se guia muito pela fantasia, e a ideia de atos violentos como esses se tornam um monstro ainda mais assustador dentro da mente delas. A partir dos 8 anos, os medos se tornam mais concretos. “A criança pode demonstrar temor de morrer ou dos pais morrerem”, diz Martins. Dessa idade em diante, os pais podem explicar melhor o que aconteceu nas escolas e as ameaças de novos ataques, caso a criança fique sabendo e traga essa preocupação para casa, mas sem dar detalhes sinistros. Elaine Alves também indica ficar muito atento às coisas que as crianças falam e às brincadeiras. “A criança pode escutar um burburinho na escola e sentir medo, mas nem saber exatamente do quê. É na conversa do cotidiano que ela vai dar sinais de que há algum problema”, diz a psicóloga. A partir de 12 ou 13 anos, é mais provável que o adolescente tenha acesso às informações sobre o que ocorreu por redes sociais, sites de notícias ou em conversas com amigos. Nessa fase, os pais podem puxar o assunto mais abertamente e perguntar se o filho soube dos ataques ou se teve acesso a algum rumor sobre ameaças de novos massacres, sempre reforçando a confiança na escola. “Nesse caso, os pais é que têm que falar, se não parece um assunto proibido”, diz Alves. A psicóloga também recomenda que os pais fiquem atentos a mudanças de comportamento nos filhos e a qual tipo de conteúdo eles acessam, para saber se estão sendo expostos ou até propagando conteúdos violentos ou relacionados a bullying ou assédio. “Os pais é que determinam a qual nível de privacidade os filhos têm direito”, diz Alves. “Os adultos podem até não ler mensagens particulares, mas entendo como uma obrigação dar uma olhada geral. Isso é cuidado, é papel dos pais, responsabilidade deles.” O que os adultos não devem fazer nunca, segundo os especialistas, é desmerecer o medo, ao dizer, por exemplo, que a preocupação é uma bobagem. “Os filhos vão perceber que os pais estão preocupados, sim. O que vai ajudar a saber lidar com o medo é conversar, dizer que vai enfrentar isso junto com a criança”, diz Fernanda Martins. “A criança sofre, o adulto às vezes desmerece, mas, para ela, aquele problema que ela está vivendo é importante”, diz Elaine Alves. Um bom caminho para fortalecer a segurança e confiança nas escolas pode ser, além do acolhimento, fortalecer o vínculo das famílias com as escolas. O Colégio Stocco, de Santo André, na região da Grande São Paulo, tem conversado com os pais e proposto discussões entre os alunos. “Fomos fazendo um trabalho mais amplo desde que os ataques aconteceram e os boatos começaram e não tivemos faltas no dia 20”, diz o diretor da escola, Roberto Belmonte Júnior. De acordo com o diretor, a escola fez rodas de conversas nas salas, e os alunos compartilharam seus medos e preocupações durante estes papos. “A partir dessas percepções, bolamos estratégias, e daí veio a ideia de fazer uma árvore da paz”, diz. O colégio já tinha como parte da programação reunir periodicamente alunos de diferentes séries no ginásio da escola para discutir temas relevantes. Devido aos ataques recentes e à preocupação dos pais, a cultura da paz virou um dos temas destas discussões. No dia 20 de abril, os alunos do quarto ano do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio trouxeram bilhetes escritos por eles ou pelas famílias dizendo o que fazem para cultivar a paz e os penduraram em uma grande árvore montada com esse propósito. “Apareceram muitas mensagens falando de união, amizade e respeito”, diz Belmonte Júnior. Essas iniciativas têm, na visão do diretor, transmitido confiança e deixado os alunos mais tranquilos. “É claro que a violência existe e precisamos estar atentos. Mas é importante demonstrar bom senso. Estarmos alertas, mas não apavorados”, afirma o diretor.
2023-05-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cev4klp4px0o
brasil
Reino Unido anuncia R$ 500 milhões para o Fundo Amazônia
Em encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em Londres, o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, anunciou nesta sexta-feira (5/6) que o Reino Unido vai contribuir para o Fundo Amazônia, hoje financiado por Noruega, Alemanha e Estados Unidos. Mais tarde, pelo Twitter, Sunak detalhou o anúncio, afirmando que o valor será de 80 milhões de libras (cerca de R$ 500 milhões). Lula e Sunak se encontraram a portas fechadas em Downing Street, residência oficial e escritório do premiê britânico. O petista está no Reino Unido para a coroação do rei Charles 3º, que acontece neste sábado (6/5). Segundo Sunak, "além de futebol, temos muito em comum. Tenho prazer de anunciar nesta ocasião que vamos investir no Fundo Amazônia. Prazer muito grande tê-lo aqui". Fim do Matérias recomendadas Por sua vez, Lula afirmou que sua ida ao Reino Unido, além da coroação, seria um gesto para "restabelecer a normalidade na relação Brasil-Reino Unido". "Temos boas relações, mas certamente é muito pouco na relação comercial". "O país ficou isolado por seis anos. Nós agora queremos retomar primeiro a discussão comercial, na qual há possibilidades enormes de crescer o fluxo". "Segundo, a questão climática. O Brasil tem grandes reservas e tem participado de encontros de clima e compromisso de ter desmatamento zero na Amazônia até 2030". "E o que tenho falado para todas os países ricos é para que cumpram os acordos firmados nas edições da COP. Os países mais pobres precisam de ajuda para manter suas florestas de pé. Estou muito otimista e agradecido de estar aqui. Essa bilateral é muito importante para nós", acrescentou Lula. O Reino Unido é o quarto país a contribuir para o Fundo Amazônia. Em abril deste ano, os Estados Unidos anunciaram que contribuiriam com US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) para o fundo. A Noruega permanece sendo a maior financiadora. Lançado em 2009, o Fundo Amazônia foi criado pelo país nórdico para combater o desmatamento e estimular o desenvolvimento sustentável. O fundo foi reativado em janeiro deste ano, após o início do terceiro mandato de Lula — ele havia sido suspenso no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL) porque Alemanha e Noruega, principais doadores, discordaram do modelo de administração. De 2019 a 2022, o desmatamento na Amazônia aumentou quase 60% em relação aos quatro anos anteriores.
2023-05-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6p98ym9rgjo
brasil
Vídeo, O que está em jogo no projeto 2630, o PL das fake newsDuration, 7,32
A Câmara dos Deputados avalia um amplo — e controverso — projeto de lei que busca reforçar a regulamentação e fiscalização sobre plataformas digitais, como redes sociais, aplicativos de trocas de mensagens e ferramentas de busca. O texto estava previsto para ser votadoem 2 de maio, mas foi adiado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) para evitar uma derrota do governo. Popularmente conhecida como PL das fake news ou PL 2630, a proposta pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Neste vídeo, nossa repórter Mariana Schreiber explica 6 pontos de polêmicas envolvendo o projeto, que abriu uma disputa com as grandes empresas de tecnologia.
2023-05-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-65489153
brasil
A herança arquitetônica brasileira sob risco na Nigéria
Ao retornarem do Brasil à África no século 19, alguns milhares de ex-escravizados levaram consigo uma série de hábitos relacionados às tradições brasileiras, tal como a língua, a música e até alguns pratos típicos. Mas talvez a herança mais palpável desse processo de regresso após 300 anos de trabalho forçado esteja nos edifícios e obras arquitetônicas em países como Nigéria e Benin. Na região conhecida como bairro brasileiro, em Lagos, alguns prédios reproduzem a arquitetura desenvolvida durante o período colonial no território brasileiro. Ao andar pelos quarteirões dessa área, é quase impossível não notar as semelhanças com o histórico Pelourinho, em Salvador, na Bahia. E não é um acaso. Ao final do século 19, com a revolta dos Malês, em Salvador, em1835 (que envolveu cerca de 600 africanos escravizados, a maioria muçulmanos) e posteriormente a abolição da escravatura, cerca de 8 mil escravizados libertos e alforriados, ou que foram expulsos após a rebelião, retornaram à África. Os retornados ficaram conhecidos de diferentes formas ao longo da costa africana: no Benin, no Togo e na Nigéria foram chamados de “agudás” e em Gana de “tabons”. Alguns deles eram ourives, operários da construção civil ou outros trabalhadores que aprenderam as técnicas de construção e arquitetura importadas da Europa e adaptadas para a realidade brasileira da época. Fim do Matérias recomendadas A historiadora e professora da Universidade de Harvard Suzanne Blier explica que as marcas desse fenômeno podem ser reconhecidas não apenas em Lagos, mas em outras partes da Nigéria e também em países como Benin, Angola, Congo e Serra Leoa. “Notamos a influência em diferentes tipos de edifícios: em prédios religiosos, não só igrejas mas mesquitas também, em sedes administrativas, palácios e casas da elite da época”, explica. Mas os prédios que resistem na metrópole nigeriana estão entre os mais aclamados e estudados. Ainda assim, há uma crescente preocupação com o estado de conservação dos edifícios, que segundo especialistas contam uma parte importante da história de muitas famílias nigerianas. Femke van Zeijl, secretária de pesquisa da ONG Legacy, que trabalha em prol da preservação de monumentos e outros elementos culturais na Nigéria, afirma que há muito a avançar em termos de conscientização sobre o valor dessa herança. “Muito desse legado está desaparecendo porque a Ilha de Lagos [onde está localizado o bairro brasileiro] é o centro da cidade e um grande hub de negócios, onde se lucra muito com a construção de novos prédios e arranha-céus”, afirma Van Zeijl à BBC Brasil. “Não só as casas menores, térreas e mais simples estão sumindo, mas também construções grandes e imponentes.” Um dos mais celebrados edifícios desse período, conhecido localmente como Ilojo Bar, ou Casa do Fernandez em português, foi demolido ilegalmente em 2016 apesar de ter sido tombado pela Comissão Nacional de Museus e Monumentos (NCMM) e listado como monumento nacional. “Acordamos em uma manhã de domingo em setembro de 2016 e o prédio simplesmente não estava mais lá”, relata a pesquisadora da organização Legacy. A BBC News Brasil procurou o órgão nigeriano para esclarecimentos sobre esse episódio e os esforços de conservação do quarteirão brasileiro e outros edifícios no país. Após a publicação deste texto, a NCMM reconheceu em uma nota enviada à reportagem que os edifícios em Lagos foram "afetados negativamente por negligência e fatores ambientais" e afirmou que a falta de financiamento adequado afeta sua capacidade de atuar na conservação. (Leia o posicionamento completo da comissão ao final da reportagem) Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A influência brasileira nos edifícios nigerianos pode ser notada principalmente na estrutura e nos ornamentos das construções, segundo o arquiteto e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Fabio Velame. “Há influência do ponto de vista construtivo, por exemplo por meio do trabalho extenso com pedra, o uso do óleo de baleia e da técnica do adobe, um método de alvenaria em que se utilizam blocos em terra crua”, explica Velame. “Mas também se nota similaridades no acabamento dos telhados, nos arcos das janelas e nos acabamentos com inspiração barroca e rococó.” O pesquisador afirma ainda que a inspiração vem da arquitetura colonial luso-brasileira, que se instalou no Brasil a partir do século 17 e até final do século 18 e início do 19 com a colonização portuguesa. A estética foi adotada na construção de edifícios religiosos, militares e de moradia - especialmente casas da elite, formada na época por barões do café e senhores de engenho. Essa influência persistiu até a chegada da comitiva de Dom João 6º ao Brasil em 1808, quando o Rio de Janeiro recebeu também artistas franceses que introduziram influências arquitetônicas neoclassicistas. “Os africanos que trabalhavam nas obras aqui no Brasil, sobretudo em Recife e Salvador, acumularam conhecimento sobre os materiais, as tecnologias de construção e a linguagem arquitetônica própria”, explica Fabio Velame. Segundo a historiadora Suzanne Blier, essa herança foi reproduzida na Nigéria também em edifícios voltados para a elite local da época. “Muitos palácios, casas de figuras políticas importantes e de mercadores e famílias ricas foram construídos usando esses conhecimentos importados. Por isso esse estilo ficou conhecido como uma marca da elite e um símbolo de riqueza.” Apesar de sua relevância passada, esse legado brasileiro está em risco atualmente, afirma Femke van Zeijl. Algumas famílias em Lagos ainda carregam marcas dos costumes brasileiros. Organizações locais estruturam com frequência festas tradicionais, oferecem aulas de português e atualmente estão trabalhando, em parceria com o consulado do Brasil em Lagos, na construção de um museu para celebrar a sua herança. Mas para a pesquisadora, o patrimônio arquitetônico não recebe tanta atenção das autoridades como deveria. “Precisamos mostrar como o legado e a história desses prédios estão ligados à população que mora ali. Muitas pessoas veem esse passado como história brasileira e acham que não tem nada a ver com os nativos de Lagos - mas não é verdade”, diz. Além da demolição do prédio conhecido como Ilojo Bar em 2016, outro belo edifício foi destruído na década de 1980, afirma Van Zeijl. “Essa construção magnífica, chamada Casa Araromi, foi destruída por um incêndio”, lamenta. Uma das poucas grandes construções que ainda restam na região de Lagos é a chamada Casa d'Água. O prédio construído com tijolos tem pelo menos 15 janelas com arcos e fica na movimentada rua Kakawa, cercado por lojas, bancos e outros estabelecimentos comerciais. A representante da Legacy ressalta que casas menores e menos imponentes, mas que possuem todos os elementos arquitetônicos importados do Brasil, também são muitas vezes esquecidas e mantidas em péssimo estado. “Essas construções térreas não são monumentos nacionais, mas ainda assim merecem estar ali e são extremamente charmosas”, diz Van Zeijl. “Uma vez eu estava admirando um desses prédios e uma pessoa me parou na rua para perguntar porque eu estava olhando para aquele ‘lixo velho’. Esse é o grande problema: se um prédio tem aparência de ‘lixo velho’ é assim que as pessoas vão tratá-lo.” Segundo a pesquisadora, o órgão responsável pelas construções declaradas monumentos nacionais na Nigéria é a Comissão Nacional de Museus e Monumentos, mas a instituição não é transparente sobre quais prédios foram tombados e quais esforços estão sendo empregados para sua conservação. Em seu site, a instituição lista a Casa d'Água e o Ilojo Bar como monumentos nacionais, mesmo este segundo tendo sido demolido. Em nota enviada à reportagem, a NCMM afirmou que os edifícios, especialmente os residenciais, "foram afetados negativamente por negligência e fatores ambientais". "A falta de conscientização sobre o valor do patrimônio histórico desses edifícios, juntamente com o aumento dos níveis de pobreza, enquanto o valor econômico desses locais aumenta, contribuiu ainda mais para a perda desses edifícios brasileiros. Financiamento grosseiramente inadequado e por vezes inexistente para apoiar a conservação e gestão do património também dificulta a eficácia do NCMM", diz o texto. Ainda segundo o órgão, o que aconteceu com o Ilojo Bar é exemplo disso. "O respaldo legal de seu status de monumento nacional tornou, no entanto, possível responsabilizar certas partes e abriu caminho para um plano de reconstrução e redesenvolvimento do local que daria ao local do monumento uma nova vida", acrescentou a Comissão, sem dar mais detalhes sobre o projeto de reconstrução.
2023-05-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51p73m4g2po
brasil
Que crimes Bolsonaro pode ter cometido caso se confirme falsificação do certificado de vacina contra covid
A Polícia Federal (PF) realizou nesta quarta-feira (3/5) uma operação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e pessoas do seu entorno. O grupo é suspeito de ter inserido dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados que viabilizariam uma viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos. Foram realizadas buscas na casa do ex-presidente, que teve o celular apreendido. A PF cumpriu também seis mandados de prisão contra outras pessoas, entre elas o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid Barbosa. A operação foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A suspeita é que foram forjados os certificados de vacinação de Bolsonaro e da filha dele de 12 anos; de Cid Barbosa, da sua mulher e de três filhas do casal (duas menores de idade); e de mais dois assessores do ex-presidente, Max Guilherme Machado de Moura e Sérgio Rocha Cordeiro. Segundo comunicado da PF à imprensa sobre a operação, os investigados podem ter cometido quatro crimes: infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. A continuidade da apuração deve esclarecer se de fato esses ou outros ilícitos ocorreram e quem seriam os autores. O relatório da PF a Moraes, por sua vez, atribui especificamente a Bolsonaro os crimes de uso de documento falso e de corrupção de menores e diz que há indícios de que ele tinha conhecimento da alteração fraudulenta dos dados no sistema do Ministério da Saúde. Fim do Matérias recomendadas Já a eventual entrada nos Estados Unidos com um certificado de vacinação falso configuraria crime federal naquele país, com pena de até dez anos de prisão. Quando Bolsonaro ingressou em solo americano no final de 2022, porém, ainda era presidente e tinha imunidade diplomática. Por isso, não era obrigado a apresentar comprovante vacinal. Questionado por jornalistas ao sair de sua casa em Brasília sobre as suspeitas de adulteração nos cartões de vacina, Bolsonaro disse que "não tem nada disso". "Havia gente que me pressionava para tomar a vacina e eu não tomei. Não tomei porque li a bula da Pfizer. Não tem nada disso. Se eu tivesse que entrar (nos EUA) e apresentar o cartão vocês estariam sabendo", disse. Entenda melhor a seguir os possíveis crimes cometidos pelos investigados: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O crime de inserção de dados falsos em sistemas de informação, também chamado de peculato digital, está previsto no artigo 313-A do Código Penal. Ele estabelece pena de dois a doze anos de prisão e multa para o funcionário que se aproveitar do seu acesso a sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública para inserir dados falsos ou alterar dados corretos buscando vantagens para si ou para outros. “A pessoa que fornece os dados pode responder como coautora ou partícipe, dependendo de quanto contribuiu para o crime”, nota artigo sobre o tema do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Segundo a investigação da PF, a inserção dos dados falsos foi realizada por meio da Prefeitura do município de Duque de Caxias (RJ). No caso de Bolsonaro, por exemplo, foram inseridas informações de que o ex-presidente teria sido vacinado naquele município com doses da Pfizer em 13 de agosto e 14 de outubro do ano passado. No entanto, o relatório da PF diz que não há qualquer comprovação que o presidente tenha estado em Duque de Caxias no dia 13 de agosto, quando cumpriu agenda no município do Rio de Janeiro. Já no dia 14 de outubro, Bolsonaro teve agenda curta em Duque de Caxias, sem registro de que tenha sido vacinado nessa data, apontou a investigação. Também não há evidências de que a filha de Bolsonaro estivesse naquele município nas datas em que teria sido vacinada (24 de julho e 13 de agosto de 2022), segundo as informações suspeitas registradas no sistema do Ministério da Saúde. “Além disso, cabe destacar que LAURA BOLSONARO, com 11 anos de idade, residia à época dos fatos, obviamente, com seus pais na cidade de Brasilia/DF, não fazendo qualquer sentido ter que se deslocar até o município de Duque de Caxias para se vacinar”, nota o relatório da PF. O delegado do caso, Fábio Shor, destaca ainda como evidência de fraude o grande tempo transcorrido entre a suposta vacinação e o registro da aplicação das doses no sistema, realizado por João Carlos Brecha, secretário de Governo de Duque de Caxias. “Os dados relativos a JAIR BOLSONARO e LAURA BOLSONARO foram inseridos em 21/12/2022 no intervalo entre 18h59min e 23h11min”, nota o relatório, ou seja, cerca de dois a cinco meses após as supostas datas de imunização. O crime de uso de documento falso está previsto no artigo 304 do Código Penal. A pena é de dois a seis anos de prisão, quando se trata de um documento público. Segundo a investigação da PF, certificados de vacinação para Jair Bolsonaro foram emitidos quatro vezes entre dezembro de 2022 e março deste ano. “O usuário associado ao ex-Presidente JAIR BOLSONARO emitiu o certificado de vacinação contra a Covid-19, por meio do aplicativo ConecteSUS, nos seguintes dias: 22/12/2022 às 08h00min, 27/12/2022, às 14h19min, 30/12/2022, às 12h02min e 14/03/2023 às 08h15min”, diz o relatório da PF. A Polícia Federal identificou que os acessos partiram de um computador de dentro do Palácio do Planalto e do celular de Mauro Cid. A apuração apontou ainda que era Cid que administrava o acesso de Bolsonaro ao ConecteSUS, já que a conta do presidente estava associada a um e-mail do seu então ajudante de ordens. Depois, a conta foi passada para o e-mail de outro assessor de Bolsonaro, Marcelo Costa Câmara, que inclusive viajou em três oportunidades a Orlando para acompanhar Bolsonaro. Como ex-presidente, Bolsonaro tem direito a manter oito assessores pagos pela Presidência da República. "Os elementos informativos colhidos demonstraram coerência lógica e temporal desde a inserção dos dados falsos no sistema SI-PNI até a geração dos certificados de vacinação contra a Covid-19, indicando que JAIR BOLSONARO, MAURO CESAR CID e, possivelmente, MARCELO COSTA CAMARA tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento", aponta a PF no relatório. Segundo o artigo 268, esse crime consiste em “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Quem comete o crime pode ser condenado a pagar multa e ficar preso de um mês a um ano, sendo que a pena é aumentada em um terço se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro. Para um integrante do Ministério Público Federal ouvido pela reportagem, não está claro se Bolsonaro poderia ser enquadrado por esse crime no Brasil, se de fato tiver falsificado o documento, mas usado a falsificação apenas nos Estados Unidos. As informações divulgadas até o momento também não permitem concluir que o ex-presidente apresentou alguma documentação falsa ao viajar no final do seu mandato para a Flórida, onde viveu por três meses. Até 12 de maio desde ano, está em vigor a exigência de comprovante de vacinação contra covid-19 para entrada nos Estados Unidos – a falsificação de documento para cumprir essa obrigação pode configurar crime federal naquele país, com pena de até dez anos de prisão. No entanto, pessoas com passaporte diplomático, como era o caso de Bolsonaro durante seu mandato presidencial, são liberadas de cumprir essa exigência. Em janeiro, Bolsonaro solicitou um visto de turista para permanecer nos Estados Unidos. A BBC News Brasil questionou a embaixada americana no Brasil se havia exigência de comprovante de vacinação quando foi solicitado o visto, mas ainda não obteve retorno esclarecendo a questão. O artigo 288 do Código Penal diz que o crime de associação criminosa ocorre quando mais de três pessoas se juntam para cometer crimes. A pena é de um a três anos de prisão. Segundo o integrante do Ministério Público Federal ouvido pela reportagem, para que fique configurado esse crime, deve estar comprovado que o grupo se articulou para realizar crimes repetidos. Ou seja, não bastaria ser uma prática delituosa pontual. O comunicado da PF sobre a operação diz que as inserções falsas no sistema do Ministério da Saúde ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022. Além do coronel Mauro Cid Barbosa, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, foram presos pela operação o sargento Luis Marcos dos Reis, que integrava a equipe de Cid; o policial militar Sergio Guilherme e o militar do Exército Sérgio Cordeiro, que atuavam na segurança presidencial; o ex-major do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros; e o secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha. O crime de corrupção de menores está previsto no artigo 244-D do Estatuto da Criança e do Adolescente e consiste em “corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la”. A pena prevista é de um a quatro anos de prisão. Os investigados são suspeitos de cometer esse crime porque teriam sido falsificados os certificados vacinais da filha mais nova de Bolsonaro e de duas filhas também menores de idade de Mauro Cid. Ao falar sobre a operação em sua conta no Instagram, a ex-primeira-dama Michele Bolsonaro reafirmou que sua filha não foi vacinada. "Hoje a PF fez uma busca e apreensão na nossa casa, não sabemos o motivo e nem o nosso advogado não teve acesso aos autos. Apenas o celular do meu marido foi apreendido. Ficamos sabendo, pela imprensa, que o motivo seria 'falsificação de cartão de vacina' do meu marido e de nossa filha Laura. Na minha casa, apenas EU fui vacinada", escreveu Michelle na rede social.
2023-05-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c883k4kkzpjo
brasil
Os motivos de Alexandre de Moraes para autorizar operação contra Bolsonaro e aliados
A autorização dada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes para a operação da Polícia Federal que atingiu o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nesta quarta-feira (03/04) aconteceu porque Moraes e a PF acreditam que Bolsonaro tinha "plena ciência" do esquema de adulteração da dados vacinais investigado pelas autoridades. Em entrevistas concedidas na quarta-feira, Bolsonaro negou ter conhecimento sobre qualquer fraude relativa aos seus dados de vacinação e voltou a afirmar que ele e sua filha de 12 anos de idade não foram vacinados. À rádio Jovem Pan, Bolsonaro negou irregularidades. "Não existe adulteração de minha parte. Eu não tomei a vacina", disse o ex–presidente. A Operação Venire, deflagrada na manhã de hoje, investiga um suposto esquema que teria sido iniciado pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, com o objetivo de alterar dados de vacinação de pessoas próximas ao militar, inclusive do ex-presidente Bolsonaro e sua filha. O advogado Rodrigo Roca, que representa Mauro Cid, disse à BBC News Brasil que a defesa do tenente-coronel teve acesso a parte dos autos do processo. Fim do Matérias recomendadas "Estamos lendo. Devemos nos manifestar somente amanhã", afirmou. Pelo Twitter, o ex-secretário de comunicação do governo de Jair Bolsonaro, Fabio Wajngarten, disse que a acusação sobre a suposta adulteração dos cartões de vacinação de Bolsonaro "é obra de ficção oportunista. Como sabido por todos, Bolsonaro sempre deixou claro que nunca foi vacinado". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao todo, seis pessoas foram presas preventivamente e diversos mandados de busca e apreensão foram expedidos. Um deles, o que causou mais repercussão, foi executado na casa do ex-presidente em condomínio de luxo de Brasília. Entre os itens levados pelos agentes da PF está um telefone celular de Bolsonaro. De acordo com as investigações, entre os dias 13 de agosto e 14 de outubro de 2022, foram inseridos dados nos sistemas de vacinação do Ministério da Saúde indicando que Bolsonaro havia sido vacinado. A informação, porém, ia na contramão do discurso do então presidente, que dizia que não havia se vacinado. A inserção dos dados, segundo a PF, aconteceu pelo então secretário de saúde do município de Duque de Caxias João Carlos de Sousa Brecha, que é o atual secretário de Governo da cidade. Os dados foram, segundo a PF, posteriormente apagados em dezembro de 2022, pouco antes de Bolsonaro embarcar para os Estados Unidos. A reportagem enviou e-mails para a Prefeitura de Duque de Caxias, mas não obteve retorno. A reportagem não conseguiu localizar a defesa do atual secretário de Governo da cidade. O caso envolve Mauro Cid, assessores próximos a Bolsonaro e servidores públicos de Duque de Caxias. Cid foi um dos presos. A Procuradoria-Geral da República (PGR) foi contra o mandado de busca e apreensão contra a residência de Bolsonaro alegando que não havia elementos suficientes para indicar que ele tivesse ciência do esquema. Alexandre de Moraes, no entanto, argumentou que a justificativa apresentada pela PGR não era "crível" e acatou o pedido feito pela PF. Confira abaixo, os principais elementos elencados pela Polícia Federal e por Alexandre de Moraes que embasaram a operação contra Bolsonaro: Um dos pontos elencados pela PF e por Alexandre de Moraes é a proximidade de Mauro Cid com Bolsonaro, e a suposta impossibilidade de que o esquema funcionasse sem que o ex-presidente tivesse conhecimento. Mauro Cid ficou conhecido ao longo dos quatro anos em que Bolsonaro esteve no poder como um de seus assessores mais próximos. Ele é formado na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), a mesma onde Bolsonaro se formou nos anos 1970. Cid também é filho de um ex-colega de Bolsonaro dos tempos em que o ex-presidente foi militar. Mauro Cid também é investigado pela Polícia Federal no caso envolvendo joias dadas pelo governo da Arábia Saudita à família Bolsonaro. Foi ele quem assinou um ofício endereçado à Receita Federal de São Paulo pedindo a liberação de um lote de joias apreendido no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Essa proximidade fez com que a PF concluísse que seria improvável que Bolsonaro não soubesse da inserção das informações falsas a respeito da sua situação vacinal. A tese de que Bolsonaro poderia não saber de nada foi aventada pela PGR em uma manifestação feita pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo em resposta aos pedidos de prisão e busca e apreensão feitos pela PF. A PGR foi contra o mandado de busca e apreensão na casa de Bolsonaro argumentando que não havia indícios de que ele soubesse do esquema. "Diversamente do enredo desenhado pela Polícia Federal, o que se extrai é que Mauro Cesar Barbosa Cid teria arquitetado e capitaneado toda a ação criminosa, à revelia, sem o conhecimento e sem a anuência do ex-Presidente da República Jair Messias Bolsonaro", disse o parecer da subprocuradora-geral. Alexandre de Moraes, no entanto, não acatou a argumentação. Segundo ele, a tese levantada pela PGR não seria "crível". "Não há qualquer indicação nos autos que conceda credibilidade à versão de que o ajudante de ordens do ex-Presidente da República Jair Messias Bolsonaro pudesse ter comandado relevante operação criminosa, destinada diretamente ao então mandatário e sua filha L. F. B., sem, no mínimo, conhecimento e aquiescência daquele (Bolsonaro), circunstância que somente poderá ser apurada mediante a realização da medida de busca e apreensão requerida pela autoridade policial", disse Moraes ao justificar a decisão que autorizou a busca e apreensão na casa de Bolsonaro, em Brasília. Ao analisar os dados levantados pela Polícia Federal, Moraes afirmou que seria plausível supor que Bolsonaro tenha tentado se beneficiar da inserção dos dados falsos sobre a vacinação. "É plausível, lógica e robusta a linha investigativa sobre a possibilidade de o ex-Presidente da República, de maneira velada e mediante inserção de dados falsos nos sistemas do SUS (Sistema Único de Saúde), buscar para si e para terceiros eventuais vantagens advindas da efetiva imunização, especialmente considerado o fato de não ter conseguido a reeleição nas Eleições Gerais de 2022", disse Moraes em seu despacho. De acordo com a Polícia Federal, depois que os dados sobre a suposta vacinação de Bolsonaro contra a covid-19 foram inseridos no sistema do Ministério da Saúde, Mauro Cid acessou o sistema ConecteSUS do seu próprio telefone para emitir o certificado de vacinação de Bolsonaro. Os acessos aconteceram, segundo a PF, nos dias 22, 27 e 30 de dezembro de 2022. O último acesso, portanto, ocorreu no mesmo dia em que o presidente e sua comitiva embarcaram em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo aos Estados Unidos, onde ficou por três meses. "As consequentes emissões de certificado de vacinação contra a Covid-19, nos dias 22 e 27 de dezembro de 2022, pelo usuário do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO foram realizados no Palácio do Planalto, local condizente com a atividade então exercida por Jair Messias Bolsonaro [...] Da mesma forma, o acesso ao aplicativo ConecteSUS e a emissão de certificado de vacinação contra a Covid-19 no dia 30 de dezembro de 2022 foram realizadas por meio do telefone celular de Mauro Cesar Cid", diz um trecho do relatório feito pela PF e entregue a Alexandre de Moraes. Em outro trecho, a PF avalia que Bolsonaro, Mauro Cid e um militar que atuava como médico do então presidente "tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando (ficando) inertes em relação a tais fatos até o presente momento". Ainda de acordo com a PF, as inserções supostamente falsas de informações pode ter tido um objetivo específico: "Gerar vantagem indevida para o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, relacionada a fatos e situações que necessitem de comprovante de vacinação contra a Covid-19", diz um trecho do relatório da PF. Outro elemento apontado pela Polícia Federal foi o fato de que o esquema teria sido responsável pela emissão de certificado de vacinação para a filha de 12 anos de idade de Bolsonaro com a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Segundo as investigações, os dados sobre a vacinação dela foram inseridos, inicialmente, nos dias 24 de julho de 2022 e 13 de agosto de 2022. Os registros teriam sido feitos no município de Duque de Caxias. O relatório enviado pela PF ao STF aponta, ainda, que no dia 27 de dezembro de 2022, foi emitido um certificado de vacinação em inglês. A PF aponta que, coincidentemente, no dia seguinte, 28 de dezembro, a filha de Bolsonaro embarcou para os Estados Unidos. De acordo com a PF, a supostas inserções falsas de dados referentes à filha de Bolsonaro teriam como objetivo "gerar vantagem indevida para a filha adolescente, por determinação de seus pais". Ainda segundo a PF, os indícios apontam que Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro tinham "plena ciência" sobre os dados falsos envolvendo sua filha. "Obviamente, Jair Messias Bolsonaro e Michelle Firmo Bolsonaro, têm plena ciência de que os dados de vacinação em nome de sua filha menor de idade são ideologicamente falsos. Ainda assim, o certificado digital de vacinação contra a Covid-19 foi emitido no dia 27/12/2022, em língua inglesa, na véspera da viagem da adolescente para os Estados Unidos da América", aponta a PF.
2023-05-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cndg564x8k0o
brasil
A ideologia que estaria por trás de caso do certificado de vacinação de Bolsonaro, segundo a PF
A Polícia Federal deflagrou nesta quarta-feira (3/04) a Operação Venire, destinada a investigar um suposto esquema que teria adulterado dados de vacinação contra a covid-19 do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de assessores próximos e parentes. À rádio Jovem Pan, Bolsonaro negou irregularidades. "Não existe adulteração de minha parte. Eu não tomei a vacina", disse o ex–presidente. Segundo a PF, as fraudes consistiram na alteração dos dados para indicar que os beneficiários do esquema constassem como imunizados, quando, na realidade, eles não tinham sido vacinados. A fraude teria ocorrido no Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI) e na Rede Nacional de Dados de Saúde (RNDS), do Ministério da Saúde. Entre os supostos beneficiários do esquema estariam: Jair Bolsonaro, sua filha de 12 anos de idade e outras quatro pessoas. Fim do Matérias recomendadas Segundo documentos revelados pelo Supremo Tribunal Federal, um dos motivos centrais que teria levado à suposta fraude foi a necessidade do grupo de Bolsonaro em manter o discurso antivacina que marcou parte de seu governo desde o surgimento da pandemia de covid-19. "A apuração indica que o objetivo do grupo seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19", diz um trecho da investigação da PF. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É preciso relacionar o presente contexto criminoso, com a estrutura da Associação especializada investigada nos autos do Inq. 4874/DF, focada nos objetivos de atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral brasileiro, reforçar o discurso de polarização; gerar animosidade dentro da própria sociedade brasileira, promovendo o descrédito dos poderes da República; estimular a animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes constituídos, além de outros crimes", prossegue o texto. Ainda segundo o ofício da PF, um dos objetivos primários dos suspeitos seria "proteger e garantir a permanência no poder das pessoas que representam a ideologia professada". A BBC News Brasil entrou em contato com advogados do ex-presidente, que orientou que os questionamentos sobre a operação da PF nesta quarta-feira fossem feitas diretamente à assessoria de imprensa de Bolsonaro. A reportagem enviou questionamentos à assessoria do ex-presidente, mas até o fechamento desta matéria, nenhuma resposta havia sido enviada. Mas em que consistiram os supostos "ataques à vacinação" de Bolsonaro contra o imunização para a Covid-19? Entre os anos de 2020 e 2022, a crise sanitária causada pela doença foi um dos principais pontos do debate político do país. Poucas semanas após o surgimento dos primeiros casos da doença no Brasil, o espectro político ficou relativamente dividido. O debate no Brasil emulou, em parte, um conflito entre diferentes grupos políticos de outras partes do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, parte do eleitorado mais conservador e alinhado ao Partido Republicano era o que apresentava maior resistência a aderir à imunização contra a Covid-19. Em setembro de 2021, por exemplo, um levantamento feito pelo Kaiser Family Foundation a partir dos dados de vacinação por condados americanos mostrou que, naqueles em que o ex-presidente republicano Donald Trump teve a maioria dos votos, apenas 39,9% da população havia sido vacinada. Em comparação, as áreas em que o atual presidente democrata Joe Biden venceu tinham uma taxa média de 52,8% de totalmente imunizados. No Brasil, o debate se deu entre bolsonaristas de um lado e oposição de outro. O grupo bolsonarista se manifestava contra as medidas de isolamento social defendidas por entidades como a Organização Mundial de Saúde (OMS), o então ministro da Saúde Luiz Mandetta e lideranças da oposição ao então governo Bolsonaro. O então presidente Jair Bolsonaro , pessoalmente, se posicionava contra as medidas. Seu argumento era o de que elas prejudicariam a economia do país e colocariam parte da população mais pobre em situação de ainda maior vulnerabilidade. Em março de 2020, em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, Bolsonaro pediu o fim de medidas de isolamento social. "Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa", disse. Em abril de 2020, ele voltou a focar sobre os supostos prejuízos do isolamento social à economia. "O Brasil está se tornando um país de pobres. O que eu falava lá atrás, que era esculachado, estão vendo a realidade agora aí. Pra onde está indo o Brasil? Vai chegar um ponto que o caos vai se fazer presente aqui. Essa história de lockdown, ‘vamos fechar tudo’, não é esse o caminho. Esse é o caminho do fracasso, quebrar o Brasil", disse a apoiadores em Brasília. Em meio a essa crise dentro do governo, Mandetta foi demitido. Com o passar dos meses e o surgimento das primeiras vacinas contra a Covid-19, a polarização em torno do tema passou a incluir os imunizantes. De um lado, Bolsonaro fazia declarações que colocavam em xeque a eficácia dos imunizantes contra a Covid-19. Ao mesmo tempo, ele defendia o uso de medicamentos comprovadamente ineficientes contra a doença como a cloroquina e a hidroxicloroquina. "Se você virar um jacaré, problema de você. Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não vão ter nada a ver com isso. O que é pior: mexer no sistema imunológico das pessoas. Como é que você pode obrigar alguém a tomar uma vacina que não se completou a terceira fase ainda, que está na experimental?”, disse Bolsonaro em dezembro de 2020. "E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está [em estado] experimental. Nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina, em especial na região amazônica”, disse Bolsonaro em junho de 2021. Do outro lado desse debate, cientistas, acadêmicos e lideranças políticas que na época estavam na oposição a Bolsonaro como o então pré-candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), se manifestavam a favor da vacinação. Em dezembro de 2020, Bolsonaro passou a afirmar que não iria tomar a vacina contra a Covid-19. “Como sempre, eu nunca fugi da verdade, eu te digo: eu não vou tomar vacina. E ponto final. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu. E ponto final”, disse. Já em 2021, quando a vacinação no Brasil já havia iniciado, Bolsonaro voltou a afirmar que não se vacinaria. "Da minha parte, eu não tomei vacina e não vou tomar vacina. É um direito meu e de quem não quer tomar. Até porque os efeitos colaterais e adversos são enormes”, disse Bolsonaro. No relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, Bolsonaro foi apontado como um dos responsáveis pela propagação descontrolada da doença no Brasil, entre outros motivos, por suas declarações contrárias à vacinação. "Veja-se que, ao incitar a população a não se vacinar, o Presidente da República prejudica o êxito de qualquer campanha de vacinação. Ademais, como apontado na representação criminal acima citada, a recusa à imunização constitui gravíssimo atentado à saúde pública, pois também facilita a ocorrência de formas mutantes do mencionado organismo", diz um trecho do documento. O relatório final da CPI sugeriu o indiciamento de Bolsonaro por nove crimes: prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade. Em uma transmissão em suas redes sociais, em outubro de 2021, Bolsonaro criticou as conclusões do relatório. "Não vou discutir essa história de fantasia, festival de baboseiras", disse. Ao longo de 2022, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu o arquivamento de ações abertas contra Bolsonaro em decorrência dos pedidos de indiciamento feitos pela CPI da Pandemia. Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou o arquivamento de pelo menos duas investigações contra Bolsonaro em decorrência da CPI da Pandemia. Uma delas, ele era investigado por infração de medida sanitária pelo não-uso de máscara em lugares públicos. Na outra, ele era investigado por "causar epidemia". O arquivamento foi determinado pelo ministro Dias Toffoli que acatou um pedido feito pela PGR. Segundo o órgão, não teriam sido encontrados "indícios mínimos" para a abertura dos inquéritos. Apesar disso, a condução das medidas contra a Covid-19 foram alvo de intenso debate durante as eleições presidenciais de 2022, quando Bolsonaro perdeu para Lula no segundo turno. Em setembro de 2021, quando a CPI da Pandemia ainda estava em funcionamento, 54% da população, segundo o Datafolha, reprovam a gestão de Bolsonaro em relação à Covid-19. Em abril de 2022, o índice caiu, mas ainda estava em 46%.
2023-05-03
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brasil
Paraguai: 'Quero discutir com Lula próximos 50 anos de relação', diz presidente eleito
O presidente eleito do Paraguai, Santiago Peña, já planeja sua primeira conversa com o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após assumir o cargo a partir de 15 de agosto. A expectativa é grande porque os dois países precisam renegociar este ano o Tratado de Itaipu, que completou 50 anos em abril e define as condições de comercialização da energia gerada na hidrelétrica binacional. No Paraguai, o acordo de 1973 é considerado por parte da população como desfavorável ao país. Os críticos defendem que o Paraguai venda sua energia excedente livremente no mercado e não somente ao Brasil, sob preços regulados. "Meu maior desejo, além de conseguir mais recursos, é sentar com o presidente Lula do Brasil e que nós também possamos imaginar uma relação que dure pelos próximos 50 anos", disse Peña, em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Peña, um economista de 44 anos e ex-ministro da Fazenda do governo do ex-presidente Horacio Cartes, venceu a eleição presidencial do Paraguai no domingo (30/4) com 43% dos votos, mais de 15 pontos à frente de seu oponente mais próximo, Efraín Alegre. Fim do Matérias recomendadas O conservador Partido Colorado, presidido por Cartes, conseguiu assim manter o poder que exerceu nos últimos 76 anos no país sul-americano, com exceção dos cinco anos de 2008 a 2013, e conquistar maioria no Congresso. Peña descarta romper os laços históricos do Paraguai com Taiwan para estabelecer relações diplomáticas com a China, uma reivindicação de setores importantes da economia paraguaia, como pecuaristas e grandes agricultores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, apesar de seu perfil conservador, anuncia que vai restabelecer relações com a Venezuela, rompidas em 2019 pelo atual presidente Mario Abdo, também do Partido Colorado. "Hoje só há um presidente na Venezuela e esse presidente se chama Nicolás Maduro", diz o presidente eleito. "Portanto, temos que trabalhar com a Venezuela. E trabalhar com a Venezuela não deve impedir que tenhamos uma posição crítica." Confira os principais trechos da entrevista feita por telefone com o homem que se prepara para a assumir a presidência do Paraguai. BBC News Mundo - A que o senhor atribui seu triunfo eleitoral por uma diferença maior do que muitos esperavam, confirmando a hegemonia do Partido Colorado no poder no Paraguai? Santiago Peña - Acredito que minha candidatura representou uma renovação dentro da política paraguaia e dentro de um partido de 135 anos, que foi um dos grandes protagonistas da história. Esse protagonismo se deu porque consegui compreender os diferentes momentos da história do Paraguai. Hoje o Paraguai vive uma situação em que houve avanços em termos econômicos, mas há grandes dívidas em questões sociais. A qualidade da educação, o acesso à saúde pública, a infraestrutura, exigem uma visão mais moderna das políticas públicas. As pessoas precisam de mais e melhores serviços públicos, de empregos de melhor qualidade. Minha passagem pela administração pública como diretor do Banco Central, ministro da Fazenda, tendo sido uma figura nova na política que começou a falar de projetos, de como juntarmos os pontos no processo de desenvolvimento, chegou a um eleitorado que estava acostumado à troca de ofensas e encontrou um candidato que não respondia às ofensas, que apresentava propostas e que apontava um caminho para um Paraguai desenvolvido, onde os paraguaios possam estar em melhor situação. BBC News Mundo - Aos problemas que mencionou, pode-se acrescentar, por exemplo, uma economia com uma pobreza que castiga um quarto da população do Paraguai, ou crescentes desafios de segurança relacionados ao crime organizado. Como você planeja lidar com isso? Peña - Isso será enfrentado pela modernização das instituições de controle, uma burocracia pública que em alguns aspectos melhorou. Na gestão econômica, o Paraguai se destaca claramente como uma das economias mais estáveis e isso se deve ao mérito de duas instituições: o Banco Central, instituição eminentemente técnica e blindada pelas influências conjunturais de altos e baixos políticos, e o Ministério da Fazenda, que permitiu ao país desenvolver uma política econômica com visão de longo prazo. Temos que transferir esse êxito para o campo da segurança. O Ministério do Interior e a Polícia Nacional precisam ser fortalecidos. É necessário trabalhar na luta contra a corrupção e a impunidade. E o mesmo nas instituições responsáveis pela formação do capital humano. Então o Paraguai tem gerado alguns avanços e em outros, infelizmente, não temos tido sucesso. Minha intenção é acelerar esse processo de melhoria nos próximos anos. BBC News Mundo - O senhor acredita que as sanções que os EUA aplicaram ao ex-presidente Horacio Cartes por "corrupção significativa" influenciaram de alguma forma as eleições? [O Tesouro americano estabeleceu sanções contra Cartes em janeiro, acusando o padrinho político de Peña de corrupção e vínculos com o grupo islâmico Hezbollah.] Peña - Creio que não. A verdade é que seria muito difícil argumentar que sim, porque a diferença que tivemos [em votos] foi a maior da história democrática do Paraguai. Conquistamos maioria nas duas casas do Congresso e isso também é um fato histórico: não acontecia há 25 anos. Isso também representa um sinal muito importante. As pessoas entenderam que esse projeto político tem uma visão muito clara do que queremos para o Paraguai nos próximos anos: um país moderno, desenvolvido e que crie oportunidades para todos. BBC News Mundo - Pergunto por que, quando as sanções foram anunciadas, alguns pensaram que poderiam prejudicar seu Partido Colorado. Mas talvez o senhor acredite que ocorreu o contrário, levando em conta que a diferença a favor dos colorados foi maior do que nas eleições anteriores? Peña - Há argumentos nesse sentido: que os ataques que o Partido Colorado sofreu, tanto internos quanto externos, o que mais fizeram foi unir o sentimento nacionalista, que é de certa forma a bandeira do partido. É importante lembrar que o Partido Colorado foi criado após a Guerra da Tríplice Aliança [mais conhecida no Brasil como Guerra do Paraguai, que opôs o país a uma aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai, em meio à tentativa do Paraguai de anexar territórios dos países vizinhos], que quase levou o Paraguai à beira da extinção. E o grande objetivo do Partido Colorado em sua fundação era a reconstrução da pátria, a defesa do Paraguai e dos paraguaios. Isso ao longo dos anos gerou um sentimento de identidade nacional a partir do Partido Colorado, praticamente o único partido do mundo que tem 55% de todo o eleitorado nacional. Então, com uma base tão ampla de membros, podemos dizer que o Partido Colorado representa amplamente os sentimentos de todos os paraguaios. BBC News Mundo - Qual será o papel do ex-presidente Cartes no seu governo agora? Peña - O presidente Cartes por mandato popular é presidente do Partido Colorado, que tem sido o grande vencedor nas eleições porque, além da minha candidatura a presidente, também tem maioria nas duas casas do Congresso. Nas 17 províncias do Paraguai, em 15 candidatos colorados venceram. Ele [Cartes] tem uma grande responsabilidade de colocar em prática o que vem falando, de ter um partido a serviço de todos os paraguaios, independentemente de sua identidade política. Então ele vai ter que ser um grande apoio para o meu governo e acompanhar a partir do partido a agenda de mudanças que quero levar adiante. BBC News Mundo - Cartes é considerado seu padrinho político, no sentido de que o convocou para cargos de governo quando era presidente. Por esse motivo, uma pergunta que muitos se fazem é como o senhor vê essas sanções. O senhor acha que as sanções aplicadas pelos EUA por "corrupção significativa" ao ex-presidente Cartes foram injustas ou merecidas? Peña - Acho que elas não honram a experiência que temos. Acredito que o senhor Cartes não só tem direito à defesa, mas por ser uma figura pública é obrigado a se defender. É o que pedimos a ele é o que ele está fazendo. Desde que foi nomeado em julho do ano passado e novamente em janeiro deste ano, já com sanções econômicas, ele rejeitou essas acusações e colocou todos os recursos necessários para sentar-se para conversar com as autoridades americanas, que podem lhe mostrar quais são as provas que eles têm para que ele possa se defender dessas acusações. Acho que há uma responsabilidade política tremenda e que ele tem muita consciência de que, sendo uma figura pública que está à frente de um partido, tem a obrigação de provar que essas acusações não são verdadeiras. BBC News Mundo - E o que seu governo faria se chegasse um pedido dos EUA para extradição do ex-presidente Cartes? Peña - Em todo processo de extradição, o Paraguai tem um histórico de cumprimento desses pedidos. Eles são protegidos por tratados internacionais. Os pedidos de extradição são procedimentos na esfera judicial, fora do âmbito do poder Executivo. Portanto não é uma decisão do presidente da República permitir ou rejeitar uma extradição. Acredito que o Paraguai tem demonstrado uma enorme disposição em cumprir acordos e tratados internacionais, e isso não mudará sob minha presidência. BBC News Mundo - Como o senhor espera que seja a relação do seu governo com os EUA, dada esse precedente imediato de sanções contra ninguém menos que o presidente de seu partido e o homem que o apresentou à política e ao governo? Peña - Para esclarecer, antes de conhecer Horacio Cartes, antes de Horacio Cartes ser eleito Presidente da República, eu já era diretor do Banco Central, já tinha uma carreira internacional, tinha trabalhado no Fundo Monetário Internacional e era uma figura pública bem conhecida no Paraguai, mas mais no âmbito técnico. Ele [Cartes], com base na minha experiência e currículo, me nomeia Ministro da Fazenda. E pude construir uma carreira política. Fui candidato há cinco anos, perdi, e continuei atuando de forma independente dentro do Partido Colorado, construindo uma base eleitoral muito importante. No dia 18 de dezembro me tornei candidato pelo Partido Colorado e desde ontem [domingo], presidente de todos os paraguaios. Então está muito claro que eu posso ter participado de um governo, mas sou senhor de mim mesmo e tenho conhecimento e personalidade para enfrentar o desafio de ser presidente da República. Quanto à relação com os Estados Unidos ou com qualquer outro país, o Paraguai tem sido historicamente um bom amigo da comunidade internacional. Em geral, mantemos laços com todos os países do mundo e a relação bilateral com os EUA tem sido historicamente muito, muito boa. Isso não vai mudar sob a minha presidência. Entendo que os EUA aplicam sanções sob uma lei que os autoriza a fazê-lo. E claramente respeitamos essa estrutura legal. Só podemos pedir às pessoas que foram afetadas por essas sanções que, se sentirem que as designações não correspondem à realidade, entrem em contato para se defenderem dessas medidas. Este tipo de sanções também não afetou a relação do atual governo, tendo em vista que o atual vice-presidente da República também foi sancionado. Então eu não vejo que haverá nenhuma mudança nesse sentido. BBC News Mundo - Durante a campanha, o senhor defendeu a continuidade da relação do Paraguai com Taiwan. Você descarta completamente que seu país possa romper esse vínculo histórico nos próximos cinco anos para abrir relações diplomáticas com a China? Peña - Sim, descarto totalmente. BBC News Mundo - Pergunto por que existem setores muito importantes da economia paraguaia, como a pecuária e a agricultura, que demandam maior comércio com a China. Apontam, inclusive, que para isso é preciso ter relações diplomáticas, para evitar ter que vender por terceiros como é feito atualmente. É possível atender a essas reivindicações e ter mais comércio com a China sem relações diplomáticas? Peña - Sim, totalmente. Estou convencido de que sim. A China continental é o principal mercado de abastecimento do Paraguai. A China, por meio de uma empresa pública chinesa, é a maior compradora de soja do Paraguai: opera e tem investimentos no Paraguai, não há restrições de nenhum tipo. O Paraguai opera em mercados de commodities competitivos, que se movem em virtude da oferta e demanda internacional. Acredito que o Paraguai tem capacidade de entrar nos mercados mais competitivos do mundo, tem produtos da mais alta qualidade. A soja paraguaia é de melhor qualidade que a produzida em outros países da região, devido à carga calórica dos grãos. Então a China não vai comprar a carne nem a soja do Paraguai porque há um interesse diplomático; vai comprar porque o Paraguai tem carne de boa qualidade e soja a preços competitivos. Vou trabalhar nos próximos anos para fortalecer o setor produtivo e principalmente avançar em um processo de industrialização. O gigantismo da China, que oferece claramente uma grande oportunidade de acesso a um mercado de 1,4 bilhão de habitantes, representa também uma situação bastante desafiadora para um país que hoje é principalmente produtor de matérias-primas. Portanto, não podemos focar apenas na venda de matérias-primas; temos que avançar em um processo de geração de valor agregado às nossas exportações. Ou seja, um processo de industrialização. Acho que estaremos em uma posição melhor se nos integrarmos a mercados como Taiwan, Japão, Coreia e outros países do Sudeste Asiático do que à China continental, que tem custos de produção mais baixos para produtos manufaturados e [em relação a quem] sempre estaremos em desvantagem. Esta não é uma questão meramente diplomática ou emocional. É uma combinação de princípios e valores democráticos, mas também responde à lógica do momento do processo de desenvolvimento em que o Paraguai se encontra e para onde queremos avançar. BBC News Mundo - Este ano o Paraguai deve renegociar com o Brasil o acordo para a distribuição da energia gerada na barragem de fronteira de Itaipu. O senhor pretende exigir alguma coisa em particular nesta negociação? Peña - Mais do que exigir, [queremos] sentar com o Brasil e imaginar nossa relação pelos próximos 50 anos. Além das questões econômicas e financeiras, o fato a destacar é que, há 50 anos, paraguaios e brasileiros imaginaram a construção e a amortização de uma hidrelétrica que continua sendo uma das maiores produtoras de energia limpa e renovável do mundo. Esta é uma conquista magnífica de engenharia, diplomacia e relações bilaterais. Meu maior desejo, além de conseguir mais recursos, é sentar com o presidente Lula do Brasil e que nós também possamos imaginar uma relação que dure pelos próximos 50 anos. BBC News Mundo - Como o senhor bem sabe, muitos no Paraguai têm a ideia de que o acordo de 1973, que agora está expirando, foi prejudicial ao país. E alguns sugerem que o país deveria oferecer livremente o excedente de energia gerado na barragem ao mercado, em vez de entregá-lo ao Brasil a taxas reguladas, o que aumentaria a receita de seu governo. O que o senhor pensa sobre isso? Peña - Penso que Itaipu foi uma grande conquista para o Paraguai. Acredito que o Paraguai está muito melhor hoje com o Mercosul do que estaria se o acordo do Mercosul não tivesse sido assinado. A questão é se podemos conseguir mais. Estou convencido de que podemos fazer muito mais. Mas isso depende de nós, paraguaios, não de uma negociação. O Paraguai tem e desfruta da disponibilidade gratuita de seus 50%. O que é necessário? Investir em redes de transmissão e distribuição. Essa é uma decisão unilateral nossa; não temos que negociar com o Brasil. O que muitos falam há muito tempo sobre reivindicar a disponibilidade gratuita disso nada mais é do que simples retórica política. Temos 50%. O que temos que fazer é a capacidade de usá-la, que é o que eu quero planejar. Que possamos fazer uma revolução no emprego no Paraguai e que o investimento em linhas de transmissão e distribuição seja a grande estrada que permita que indústrias e empresas nacionais e estrangeiras cheguem ao país para gerar empregos e se beneficiar de energia limpa e renovável a preços muito competitivos. No outro ponto, que é a possibilidade de vender para países terceiros, também não há restrições. O problema é operacionalmente como fazemos isso. A infraestrutura para poder fazer isso necessariamente tem que passar pelas redes da Argentina e do Brasil para poder ir a mercados como Uruguai ou Chile. BBC News Mundo - O que vai fazer com as relações diplomáticas com a Venezuela, que o atual presidente paraguaio Mario Abdo rompeu em 2019 quando Nicolás Maduro assumiu um novo mandato que considerava ilegítimo? Peña - Muitos de nós vimos o processo eleitoral e a defesa dos direitos humanos na Venezuela por muitos anos com grande preocupação. Quando estávamos no governo tínhamos uma posição muito crítica quanto a isso e reconhecíamos o governo Maduro. Aconteceu o que aconteceu nas últimas eleições. Tentou-se estabelecer Juan Guaidó como presidente da Assembleia e que ele pudesse exercer a presidência da República. Essa tentativa não teve sucesso. E acredito claramente que o Paraguai deve restabelecer as relações com o povo venezuelano. Temos que avançar em um processo de integração e respeitar cada um dos países. Temos todo o direito de ser sempre uma voz firme em defesa dos direitos humanos e de pedir eleições justas, participativas e que não haja dúvidas sobre as autoridades que têm de julgar. Em termos concretos, quero restabelecer relações com a Venezuela, para que possamos aproximar nossos povos, e espero que o povo venezuelano consiga, pelo livre exercício da vontade popular, a eleição de suas autoridades. BBC News Mundo - Mas, para o senhor, o governo de Maduro é legítimo ou ilegítimo, conforme definido pelo presidente Abdo, que é membro do seu mesmo partido? Peña - Hoje só há um presidente na Venezuela e esse presidente se chama Nicolás Maduro. Não há alternativa. Portanto, temos que trabalhar com a Venezuela. E trabalhar com a Venezuela não deve impedir que tenhamos uma posição crítica, contra a falta de garantias. A resposta concreta é restabelecer as relações com a Venezuela, ter um embaixador em Caracas e dialogarmos com as autoridades daquele país. BBC News Mundo - Como o senhor se define ideologicamente? Peña - Eu me defino como uma pessoa que quer ver o progresso de nossos países sem prejuízo daqueles que possam ter uma visão mais enviesada para a direita ou para a esquerda. O que eu quero para o meu país é progredir. Eu acredito no estado de direito. Eu acredito no mercado livre. Mas também acredito numa presença forte do Estado naquelas áreas em que ele tem um papel indelegável: na prestação de serviços públicos como saúde, educação e segurança. Eu provavelmente poderia me identificar como uma pessoa de centro, com forte crença nas forças do mercado e uma enorme sensibilidade social. [Acredito] que em países como o nosso, que têm tanta riqueza, não há o direito de ter pessoas na pobreza.
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c10qdz85311o
brasil
Bolsonaro não precisou de registro de vacina para ir aos EUA
Alvo de uma operação da Polícia Federal na manhã desta quarta (3/5), por suspeita de fraude de registro de vacina, o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) não foi obrigado a comprovar que havia sido imunizado contra a covid-19 para ingressar nos Estados Unidos no fim do ano passado, quando ainda era chefe de Estado. Conhecido por defender a não obrigatoriedade da vacina e por repetir que ele próprio jamais se vacinou, Bolsonaro viajou à Flórida antes do fim de seu mandato, no dia 30 de dezembro, quando ainda possuía um visto diplomático A1 emitido pelas autoridades americanas. Embora, desde 2021, todos os viajantes aos EUA por via aérea tivessem que comprovar ter tomado ao menos duas doses de imunizantes contra o novo coronavírus, no mínimo 15 dias antes do embarque, o Center for Disease Control and Prevention (CDC) prevê uma lista de exceções à regra. A primeira delas se aplica a "pessoas em viagens diplomáticas ou oficiais de governos estrangeiros", caso de Bolsonaro. Por ser menor de 18 anos, a filha do ex-presidente, Laura, também se incluiria em uma exceção prevista pelo CDC. Questionado, o porta-voz do Departamento de Estado, Vedant Patel, afirmou que "os dados são confidenciais" e que não discutiria casos específicos. "O que posso dizer é que havia a exigência de ser vacinado para entrar nos Estados Unidos, além de qualquer documentação necessária. Mas o CDC pode falar sobre os diferentes níveis de requerimento para entrar no país", disse Patel. Fim do Matérias recomendadas Fontes no Itamaraty com conhecimento dos procedimentos aos quais Bolsonaro foi submetido nas viagens internacionais informaram à BBC News Brasil que, de posse de passaporte e visto diplomático, Bolsonaro não foi obrigado a mostrar seu comprovante de vacina nem em dezembro de 2022, nem em suas outras viagens anteriores aos EUA, como em junho de 2022, quando ele se encontrou em Los Angeles com o presidente americano Joe Biden, ou em 2021, quando foi a Nova York para participar da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Na ocasião, inclusive, o então prefeito de Nova York, Bill de Blasio, chegou a dizer ao presidente brasileiro que "se você não quer se vacinar, não se dê ao trabalho de vir". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Foi nesta mesma viagem, em 2021, que a então primeira-dama Michelle Bolsonaro se vacinou em Nova York. Segundo a Polícia Federal, tanto os registros de vacina de Bolsonaro quanto o de sua filha Laura e de assessores do então presidente, como o ajudante de ordens Mauro Cid, teriam sido adulterados poucos dias antes da partida de Bolsonaro para os EUA, em dezembro passado, e uma das suspeitas dos investigadores seria a de que a adulteração do documento teria por objetivo facilitar a entrada do grupo em território americano. Apresentar documento falso no ingresso aos EUA é crime federal, passível de pena de multa e de prisão. Não existe, porém, qualquer indício de que Bolsonaro jamais tenha apresentado qualquer registro vacinal, legítimo ou forjado, às autoridades americanas. Segundo disse à BBC News Brasil, em fevereiro, o advogado de migração de Bolsonaro nos EUA, Felipe Alexandre, quando o já ex-presidente pediu alteração de seu status no país do visto diplomático A1 para o visto de turista (B1/ B2), as autoridades americanas tampouco pediram comprovante de vacina. "Não, para mudança de status, eles não estão exigindo isso. (...)A pedidos (de visto) fora do país, para você poder entrar aqui, eles estão exigindo isso. Mas se você já conseguiu o visto e você conseguiu entrar aqui, (não precisa)", afirmou Alexandre. Nesta quarta, em entrevista à rede Jovem Pan, Bolsonaro afirmou que "o tratamento dispensado a chefe de Estado (nos EUA) é diferente do cidadão comum. Tudo é acertado antecipadamente e em minhas idas aos EUA em nenhum momento foi exigido o cartão vacinal. Então, não existe fraude de minha parte no tocante a isso". A BBC News Brasil tentou contato com o assessor de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, mas não recebeu retorno. Bolsonaro e mais seis auxiliares, entre eles o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, foram alvo da Operação Venire, deflagrada pela Polícia Federal no âmbito do inquérito sobre milícias digitais. A BBC News Brasil não obteve informações sobre a existência de passaportes e vistos diplomáticos de Cid e dos demais assessores. Se estivessem cobertos pelos mesmos documentos que os de Bolsonaro, eles também fariam jus à exceção na chegada ao território americano. Caso quisessem pedir visto de turismo aos EUA, estes auxiliares teriam que apresentar ao consulado americano no Brasil seus comprovantes de vacinas. A exceção à regra de apresentar cartão de vacina não se aplicava apenas a Bolsonaro, mas a autoridades em geral. Perguntada pela BBC News Brasil, a secretaria de imprensa do Palácio do Planalto informou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve que comprovar vacinação para entrar nos EUA em fevereiro de 2023, quando veio a Washington D.C. para encontro com o presidente Biden. A secretaria destaca, porém, que, antes de entrar na Casa Branca, Lula apresentou seu registro vacinal às autoridades americanas e diz que não seria problema ao atual presidente comprovar que está vacinado. Sob o governo do petista, o Programa Nacional de Imunização vem sendo reestruturado e o personagem Zé Gotinha tem retomado protagonismo.
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckrk785vp41o
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Quem é Mauro Cid, ex-ajudante de Bolsonaro preso pela PF
A Operação Venire foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito do inquérito que investiga as "milícias digitais". A PF apura a inserção de dados falsos sobre vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados que viabilizariam uma viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos. Foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão em Brasília e no Rio de Janeiro, além de seis mandados de prisão. Segundo a TV Globo, teriam sido forjados os certificados de vacinação de Bolsonaro, da filha dele de 12 anos, de Cid, sua mulher e sua filha. Fim do Matérias recomendadas A defesa de Cid ainda não se pronunciou e segundo Fábio Wajngarten, ex-secretário de comunicação do governo Bolsonaro, ele aguarda para prestar depoimento à PF assim que sua defesa tiver acesso aos autos do processo. Em entrevista à Jovem Pan, Bolsonaro negou qualquer fraude e reiterou que não tomou vacina contra a covid-19. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mauro Cid é oficial do Exército com mais de 20 anos de carreira. Ele era major e foi promovido a tenente-coronel no ano passado. Cid formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 2000 e foi instrutor na instituição. Seu pai, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, foi colega de turma de Bolsonaro na Aman nos anos 1970. Cid se preparava para assumir um posto nos Estados Unidos quando foi nomeado para ser ajudante de ordens de Bolsonaro, pouco antes da posse do ex-presidente. Nesta função, ele era o braço direito do ex-presidente e prestava assistência direta a Bolsonaro, inclusive para assuntos de caráter pessoal. Cid teria, por exemplo, coordenado a tentativa de Bolsonaro de reaver as joias que foram presenteadas a Michelle Bolsonaro e foram apreendidas pela Receita Federal na alfândega em São Paulo. Cid assinou um ofício enviado à Receita, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo, informando que um auxiliar de Bolsonaro iria até São Paulo para reaver as joias. De acordo com o G1, Cid disse à PF que o ex-presidente teria pedido a ele que tentasse reaver as joias retidas na alfândega. Cid também seria investidado pela PF, segundo o site Metrópoles, por ter supostamente operado um "caixa paralelo" no Palácio do Planalto por meio de saques de recursos de cartões corporativos da Presidência. Ambos negam as acusações. A PF também pediu o indiciamento do tenente-coronel por ter supostamente produzido o material usado por Bolsonaro em uma transmissão ao vivo pelas redes sociais em outubro de 2021 para associar falsamente a vacina contra a covid-19 e o vírus HIV. Cid também depôs à PF na investigação sobre a organização e financiamento de atos democráticos, conforme noticiou o jornal O Estado de S. Paulo. Ele foi convocado depois de a polícia obter mensagens enviadas pelo blogueiro Allan dos Santos em que ele teria afirmado ao ex-ajudante de ordens que as Forças Armadas precisavam agir após grupos "antifascistas" protestarem contra o governo Bolsonaro em maio. À PF, Cid afirmou que não se recordava de ter conversado com Santos sobre este assunto e negou que apoiava a proposta. Santos teve sua prisão decretada pelo STF. A Corte também pediu sua extradição, porque ele está atualmente nos Estados Unidos. Cid também é apontado como o pivô da demissão, em janeiro, do ex-comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, que teria resistido a revogar a nomeação do tenente-coronel para chefiar um batalhão em Goiânia. O Exército não informou o motivo da exoneração do general.
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g7xy4e8kwo
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O que se sabe sobre operação da PF que fez buscas na casa de Bolsonaro
A Polícia Federal (PF) realizou buscas nesta quarta-feira (3/5) na casa de Jair Bolsonaro e prendeu o tenente-coronel Mauro Cid Barbosa, ex-ajudante de ordens do ex-presidente. A Operação Venire foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do inquérito que investiga as “milícias digitais”. A PF apura a inserção de dados falsos sobre vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados que viabilizariam uma viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos. Foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão em Brasília e no Rio de Janeiro, além de seis mandados de prisão. O celular de Bolsonaro teria sido apreendido, mas não haveria ordem de prisão contra ele. Inicialmente, foi divulgado na imprensa que o celular da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro também teria sido apreendido, mas ela negou isso em sua conta no Instagram. Fim do Matérias recomendadas "Hoje a PF fez uma busca e apreensão na nossa casa, não sabemos o motivo e nem o nosso advogado não teve acesso aos autos. Apenas o celular do meu marido foi apreendido. Ficamos sabendo, pela imprensa, que o motivo seria 'falsificação de cartão de vacina' do meu marido e de nossa filha Laura. Na minha casa, apenas EU fui vacinada", escreveu Michelle na rede social. Procurada pela BBC News Brasil, a PF se manifestou afirmando que "não comenta/divulga nomes de eventuais investigados, nem se manifesta sobre investigações em andamento". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Havia a expectativa de que Bolsonaro prestaria depoimento ainda na quarta-feira (3/5) sobre o caso. Porém, o advogado Paulo Cunha Bueno disse ao jornal Folha de S. Paulo em nome do ex-presidente que Bolsonaro não irá até a PF nesta data e que um novo dia será marcado, mas só após sua defesa ter acesso aos autos do processo. "Bolsonaro vai exercer, por enquanto, o direito de ficar calado", disse o advogado ao jornal. O ex-presidente falou brevemente com jornalistas ao sair de sua casa em Brasília e, ao ser perguntado sobre as suspeitas de adulteração nos cartões de vacina, disse que "não tem nada disso". "Havia gente que me pressionava para tomar a vacina e eu não tomei. Não tomei porque li a bula da Pfizer. Não tem nada disso. Se eu tivesse que entrar (nos EUA) e apresentar o cartão vocês estariam sabendo", disse. Ele ainda confirmou que seu celular foi levado pelos policiais. "O meu foi apreendido. O meu telefone não tem senha, não tenho nada a esconder." Fábio Wajngarten, ex-secretário de comunicação do governo Bolsonaro, foi questionado por jornalistas se Bolsonaro teria entrado nos Estados Unidos no final do ano passado apresentando um cartão de vacinação. "Vou apurar isso agora, estou indo encontrar com ele [Bolsonaro], acho que ele entrou com um passaporte como sendo presidente da República, eu não tenho essa informação, não conheço esse rito", disse Wajngarten. Entre as seis pessoas que foram presas na operação estão o secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha, o policial militar Max Guilherme Machado de Moura, e o militar do Exército Sérgio Rocha Cordeiro, estes dois ex-assessores e atuais seguranças de Bolsonaro. Segundo a TV Globo, teriam sido forjados os certificados de vacinação de Bolsonaro, da filha dele de 12 anos, do ex-ajudante de ordens Mauro Cid Barbosa, da mulher e da filha dele. A adulteração dos dados sobre vacinação ocorreu, de acordo com a PF, entre novembro de 2021 e dezembro de 2022. O objetivo seria burlar restrições sanitárias impostas pelos governos do Brasil e dos Estados Unidos. Os dados teriam sido inseridos no Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI) e na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) do Ministério da Saúde. A PF não divulgou quem, segundo as investigações, teria feito essa inserção. De acordo com os investigadores, a finalidade do grupo seria “manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas” e “sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19”. "As inserções falsas, que ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, tiveram como consequência a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, a condição de imunizado contra a Covid-19 dos beneficiários", diz a PF em nota. "Com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes imposta pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa, no caso, a pandemia de covid-19." Entre as condutas investigadas e que podem configurar crimes estão: infração de medida sanitária preventiva; associação criminosa; inserção de dados falsos em sistemas de informação; e corrupção de menores. Segundo a PF, o nome da operação deriva do princípio “Venire contra factum proprium”, que significa "vir contra seus próprios atos" ou "ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos". É um princípio base do Direito Civil e do Direito Internacional, que veda comportamentos contraditórios de uma pessoa. Durante seu governo, Bolsonaro colocou em sigilo o seu cartão de vacinação, sob o argumento de que se tratava de informação pessoal. Em várias ocasiões, ele disse que não se vacinou contra a covid-19. Depois que tomou posse, o presidente Lula determinou uma revisão dos sigilos impostos por Bolsonaro durante seus quatro anos na Presidência. Mas, em fevereiro, a Controladoria-Geral da União informou que o órgão havia iniciado, nos últimos dias de mandato do ex-presidente, uma investigação preliminar sigilosa para apurar "adulteração do cartão de vacinação" de Bolsonaro. "Considerando que a investigação é sigilosa e não está concluída, a CGU submeteu a matéria à avaliação de sua Consultoria Jurídica para emitir parecer quanto à viabilidade de divulgação da decisão sobre o sigilo relacionado a esse tema, por estar em curso a apuração correcional", informou a CGU na época, ao justificar o fato de não ter derrubado o sigilo sobre o cartão de vacinação.
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gv897e5z1o
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Selic: por que Lula não para de falar nos juros?
Desde janeiro, o presidente Lula vem repetindo a mesma crítica à alta dos juros, que estão em 13,75% por determinação do Banco Central (BC). A entidade anuncia nesta quarta (3) o resultado da terceira reunião do ano para definição da Selic (a taxa básica de juros), e o mais provável é que o valor seja mantido apesar das críticas do governo. É o Banco Central, através do Copom (Comitê de Política Monetária), que determina a taxa de juros como um dos principais mecanismos para controlar a inflação. O objetivo do BC é manter a inflação dentro da meta, que por sua vez é determinada por um grupo formado pelo Banco Central e pelos ministérios da Fazenda e do Planejamento. O presidente tem afirmado que não existe explicação para uma taxa de juros que considera alta demais, que ela tem impedido o crescimento e afirmando que a taxa é "parcialmente responsável" pelo desemprego no país. O líder do Senado, Rodrigo Pacheco, já disse ser favorável a uma taxa menor e recentemente Lula conseguiu o apoio da deputada Tabata do Amaral (PSB), que sempre defendeu pautas mais liberais na economia. Já o Banco Central afirma que a taxa precisa ser mantida neste patamar senão a inflação sairia do controle. O presidente do Banco Central também afirmou que a aprovação de um arcabouço fiscal que garanta controle nas contas públicas é um dos fatores que permitiria a queda dos juros sem que a inflação suba demais. Fim do Matérias recomendadas A alta dos preços não é algo que beneficia o governo e a queda de braços com o Banco Central gera incertezas na economia, segundo analistas ouvidos pela BBC. Porque então Lula tem insistido tanto no tema dos juros? Porque a queda dos juros é tão importante para o governo neste momento? Manter a inflação dentro da meta é um dos três pilares da estabilidade econômica brasileira desde a implantação do Plano Real nos anos 1990. E a taxa de juros é o principal mecanismo para esse controle. A taxa de juros alta é um método de segurar a inflação pois desincentiva o uso do crédito no mercado - com menos crédito, há menos investimento e menos consumo, desaquecendo a economia e diminuindo a demanda por produtos e serviços, o que faz os preços caírem. A Selic, atualmente em 13,75% ao ano, se mantém em um patamar alto desde junho de 2022. E o Brasil tem um dos maiores juros reais do mundo, segundo levantamento do MoneYou com a Infinity Asset Management. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O entendimento do governo, segundo o próprio presidente, é que a atual taxa de juros definida pelo Banco Central está alta demais, freando demais o crescimento do país. Segundo essa visão, haveria "espaço de manobra" para diminuí-la - e aquecer a economia - sem perder a inflação de controle. "Eu digo todo o dia: não tem explicação para nenhum ser humano do planeta Terra a taxa de juro no Brasil estar a 13,75%. Não existe explicação", disse Lula durante visita a um complexo da Marinha no Rio de Janeiro. Além de aumentar o emprego, explica o economista Sergio Vale, da MB Associados, o crescimento amplia a arrecadação estatal e portanto a capacidade do governo cumprir as promessas de campanha - que no caso de Lula, incluíam a diminuição da desigualdade e aumento do investimento em saúde e educação. No entanto, na visão de Vale, o risco de diminuir os juros neste momento é a inflação se consolidar em um patamar elevado e exigir que a taxa seja ainda maior no longo prazo para "conter uma inflação desenfreada". "Inflação elevada corrói a renda e quem sofre mais é a população de baixa renda", diz ele. O Banco Central defende que a explicação para os juros altos mesmo em um cenário de desaceleração econômica é o histórico brasileiro de hiperinflação, de grande volatilidade dos preços e de alto endividamento público. A previsão do BC é que uma pequena variação nos juros poderia ter um efeito de estímulo muito grande levando a uma espiral inflacionária difícil de conter. Lula chegou a afirmar que, se a meta de inflação de 3% para o ano que vem está difícil de cumprir, é preciso mudar a meta - no que foi entendido como uma sinalização de que o governo acha aceitável trabalhar com uma inflação um pouco maior para ter um maior crescimento. A visão econômica do BC é que isso não é aceitável - algo com o que economistas que seguem uma cartilha econômica mais tradicional tendem a concordar. "Um cenário de 4% a 6% pode parecer aceitável, mas é um perigo, porque as expectativas de inflação sobem e todos começam a olhar para esse cenário e reajustar os preços agora", afirma Vale. "Por causa da indexação da economia, você gera uma espiral explosiva, é o que a gente chama de conteúdo inercial da inflação", explica a economista Alessandra Ribeiro, da consultoria Tendências, O governo tem argumentado que mesmo países como os EUA, que também aumentaram os juros para conter a inflação, não têm mantido uma taxa tão alta. Campos Neto afirmou que, devido ao nosso histórico, o Brasil precisa se comparar com outros países da América Latina e não com os EUA. Sergio Vale concorda com essa visão, que segue uma cartilha econômica mais tradicional, de que é preciso esperar para diminuir a taxa de juros. "Existe espaço para uma diminuição, mas não neste momento e não desta forma que o governo tem feito, com pressão em cima do Banco Central", diz ele. "Minha previsão é de que a taxa de juros caia no segundo semestre. Com a inflação cedendo e um esforço para irmos no caminho correto, pode chegar a 10% no final do ano que vem. Mas o governo precisa ter paciência", diz ele. Alessandra Ribeiro, da Tendências, diz que os juros de equilíbrio, ou seja, os juros para manter a inflação sob controle, precisa ser mais alto no Brasil por causa de uma série de questões estruturais. "O Brasil tem um alto nível de endividamento público, alto nível de risco, baixo nível de poupança e outros elementos estruturais que elevam os juros de equilíbrio", diz ela. "Precisamos ver as causas, ou seja, o que nos falta em comparação com outros países que têm juros menores, não ficar criticando o Banco Central." Analistas têm apontado que, além da disputa sobre questões econômicas, há fatores políticos envolvidos na atual insistência de Lula em falar sobre os juros. Uma pesquisa do Instituto Datafolha, feita entre 29 e 30 de março e divulgada no dia 3 de abril, apontou que 80% dos brasileiros afirmam que Lula está certo ao dizer abertamente que o Banco Central deve baixar a taxa básica de juros e que 71% acredita que a taxa está mais alta do que deveria ser. É uma opinião compartilhada mesmo por eleitores que votaram em Bolsonaro - 77% desses eleitores acham que os juros são maiores do que deveriam. Ou seja, é um assunto no qual Lula consegue obter apoio mesmo entre quem não é seu apoiador político - algo valioso em um cenário de polarização. Analistas também afirmam que ter uma disputa pública com o Banco Central - cujo presidente foi indicado por Bolsonaro - também é uma forma de evitar que a insatisfação do público com o cenário de desaceleração recaia sobre o governo que está começando. Sergio Vale lembra que as expectativas já eram de que 2023 fosse um ano de pouco crescimento da economia, independentemente do presidente que fosse eleito. "Um cenário de desaceleração - que a gente já sabia que ia acontecer independentemente de ser Lula ou Bolsonaro - não gera popularidade. Nesse sentido, a briga pública com o Banco Central pode ser uma forma de apontar um responsável e evitar que a culpa, aos olhos da população, caia sobre o atual governo", avalia. A demanda que vem com o crescimento da economia é um dos componentes da inflação, mas não é o único. Existem outros fatores que influenciam e também estão no cerne da disputa do governo com o Banco Central. A inflação também pode ser resultado de problemas na oferta, ou seja, crises ou dificuldades na produção de bens e oferta de serviços, explica a economista Alessandra Ribeiro, da consultoria Tendências. Um exemplo, diz ela, é quando uma quebra de safra, ou seja, um problema na produção, faz o preço dos alimentos subirem. "É o que a gente chama de choque exógeno, ou seja, de fora. O Banco Central não vai atuar nesse caso, ampliando os juros, porque não resolveria o problema", diz. "O BC vai agir caso essa inflação comece a contaminar outros preços, para conter um efeito secundário." A aposta do governo é que, com a economia em desaceleração, a atual inflação não é resultado de excesso de demanda, mas de problemas na oferta resultantes de questões internacionais como a guerra na Ucrânia - portanto abaixar os juros não levaria ao descontrole - e geraria investimentos, incentivando o setor produtivo e ampliando a oferta. No entanto, segundo Alessandra Ribeiro, o governo está equivocado na análise de onde vem a inflação no momento. A inflação atual até tem componentes de um choque de oferta, diz ela, mas também é de demanda, resultado inclusive de políticas tomadas pelos governos para aquecer a economia após a pandemia. "Não podemos afrouxar (a política monetária), precisamos garantir o controle da inflação com essa desaceleração. O cenário é desafiador, porque as metas para o ano que vem são de 3% e as projeções estão acima de 4%", defende. As projeções - ou seja, as expectativas do mercado sobre a inflação futura - também são um fator que influencia a inflação atual, explica Margarida Gutierrez, professora de economia da UFRJ. "A inflação atual é de tudo, demanda, oferta, de expectativas", diz. Isso porque o mercado ajusta preços com base nessa projeção e há diversos fatores econômicos que estão indexados por essa expectativa. Segundo ela, a disputa de Lula com Campos Neto sobre os juros, inclusive, afeta negativamente essa projeção porque aumenta as incertezas do mercado, que pode entender a disputa com uma interferência política. Vale concorda. "A expectativa de inflação estava ancorada em 3% até começar essa discussão. Depois disso, subiu um ponto e foi para 4%", diz. As expectativas também são afetadas pela confiança do mercado na capacidade do governo de manter a meta fiscal, ou seja, não gastar além do limite e ampliar a dívida pública. Para outros nomes que defendem a queda na Selic, como a deputada Tábata Amaral (PSB), o esforço feito pelo Ministério da Fazenda para apresentar o arcabouço fiscal ao Congresso seria um fator que permitiria a diminuição de juros sem perder controle da inflação, já que arcabouço fiscal seguraria gastos desenfreados dos governos (outro fator que causa inflação). Vale afirma, no entanto, que o arcabouço fiscal ainda tem muitas incertezas e ainda não garante a responsabilidade do governo com as contas. Ribeiro concorda. "Para baixar a Selic é preciso uma série de certezas que o arcabouço fiscal não foi capaz de fornecer. Então o governo precisa ter paciência e promover reformas para resolver os problemas estruturais que fazem com que os juros de equilíbrio precisem ser tão altos."
2023-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2lpqv39dy3o
brasil
Como a Amazon dominou vendas de livros no Brasil em apenas 9 anos
"Vocês falam da Shein como se eu conhecesse. Eu não conheço a Shein. O que eu sei é o seguinte: o único portal que eu conheço é o da Amazon, porque eu compro todo dia um livro, pelo menos", disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante viagem à China em abril. A afirmação foi feita a jornalistas em meio à polêmica sobre a taxação de varejistas virtuais asiáticas, acusadas por Haddad de praticar "concorrência desleal", ao burlar uma isenção de impostos para remessas internacionais de até US$ 50, destinada a pessoas físicas. A fala repercutiu mal num cenário onde a Shein já domina 27% do comércio eletrônico de roupas e calçados no Brasil e 5% de todo o varejo de vestuário, segundo cálculo do Itaú BBA — a varejista também anunciou em meados de abril a intenção de instalar fábrica própria no país. Mas a frase de Haddad foi considerada particularmente infeliz em um outro mercado brasileiro: o de livros. "Dói ouvir [a fala de Haddad citando a Amazon] quando você está dentro de uma livraria", diz Felipe Stefani Beirigo, um dos sócios da Livraria Simples, localizada no bairro paulistano do Bixiga. Fim do Matérias recomendadas "Ele pisou num vespeiro: todos os amigos que têm livrarias pequenas ou trabalham em uma ficaram extremamente magoados. Pega muito mal o ministro citar uma empresa dessas, quando eu tenho certeza de que ele sabe que a Amazon faz dumping e precariza o trabalhador." Dumping é a venda de produtos a preços abaixo do custo de produção, com objetivo de eliminar a concorrência e conquistar fatia maior de mercado. Proprietários de livrarias e editoras independentes acusam a Amazon da prática, num contexto em que a empresa — que começou a vender livros em papel no Brasil em agosto de 2014 —, dominou este mercado em apenas nove anos, graças a uma combinação de descontos agressivos e eficiência logística, que garante uma das entregas mais rápidas do mercado. Procurada, a Amazon refuta a alegação. "Nosso objetivo é sempre fomentar o mercado livreiro e entendemos que deve haver espaço e oportunidades para todos. Acreditamos que autores, editores e livreiros trabalham juntos para conectar os leitores aos livros. Todos dentro de um amplo cenário de estímulo ao segmento e boas práticas empresariais", diz a empresa, em nota. Entenda como a Amazon dominou a venda de livros no Brasil em nove anos e porque a hegemonia da empresa no mercado livreiro nacional divide opiniões. Fundada em 1994 em Seattle, nos Estados Unidos, a Amazon chegou ao Brasil em 2012, vendendo inicialmente apenas livros eletrônicos. Em 2014, a varejista passou a vender livros em papel, entrando em eletroeletrônicos em 2017 e instalando seu primeiro centro de distribuição no país em 2019. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Até agosto de 2022, a empresa já contava com 12 centros de distribuição, em 7 Estados, além de cinco estações de entrega. As vendas da empresa no país eram estimadas em R$ 3,8 bilhões em 2021 ou R$ 10 bilhões considerando também as vendas de terceiros em seu marketplace, segundo estimativas da SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo) e da consultoria Varese Retail. Embora a Amazon ainda seja muito menor do que as líderes do varejo eletrônico brasileiro – Mercado Livre (com R$ 68 bilhões em vendas), Americanas (R$ 42,2 bilhões, antes da crise atual), Magazine Luiza (R$ 39,8 bilhões) e Via (R$ 26,4 bilhões), segundo a SBVC –, ela tomou rapidamente a dianteira na venda online de livros, com um empurrão adicional proporcionado pela pandemia. Conforme estimativa da plataforma Statista, especializada em dados de mercado, ainda em 2019, a Amazon já concentrava metade das vendas online de livros e 80% das vendas de e-books no Brasil. A varejista não confirma os números, dizendo que "não abre dados específicos de mercado". Nos anos seguintes, o avanço da Amazon pode ser inferido pelo ganho de participação do canal "livrarias exclusivamente virtuais" nas vendas de livros no país, conforme pesquisa produzida pela Nielsen BookData para o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). A Nielsen não divulga dados separados por empresa, mas é neste segmento que estão varejistas online como Amazon e Submarino, por exemplo. Em 2019, o canal respondia por 12,7% das vendas de livros no Brasil, atrás de livrarias (41,6%) e distribuidoras (22,9%) — considerando dados de faturamento. Em 2021, as livrarias exclusivamente virtuais (29,9%) já empatavam com as livrarias tradicionais (30%) no faturamento das editoras, considerando todos os tipos de livros, incluindo técnicos e didáticos. Considerando apenas a categoria de obras gerais (que inclui os livros de literatura, biografias, entre outros), as livrarias exclusivamente virtuais já superam as tradicionais, representando 47,6% do faturamento das editoras brasileiras neste segmento em 2021, ante 13,7% em 2019, antes da pandemia. Neste mesmo intervalo, entre 2019 e 2021, a fatia das livrarias tradicionais na venda de obras gerais encolheu de 57,9% para 29,3%. Assim, em pouco menos de nove anos, em meio à pandemia e à derrocada de redes como Livraria Cultura, Saraiva e Americanas (dona do Submarino), a Amazon se tornou hegemônica no mercado brasileiro de livros, desbancando a concorrência com descontos inigualáveis. "A Amazon é um reflexo do tempo em que vivemos", diz Beirigo, da Livraria Simples. "Do 'eu quero agora, quero rápido e quero pagar muito pouco por isso'", afirma. Para o livreiro, os descontos oferecidos pela Amazon "deseducam" os leitores quanto ao preço real dos livros. "Um livro sai da editora a R$ 100, a livraria revende por esse preço sugerido. Mas se a Amazon vende por R$ 30, o consumidor acha que o livro vale isso", exemplifica. "É uma concorrência extremamente desleal, já que a Amazon é uma gigante, com vários centros de distribuição espalhados pelo país, versus livrarias pequenas, que têm estruturas de operação e logística minúsculas." Embora o impacto maior da Amazon seja sobre as livrarias, a varejista afeta a cadeia de livros como um todo, afirma Tadeu Breda, dono da editora Elefante — que publicou em 2020 o livro Contra Amazon e Outros Ensaios sobre a Humanidade dos Livros, do escritor espanhol Jorge Carrión. "É uma incógnita como funciona o algoritmo da Amazon, como eles calculam os descontos oferecidos", diz Breda. "Às vezes ela vende a preços que eu mesmo que produzi os livros não conseguiria vender. Não é sustentável." Ao passar a representar mais de 50% das vendas para muitas editoras, a Amazon usa seu poder de barganha para obter descontos cada vez maiores, observa o editor. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2021, quando a varejista encaminhou carta a seus fornecedores pedindo de 55% a 58% de desconto, mais 5% de "verba de marketing", gerando forte reação das editoras. Breda observa que o preço de capa em geral é calculado de forma que a editora fique com 50% do valor do livro. Com essa fatia, a empresa arca com custos como aluguel, funcionários, direitos autorais, custos de impressão e tradução, no caso de obras estrangeiras. Assim, a pressão por descontos tem um efeito perverso, diz o editor. "Ela vai sufocando as editoras, com descontos cada vez maiores. Para compensar financeiramente esse desconto maior dado à Amazon, o preço de capa do livro padrão tem que subir necessariamente, sobretudo nas outras livrarias. É um efeito totalmente perverso, porque ela [a Amazon] vai ficando cada vez mais competitiva e os competidores, cada vez menos." Breda avalia que a Amazon dá descontos tão elevados porque vender livros não é seu negócio principal. Segundo o editor, a varejista usa a venda de livros como uma estratégia para obter cadastros de clientes com alto potencial de consumo. "O que eles fazem é atrair compradores com preços obscenos, desbancar a concorrência e usar os dados dos clientes para, com seus robôs e algoritmos de última geração, continuar bombardeando e vendendo de tudo — inclusive mais livros —, até que um dia não haja mais concorrência e eles possam aumentar os preços tranquilamente, potencializando seus lucros", escreveu Breda, em texto intitulado Amazon destrói, publicado no site da editora Elefante. Questionada sobre as críticas de livreiros e editores, a Amazon afirmou em nota: "Acreditamos que a leitura é essencial para uma sociedade saudável e nossa missão é inspirar os leitores, tornando mais fácil ler. Dentro do mercado livreiro, enxergamos que existem duas partes importantes: leitores e autores. O resto de nós é apenas uma forma de conectar esses dois lados. Qualquer pessoa ou empresa que promova a leitura beneficia todo o ecossistema." Tomaz Adour, fundador da editora Vermelho Marinho e presidente da Libre (Liga Brasileira de Editoras), organização que reúne 170 editoras independentes, afirma que o impacto da Amazon para o mercado livreiro brasileiro é uma questão complexa, com muitas nuances. "A Amazon é a maior player mundial de livros. Nas editoras da Libre, em muitas, ela representa mais de 50% [das vendas]", diz Adour. "Isso aconteceu porque, durante a pandemia e com a quebra da Saraiva e da Cultura, a Amazon dominou o mercado. E como ela é uma empresa muito capitalizada, ela adiantou dinheiro para muitos editores que estavam apertadíssimos." Outro diferencial da Amazon, segundo o presidente da Libre, é que ela compra os livros, não faz consignação — modelo de negócio em que a editora deixa os livros para serem vendidos pelas livrarias, mas só recebe pelos produtos depois que eles são efetivamente comprados pelos clientes. "A Amazon paga. Ela paga em dia, paga direitinho e às vezes paga à vista", reconhece Breda, da editora Elefante. "Então ela cresce também devido ao amadorismo de muitas livrarias, as editoras estão cansadas de tomar calote ou de mandar livros em consignação e recebê-los de volta danificados e inutilizados", relata o editor. Carlo Carrenho, consultor editorial e fundador do site especializado PublishNews, avalia que a entrada da Amazon dinamizou o mercado livreiro brasileiro. "Ela força um mercado que é extremamente tradicional e acomodado a melhorar. É inegável que a logística de entrega de livros no Brasil melhorou com a entrada da Amazon", afirma. "É inegável também que ficou mais fácil para o consumidor comprar um livro online, então ela traz várias vantagens. O problema é que a Amazon é tão boa que ela tende ao monopólio, o que é uma consequência do capitalismo. E qualquer monopólio é ruim, porque de posse de todo esse poder, ela pode exigir coisas que prejudiquem a cadeia do livro", diz Carrenho. "Então eu brinco que o problema da Amazon é que só existe uma." Desde a entrada da Amazon na venda de livros em papel no Brasil, o setor reivindica uma Lei do Preço Fixo que limitaria a 10% os descontos sobre livros no primeiro ano a partir do lançamento. Segundo os defensores da proposta, ela tornaria mais justa a competição entre livrarias e varejo digital. De acordo com a Libre, o modelo é adotado em países como França, Alemanha, Argentina, Coreia do Sul, Dinamarca, Espanha, Grécia, Itália, Japão, México, Holanda e Portugal. Dante José Alexandre Cid, presidente do Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), entidade que representa as grandes editoras, tem defendido a proposta, argumentando que ela pode deixar o livro mais barato no país. "Quando você sabe que o seu produto será vendido com descontos de até 40%, 50%, é natural aumentar o preço final para compensar os custos da cadeia produtiva. Se não houver mais descontos de 50%, ninguém vai precificar acima da capacidade de pagamento das pessoas", disse Cid, em entrevista ao jornal O Globo. "Todo mundo já entendeu que é melhor que o livro seja acessível a todos do que cobrar caro e vender pouco. Com a Lei do Preço Fixo, o livro pode ficar mais barato, não mais caro. Ninguém quer que ele seja um produto elitizado." Carlo Carrenho discorda e avalia que a lei penalizaria o leitor mais pobre. "É claro que o preço fixo ajuda as livrarias independentes, mas ele tem efeitos colaterais graves, que não justificam as vantagens que traz", argumenta. Segundo o consultor editorial, o principal efeito colateral é que os grandes best sellers, que são os livros mais populares, vão perder desconto, enquanto os livros de menores tiragens serão pouco afetados. "De certa forma, você estará fazendo a classe baixa brasileira subsidiar a classe média", afirma. Carrenho argumenta ainda que o preço fixo não resolve o problema do monopólio da Amazon. "Ela tem capacidade de marketing, algoritmos e um serviço melhor, então não é o preço fixo que vai resolver o problema. A Amazon consegue nadar de braçada em mercados que têm preço fixo, como Alemanha e França, por exemplo", cita. Questionada pela BBC News Brasil sobre a possibilidade de uma Lei do Preço Fixo no Brasil, a Amazon respondeu que "não especula sobre o futuro". "A Amazon Brasil seguirá sempre em conformidade com as leis brasileiras, em busca de trazer a melhor experiência para seus consumidores", disse a empresa. O preço do livro é a questão central na disputa entre Amazon e o mercado livreiro brasileiro. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Ibope Inteligência para o Instituto Pró-Livro e o Itaú Cultural, também é um dos fatores com mais influência na escolha de um livro para compra, citado por 22% dos leitores. Para Tadeu Breda, da Elefante, um dos principais fatores para o atual preço elevado do livro no Brasil é o custo do papel utilizado para impressão. "No Brasil, o preço do papel flutua muito com a cotação do dólar. Então a gente precisaria ter controles. Estabelecer, por exemplos, usos estratégicos para que o papel produzido no país não ficasse à mercê de flutuações internacionais", defende o editor. Para Breda, o custo de envio de livros pelos Correios é outro fator que pesa para as pequenas editoras. Seria desejável, segundo ele, uma política de barateamento para a postagem do produto. "Precisamos de incentivos, de linhas de crédito, editais de fomento. São necessários programas permanentes que fomentem o trabalho editorial e o acesso ao livro. Assim podemos começar a ter um país de leitores de massa, o que hoje em dia estamos muito longe de ter", afirma o editor. Tomaz Adour, da Libre, também defende a necessidade da retomada das políticas de incentivo ao livro e à leitura. Ele cita como exemplo a compra pública de livros para bibliotecas escolares, para fazer cumprir a Lei 12.244/2010 (Lei da Universalização das Bibliotecas Escolares), que determinou que todas as instituições de ensino do país — públicas e privadas — tenham bibliotecas com acervo mínimo de um título para cada aluno matriculado. Carlo Carrenho cita as pequenas tiragens como um outro ponto que pesa nos preços dos livros no Brasil. "Quantos menos pessoas leem um livro, os custos fixos ficam menos diluídos. Como temos produções muito baixas, esse é outro motivo que deixa os livros caros", diz o consultor. Para Carrenho, o Estado deve atuar para combater monopólios de todos os tipos, mas uma solução para fortalecer as pequenas livrarias e editoras pode vir da iniciativa privada, não do governo. Ele cita como exemplo o site americano Bookshop.org, que se fortaleceu durante a pandemia como uma alternativa à Amazon. O site oferece recursos de vendas online para livrarias independentes, distribui parte dos lucros diretamente aos lojistas e já reúne cerca de 2.200 livreiros nos EUA e Reino Unido, segundo reportagem recente da revista Wired.
2023-05-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwprveg0wo
brasil
'Não vamos dizer ao Brasil com quem se associar', diz embaixadora dos EUA na ONU sobre reaproximação com China
A embaixadora dos Estados Unidos na Organização das Nações Unidas (ONU), Linda Thomas-Greenfield, fará a primeira visita de uma autoridade americana de nível ministerial a Brasília após o mal-estar provocado nas relações entre EUA e Brasil por declarações feitas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na China. Na ocasião, Lula disse que os EUA deveriam “parar de incentivar a Guerra na Ucrânia”, questionou “quem decidiu que era o dólar a moeda (para transações internacionais) depois que desapareceu o ouro como padrão?”, e depois de visitar a gigante de telecomunicações chinesa Huawei, empresa sob sanção dos EUA, disse que o gesto era “demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China". O pacote de declarações foi visto como um duro ataque aos americanos, que tinham recebido Lula para encontro bilateral na Casa Branca em fevereiro. Thomas-Greenfield desembarca no país na manhã desta terça, 2/5, com uma série de recados na bagagem. “Não vamos dizer ao Brasil com quem se associar para suas prioridades econômicas”, afirmou Thomas-Greenfield em entrevista exclusiva à BBC News Brasil por vídeo, nesta segunda, 1/5. Ao retornar de Pequim, Lula afirmou que os acordos comerciais firmados na China atingiam a cifra de R$ 50 bilhões. Fim do Matérias recomendadas Em comparação, ao voltar de Washington, Lula trouxe apenas um compromisso de US$ 50 milhões para o Fundo Amazônia, recurso considerado exíguo pela gestão brasileira. Há duas semanas, o governo de Joe Biden anunciou que o aporte ao Fundo Amazônia deverá chegar a US$ 500 milhões em 5 anos, mas a doação ainda depende de aprovação do Congresso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Confrontada com a aparente dificuldade dos EUA de mandarem dinheiro à América Latina, enquanto cresce na região a presença chinesa, Thomas-Greenfield afirmou que os americanos não fazem “anúncios frívolos” ao Brasil, e que seus investimentos no país já geraram 700 mil empregos. Disse ainda que Biden trabalhará com o Congresso para cumprir a promessa que fez para a Amazônia. Já sobre a Guerra da Ucrânia, o tom da diplomata foi mais duro. Ela admitiu que os EUA ficaram “desapontados” com as declarações de Lula de que os EUA promoviam o conflito, de que a Ucrânia também é responsável pela guerra e de que o país teria eventualmente que ceder a Crimeia para a Rússia para terminar a guerra. Embora o Brasil tenha repetidas vezes condenado na ONU a invasão russa e a anexação de territórios ucranianos, as falas de Lula, seguidas da visita a Brasília do chanceler russo Sergey Lavrov, recebido por uma hora e meia pelo presidente brasileiro, levaram o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, a dizer que o Brasil “papagueava” propaganda russa e chinesa no assunto. Questionada se os americanos perderam a confiança no governo brasileiro sobre o assunto, Thomas-Greenfield afirma que “se o Brasil leva a sério a busca pela paz, precisa se envolver com a Ucrânia”. A afirmação da diplomata é uma crítica ao fato de que, embora Lula tenha recebido Lavrov, e seu assessor internacional Celso Amorim tenha visitado o líder russo Vladimir Putin em Moscou, o contato com a Ucrânia se limitou a uma vídeochamada de Lula com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Há dez dias, enquanto visitava Portugal e colhia a repercussão negativa de suas falas entre europeus, Lula decidiu que Amorim irá também visitar a Ucrânia e se encontrará com Zelensky, em data ainda não definida. Perguntada se via no Brasil condições de mediar o conflito, Thomas-Greenfield desconversou: “Vários países apresentaram propostas de paz e saudamos qualquer esforço”. A embaixadora americana terá encontros com o chanceler brasileiro Mauro Vieira e o assessor da presidência em relações exteriores Celso Amorim. Thomas-Greenfield também tinha a expectativa de se encontrar com Lula, o que não havia sido confirmado até o fim da tarde desta segunda (1/5). Em Brasília, Thomas-Greenfield ainda deve tratar das crises na Nicarágua, Venezuela e Colômbia, da possibilidade de que o Brasil componha uma força multinacional ao Haiti (que os EUA incentivam e os brasileiros resistem) e do avanço no acordo bilateral entre Brasil e EUA para combate ao racismo, o Japer, que levará a diplomata também a Salvador. Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Thomas-Greenfield à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza: BBC News Brasil - O Brasil já votou contra a anexação territorial de partes da Ucrânia pela Rússia na ONU, mas em recente visita à China, o presidente Lula disse que os EUA deveriam “parar de incentivar a guerra”, acusou mais uma vez os ucranianos de também serem responsáveis pelo conflito e dias depois recebeu o chanceler russo Sergey Lavrov, que disse ao lado do chanceler brasileiro que Brasil e Rússia compartilham perspectivas sobre a guerra. Em resposta, John Kirby acusou Lula de papaguear a propaganda russa e chinesa sobre o assunto. Os EUA perderam a confiança no Brasil no tema? Linda Thomas-Greenfield - Somos um parceiro de longa data do Brasil e nos envolvemos com o Brasil em um grande número de questões. E como você notou, o Brasil votou para condenar o ataque da Rússia à Ucrânia, a anexação do território ucraniano pela Rússia, e, recentemente, votaram que quaisquer decisões relacionadas a isso devem estar estar embasadas na carta de princípios da ONU. Portanto, esperamos que o Brasil continue a apoiar esses esforços. E direi que ficamos desapontados com os comentários e as declarações que foram feitas durante a viagem (de Lula à China). Mas acho que, à medida que continuamos nossas discussões com o Brasil, incentivamos que eles também se envolvam com a Ucrânia. O presidente Biden deixou claro que nada sobre a Ucrânia (deve ser decidido) sem a Ucrânia. Então, se o Brasil leva a sério a busca pela paz, precisa se envolver com a Ucrânia, além de apoiar a resolução da ONU que não reconhece a anexação do território ucraniano pela Rússia. Espero ter mais discussões in loco com autoridades brasileiras enquanto eu estiver lá para falar sobre a Ucrânia, mas há outras questões que também discutiremos, como a situação na Venezuela, a situação no Haiti, a Colômbia. E olharemos para as áreas onde temos valores fortes e duradouros. Somos as duas maiores democracias deste continente, nós temos isso em comum, e acho que essa semelhança definirá como nosso relacionamento avançará. BBC News Brasil - Considerando as declarações recentes, os EUA veem o Brasil em posição para mediar o fim da guerra da Ucrânia? Thomas-Greenfield - Vários países apresentaram propostas de paz e saudamos qualquer esforço para encontrar uma solução pacífica para esta situação desde que embasada na carta da ONU, que reconheça a integridade territorial da Ucrânia e que traga paz ao povo da Ucrânia. BBC News Brasil - Na semana passada, a BBC Brasil revelou que os EUA pediram a extradição de um homem acusado de ser espião ilegal russo e de ter atuado nos EUA sob identidade brasileira. É o terceiro caso do tipo em poucos meses. Os EUA temem que o Brasil tenha se convertido em um berçário de espiões russos? Thomas-Greenfield - O governo brasileiro indiciou esta pessoa pelos atos que ela cometeu (no Brasil) e ela foi também acusada nos Estados Unidos. Não posso comentar mais sobre isso. Mas, para responder à sua pergunta, esperamos continuar a cooperar com o Brasil nesta questão. BBC News Brasil - Há duas semanas, pouco depois da visita de Lula à China, os EUA anunciaram uma promessa de US$ 500 milhões para o fundo Amazônia. Mas a chance de o recurso ser aprovado no Congresso é baixa. Como o governo Biden pretende viabilizar essa doação? Thomas-Greenfield - O presidente assumiu o compromisso (para o Fundo Amazônia) e também se comprometeu a quadruplicar nosso financiamento climático internacional, para US$ 11 bilhões. E ele trabalhará com membros do Congresso para honrar esse compromisso. BBC News Brasil - Biden também trabalhou para levar Lula ao encontro do G7 em Hiroshima. Deve haver algum outro anúncio durante o evento no Japão? Thomas-Greenfield - Já fizemos uma promessa de 500 milhões e estamos empenhados em apoiar os compromissos climáticos do Brasil, comprometidos em honrar nossas próprias metas climáticas e apoiar todos os esforços para lidar com o que o secretário-geral (da ONU, António Guterres) chamou de ameaça existencial ao nosso futuro. Portanto, continuaremos a trabalhar nesse esforço. Não posso dar uma prévia de quais anúncios podemos fazer lá (em Hiroshima), mas nossos anúncios anteriores mostram como nossos compromissos são fortes. BBC News Brasil - Eu lhe pergunto isso porque enquanto os EUA parecem estar tendo certa dificuldade para enviar dinheiro para a América Latina, vemos a China cada vez mais aumentando sua presença na região. Na última visita de Lula a Pequim, China e Brasil concordaram em começar a fazer negócios sem o dólar, usando o RMB (yuan). O governo Biden está preocupado com isso? Thomas-Greenfield - Nossa parceria é nossa maior preocupação, e nossa parceria é forte. Temos grandes investimentos no Brasil. E nossos investimentos mostram resultados concretos para o povo brasileiro, já geraram mais de 700 mil empregos no Brasil. Eles não são apenas anúncios frívolos, mas são anúncios concretos que impactam a vida das pessoas. Não vamos dizer ao Brasil com quem deve se associar para suas prioridades econômicas. Mas o que vamos falar é do nosso compromisso, das nossas relações, dos nossos investimentos neste país, que foram extraordinariamente fortes e tiveram um impacto incrível na vida das pessoas comuns. BBC News Brasil - O Brasil é atualmente membro temporário do Conselho de Segurança da ONU e tem uma antiga demanda por um assento permanente no colegiado. Os EUA apoiarão oficialmente a inclusão do Brasil no Conselho? Como isso seria feito? Thomas-Greenfield - O presidente Biden já disse que apoiamos a expansão do Conselho de Segurança para membros permanentes e não permanentes. Não cabe aos EUA selecionar esses membros. O que estamos fazendo é ter uma discussão muito aberta e ampla em todas as regiões do mundo para falar sobre como podemos avançar de maneira concreta para alcançar a reforma do Conselho de Segurança. Portanto, apoiamos a (aspiração da) América Latina, apoiamos a África para (contar com) novos membros no Conselho de Segurança, mas faremos parte do que será um processo democrático para selecionar quaisquer novos membros. E o que compreendemos ao fazer esta escuta ao longo dos últimos meses é que temos que ser flexíveis para chegar a um processo crível, que seja aceito por todos os que manifestaram o desejo de se tornar um membro permanente. BBC News Brasil - Ainda no ano passado, os EUA demonstraram interesse de que o Brasil mandasse novamente uma força militar ao Haiti, que vive uma situação de colapso do Estado e de violência generalizada. Isso é algo que os EUA ainda gostariam que acontecesse? Por que? Thomas-Greenfield - Temos no Conselho de Segurança trabalhado para apoiar uma força multinacional, que não seja da ONU, para ir ao terreno e apoiar a situação de segurança no Haiti. E damos as boas-vindas à participação de qualquer país nesse processo. Estamos todos muito preocupados com a situação, especialmente porque as gangues continuam a aterrorizar os cidadãos comuns, bloqueando a assistência humanitária, obrigando os hospitais a fechar. Então a situação de segurança é muito preocupante, é muito ameaçadora. E gostaríamos da participação ativa do Brasil nessa força multinacional. Esta será, obviamente, uma das questões que discutirei quando estiver em Brasília. Todos nós queremos que isso (envio da força multinacional) aconteça o mais rapidamente possível. O Conselho de Segurança ainda está discutindo como isso vai avançar e que tipo de resolução precisaremos para poder colocar isso em prática. Mas estamos trabalhando em um cronograma muito, muito rápido. BBC News Brasil - Pensando em América Latina, a senhora citou a situação da Venezuela, por exemplo. Que papel os EUA esperam que o governo Lula tenha em crises como Venezuela e Nicarágua? Thomas-Greenfield - O Brasil é um líder na região e a voz do seu presidente, a liderança do país, é fundamental para trabalhar com os países da região para encontrar soluções. Vou estar no modo de escuta quando estiver em Brasília. Quero ouvir das autoridades brasileiras o que pensam sobre como devemos lidar com a situação na Venezuela daqui para frente. Quero ouvir como devemos olhar para a situação na Colômbia e na Nicarágua. A voz do Brasil é importante para nos ajudar a encontrar soluções para todas essas situações. E eu quero agradecer ao Brasil por ser um anfitrião tão hospitaleiro para tantos refugiados e migrantes. Há mais de 250 mil venezuelanos lá, há afegãos lá. Tem gente de toda parte do mundo que foi bem recebida pelo povo brasileiro, e isso realmente merece ser elogiado. BBC News Brasil - A senhora irá a Salvador para reativar o único acordo bilateral de combate ao racismo que os EUA possuem (assinado nos anos 2000 mas nunca posto em prática). Como esse acordo deve funcionar e que semelhanças vê entre o racismo no Brasil e nos EUA? Thomas-Greenfield - Esta é uma verdadeira parceria e estou muito orgulhosa de ser a primeira autoridade americana com nível ministerial a ir a Salvador em 15 anos. É um sinal que realmente ressalta os compromissos de nossos países com a equidade racial e a inclusão. E acho que o governo Lula fez disso uma prioridade fundamental, assim como o presidente Biden. E eles falaram sobre isso durante a visita (em Washington, em fevereiro). Revitalizaremos o acordo realmente procurando maneiras de promover a equidade e a justiça racial e proteger as comunidades raciais e indígenas marginalizadas no Brasil e nos Estados Unidos. Temos muitas coisas em comum: o fato de os EUA e o Brasil terem as maiores populações afro fora da África é definitivamente algo que merece a atenção de nossos dois presidentes.
2023-05-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn4e5pqjm57o
brasil
Salário mínimo de R$ 1.320: quanto piso aumentou em cada governo?
O novo salário mínimo de R$ 1.320 começou a valer nesta segunda-feira (01/05), representando uma alta de 1,4% ou R$ 18 em relação ao valor de R$ 1.302 que vigorava desde 1º de janeiro. O reajuste acima da inflação havia sido uma das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que com isso retoma a valorização do piso salarial, uma das marcas dos seus dois primeiros mandatos. Mas quanto o salário mínimo se valorizou em cada governo, desde o fim da hiperinflação com a aprovação do Plano Real? E qual o impacto do reajuste desse ano e do esperado para 2024 para as contas do governo? Perguntamos aos economistas Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), e Vilma Pinto, diretora da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal. Fim do Matérias recomendadas Quando Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assumiu a Presidência em 1995, o salário mínimo valia R$ 70 e chegaria a R$ 240 no fim do seu segundo mandato, em 2002. Sob Lula, foi de R$ 240 a R$ 545 em oito anos, entre 2003 e 2010. Sob Dilma Rousseff (PT), passou de R$ 622 a R$ 880, nos seus pouco mais de cinco anos de mandato, interrompidos pelo impeachment. Michel Temer (MDB) assumiu o governo com o mínimo a R$ 880 e entregou a R$ 954. Enquanto sob Jair Bolsonaro (PL), o valor foi de R$ 998 a R$ 1.212. Agora, sob o terceiro mandato de Lula, o mínimo começou janeiro em R$ 1.302 e passou a R$ 1.320 em maio. Mas, para avaliar quanto o mínimo se valorizou em cada governo, não basta olhar para os valores nominais. É preciso descontar a inflação de cada período. Para fazer esse cálculo, Daniel Duque, da FGV, deflacionou os valores do salário mínimo pelo IPCA, índice oficial de inflação do país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E o que os dados mostram é que o mínimo se valorizou 30,5% no primeiro mandato de FHC e 7,3% no segundo, totalizando uma valorização real de 40% nos oito anos do tucano. Lula registrou a maior valorização entre os presidentes que governaram o país após a hiperinflação. No seu primeiro mandato, a valorização do mínimo foi de 38,3% e no segundo, de 17,4%, totalizando 62,4% de ganhos acima da inflação em oito anos. No governo Dilma, com o crescimento do país perdendo fôlego, os ganhos reais do salário mínimo também perderam força: foram de 12,4% no primeiro mandato da petista e 5,5% no segundo, somando 18,5% em seus pouco mais de cinco anos na presidência, até o impeachment. Sob Temer e Bolsonaro, o país abandonou a política de valorização real do mínimo, passando a reajustar o salário base apenas pela inflação. Com isso o piso estagnou, registrando variação negativa de 0,2% nos pouco mais de dois anos de gestão do emedebista e desvalorização real de 1,2% durante os quatro anos de Bolsonaro. Agora, com os dois reajustes já anunciados por Lula em 2023, o mínimo voltou a ter ganho real: de 6,1% até maio, considerando a inflação projetada para o mês atual no boletim Focus. Uma outra forma de avaliar o que aconteceu com o salário mínimo em cada governo é ver o poder de compra do piso em relação à cesta básica. Utilizando o valor da cesta básica de São Paulo calculado pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Duque encontra que o poder de compra do salário mínimo cresceu 57,4% nos dois mandatos de FHC; 52,7% sob os oito anos de Lula; apenas 3,4% nos governos Dilma; 1,7% sob Temer; despencando 24,3% durante os quatro anos de governo Bolsonaro, em meio à forte alta do preço dos alimentos no período. Com os reajustes anunciados por Lula, e diante do valor esperado para a cesta básica em abril e maio, o poder de compra do mínimo em relação à cesta básica volta a crescer este ano, em 10,4%. Ainda assim, o salário mínimo de R$ 1.320 só compra atualmente cerca de 1,6 cesta básica, ainda abaixo das 2,2 cestas que eram possíveis comprar com o mínimo em agosto de 2018, ponto mais alto do poder de compra do piso em relação à cesta básica, registrado durante o governo Temer. "A política de valorização do salário mínimo sempre teve basicamente dois vetores, que são muito entrelaçados: a situação econômica e a situação fiscal do país", observa Duque. O economista lembra que, no primeiro mandato de FHC, houve uma combinação de bom crescimento econômico, com inflação sob controle. O salário mínimo também estava muito subvalorizado, após 20 anos de inflação alta e reajustes não proporcionais. "Havia bastante espaço para fazer o reajuste, e o real supervalorizado contribuiu para uma menor inflação de alimentos, o que também aumentou o poder de compra do salário", afirma. Já no segundo governo FHC, o cenário se complica, com crescimento menor e piora da situação das contas públicas. Em 1999, é implantado o chamado Tripé Macroeconômico – conjunto de medidas que combinava câmbio flutuante, metas de inflação e metas fiscais. "O maior controle fiscal pressionou para não haver tanto reajustes do mínimo [já que o salário base serve de referência para gastos públicos como aposentadorias, benefícios sociais e salários do funcionalismo]. Não houve perda real, mas também não houve grande valorização no período", diz Duque. Num cenário de retomada do crescimento econômico, Lula realiza em seu primeiro mandato a maior valorização do mínimo do período pós-Plano Real. Em 2007, essa política de valorização é consolidada em uma regra, que previa a correção anual do mínimo pela variação da inflação do ano anterior, mais o crescimento do PIB de dois anos antes. Essa regra viraria lei em 2011. Mesmo assim, no segundo mandato de Lula, a valorização perde um pouco de força. "O governo Dilma mantém a mesma política de valorização, mas num cenário de crescimento menor, que resulta em reajustes do mínimo mais baixos", observa Duque. Sob Temer e Bolsonaro, num cenário de restrições fiscais, a política de valorização do mínimo é abandonada e os reajustes passam a ser feitos apenas pela inflação. Soma-se a isso, no governo Bolsonaro, uma forte alta da inflação de alimentos – impactados pela pandemia, quebras de safra por questões climáticas e a guerra da Ucrânia – que prejudicou ainda mais o poder de compra do salário mínimo em relação à cesta básica. Com a volta da valorização, Duque destaca a importância do salário básico. "O salário mínimo foi bastante responsável por reduzir a desigualdade de renda no país entre 1995 a 2015", observa o economista. "Houve efeito importante também no combate à pobreza, devido principalmente aos benefícios atrelados a esse valor." Segundo o Dieese, o Brasil tem 60,3 milhões de pessoas com rendimento referenciado no salário mínimo, sendo 24,8 milhões de beneficiários do INSS e 18,4 milhões de empregados, entre outros grupos. O mínimo também impacta trabalhadores sem carteira e por conta própria, já que serve de referência para toda a economia. Apesar desses efeitos positivos, a valorização do mínimo tem um custo. Segundo cálculo do governo, cada R$ 1 de aumento do salário mínimo impacta em R$ 368,5 milhões por ano as contas públicas. Assim, a alta de R$ 18 que passa a valer agora em maio deve gerar um impacto de R$ 4,5 bilhões nas contas do governo entre maio e dezembro deste ano. Para 2024, o governo enviou o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) com uma previsão de salário mínimo de R$ 1.389, que considerava apenas o reajuste pela inflação. Mas, segundo o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, o governo deve apresentar um projeto de lei ao Congresso retomando a política de valorização real que vigorou nos governos petistas anteriores. Caso a regra seja retomada, o mínimo iria a R$ 1.429 em 2024, gerando um custo de R$ 14,7 bilhões adicionais para as contas do governo no próximo ano. Além disso, o governo somente até maio já aumentou o valor do Bolsa Família, reajustou os salários do funcionalismo público em 9% e anunciou o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda para R$ 2.640. Diante de tudo isso, os analistas veem com descrença a promessa do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de zerar o déficit primário já em 2024. O resultado primário é a diferença entre receitas e despesas do governo e o déficit acontece quando esse resultado está no negativo. "A meta de zerar o déficit no próximo ano não é compatível com a estrutura atual de receitas e despesas do governo", considera Vilma Pinto, diretora da IFI. Assim, o governo vai ter que cortar gastos ou aumentar a arrecadação para reequilibrar as contas públicas. "O governo tem sinalizado que isso deve acontecer pelo lado das receitas [isto é, com maior arrecadação], mas a grande questão é que não pode ser uma receita não recorrente, tem que ser algo que gere efeito de médio prazo, para que haja impacto na sustentabilidade das contas públicas", explica a economista. "Como nossa dívida já está em nível elevado, se não conseguirmos gerar resultado que faça ela ficar estável, isso mexe na expectativa dos agentes e aumenta o risco fiscal. Isso tem consequências para a atividade econômica, com efeitos na inflação e na taxa de desemprego." Ou seja, se o desequilíbrio das contas públicas continuar, o benefício do reajuste do salário mínimo acima da inflação poderá ser corroído por uma aceleração dos preços e por menor geração de empregos.
2023-05-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gn96zyy6qo
brasil
Primeiro de Maio: como o Dia do Trabalhador foi 'apropriado' por Getúlio Vargas
Foi por causa de uma greve de trabalhadores ocorrida em 1886, em Chicago, nos Estados Unidos, reivindicando jornada de 8 horas por dia, que o dia Primeiro de Maio entrou para a História como Dia Internacional dos Trabalhadores. Ou Dia do Trabalhador, Dia do Trabalho ou Festa do Trabalho — as denominações variam de parte a parte do planeta e carregam pequenas diferenças semânticas. No Brasil, embora haja registros de manifestações operárias já no fim do século 19, a data foi oficializada em 1924 — durante a gestão do presidente Artur Bernardes (1875-1955) — mas, como atestam historiadores contemporâneos, acabou sendo cooptada pela máquina estatal alguns anos mais tarde, na gestão Getúlio Vargas (1882-1954). Trocando em miúdos, sem alterar o decreto original, Vargas mudou o protagonismo da data: deixou de ser o Dia do Trabalhador para se tornar o Dia do Trabalho. "No projeto getulista, a manifestação que era dos trabalhadores, revolucionários, para exigir direitos, se transformou em uma festa do trabalho, na qual se homenageia não exatamente o trabalhador mas sim a categoria básica do mundo capitalista e do estado autoritário de Vargas: o trabalho", diz à BBC News Brasil o historiador, sociólogo e antropólogo Claudio Bertolli Filho, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor de, entre outros livros, A República Velha e a Revolução de 30. Fim do Matérias recomendadas "Aí passamos a ver celebrações com a bandeira nacional, não mais a bandeira internacional comunista, não mais a bandeira do anarquismo. O papel que Vargas exerceu dentro da sua perspectiva populista foi instaurar o Primeiro de Maio como uma forma de domínio dos trabalhadores, sutilmente, subvertendo a ordem. O trabalhador, antes livre, a partir de então passava a ser um trabalhador normatizado, legislado pelo Estado. Que, com isso, dominava o trabalho." Argumentos para isso não faltavam ao governo federal. Foi no governo Vargas, afinal, e em um Primeiro de Maio, que foi criada e sancionada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. Unificando e atualizando toda a legislação trabalhista então existente no Brasil, o decreto de 922 artigos passou a abranger direitos de boa parte dos trabalhadores, com determinações sobre duração da jornada, férias, segurança do trabalho, previdência social e férias — além da fixação do salário mínimo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os primeiros registros de celebração aos trabalhadores no Brasil não ocorreram em um Primeiro de Maio, mas sim em um 14 de julho. A explicação está na memória da Revolução Francesa. Em artigo publicado pela Revista Brasileira de História, em 2011, a historiadora Isabel Bilhão, atualmente professora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), escreveu que "no caso nacional, as primeiras comemorações da data, realizadas na cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1891, por iniciativa de militantes socialistas, mantinham essa postura e, não raras vezes, tornavam-se também atos patrióticos, em apoio à jovem República [proclamada dois anos antes]." "Resumidamente", explicou ela, "poderíamos dizer que, numa primeira fase, situada entre a última década do século 19 e os anos iniciais do século 20, a exemplo da versão social-democrata internacional, as manifestações mesclavam caráter festivo e de protestos, apresentando o dia como o grande feriado da confraternização universal, instituído em 14 de julho de 1889, quando se comemorava o centenário da tomada da Bastilha." Mas o Primeiro de Maio também ecoava. Depois da fama alcançada pelos operários de Chicago, manifestações na data passaram a se espalhar pelo mundo. No Brasil, há indícios de protestos pontuais realizados ainda no fim do século 19. "Tem-se o registro de que a primeira celebração do tipo ocorreu em Santos em 1895, por iniciativa do Centro Socialista de Santos junto aos trabalhadores portuários", afirma à BBC News Brasil Paulo Rezzutti, pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Na bagagem, os imigrantes europeus que chegaram ao Brasil no processo de substituição da mão-de-obra escrava, a partir da Lei Áurea (1888) e até as primeiras décadas do século 20, trouxeram também as ideias anarquistas, comunistas e socialistas então pulverizadas no Velho Mundo. "É o começo da questão trabalhadora no Brasil, com greves acontecendo, principalmente em São Paulo", complementa Rezzutti. O maior exemplo foi a Greve Geral de 1917, ocorrida em julho daquele ano na capital paulista e considerada a primeira paralisação geral da história do Brasil, com adesão estimada de 70 mil pessoas. "O poder sempre quis cooptar os trabalhadores. Até final dos anos 1910, os trabalhadores — não havia a efetiva legalização dos sindicatos — iam para o enfrentamento com os patrões — e o Estado — com a cara e a coragem. É o grande momento dos anarquistas, vide as greves de 1917 e 1919. Com a repressão, e expulsão de estrangeiros, o movimento arrefeceu", afirma à BBC News Brasil o historiador Marco Antonio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e autor de, entre outros, O Nascimento da República no Brasil. Presidente do Brasil entre 1922 e 1926, o mineiro Artur Bernardes "impôs uma reforma constitucional", conforme assinala Villa. E começou a tentar contornar, apaziguar e normatizar essas questões trabalhistas. "Em 1923, por exemplo, foi decretada uma lei, resultado de pressão por parte dos trabalhadores que começou a garantir caixa de assistência médica e aposentadoria para os ferroviários", menciona Bertolli. "Sobretudo havia uma pressão, de inspiração anarquista e comunista, dos trabalhadores ao governo." A instauração do feriado de Primeiro de Maio veio nesse governo, por decreto de 26 de setembro de 1924. "Artigo único: é considerado feriado nacional o dia 1 de maio, consagrado à confraternidade universal das classes operárias e à comemoração dos mártires do trabalho; revogadas as disposições em contrário", diz o documento. "O governo Artur Bernardes deu umas guinadas em favor do trabalhador. Houve a regulamentação de férias remuneradas, mas tudo ainda muito incipiente, sem nem ter mecanismos para fiscalizar se as empresas cumpriam ou não", comenta Rezzutti. "Mas foi no governo dele que acabou sendo criado o Dia do Trabalhador. A data era vista como forma de protesto, com piquetes, manifestações, greves, um monte de questões envolvendo os direitos dos trabalhadores, aquilo que os trabalhadores queriam reivindicar." Se Getúlio Vargas entrou para a história como o "pai das leis do trabalho", pode-se afirmar que, em relação ao trabalhador ele teve uma postura mais autoritária do que paterna. E isso se refletiu na maneira como ele lidou com o Primeiro de Maio. "Getúlio Vargas não mudou o decreto de 1924, mas atribuiu outro sentido à data", explica à BBC News Brasil o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão. "Ele incorporou a bandeira e rompeu com a oposição trabalhador-patrão, colocando todo mundo no mesmo feixe e trazendo para dentro do Estado as bandeiras do trabalho, como forma de esvaziar o movimento trabalhista dissonante. O trabalhismo da época dele foi um sindicalismo alternativo ao anarcossindicalismo, às correntes socialistas. Justamente porque trazia para dentro do Estado essa indissociação entre governo e trabalhador." "É importante salientar a tentativa dos governos de Bernardes e Vargas de ter controle sobre a data, em um momento de expansão de movimentos anarquistas e socialistas. Trazer a data para o calendário nacional era, obviamente, uma forma de ordenar o que comemorar, evitando e combatendo leituras dissonantes, do ponto de vista da ordem capitalista", acrescenta Galves. "Com Vargas, a data se transforma em espetáculo. Nesse sentido, talvez seja curioso ressaltar o fato de, a cada Primeiro de Maio, Vargas anunciar o valor do novo salário mínimo, concedido pelo líder, e não negociado com instâncias sindicais. Esse caráter de dádiva expressa o espírito de ordenamento da data." A inversão estava justamente no protagonismo. Populista, Vargas se colocou como alguém que concedia os direitos — como se esses não fossem, por essência, resultado de lutas e aspirações do povo. "Ele resolveu, de certa maneira, acabar com essa cara de reivindicação que havia no Dia do Trabalho. Para tanto, reforçou a data de forma a transformá-la em algo chapa-branca", complementa Rezzutti. "Virou um dia de festa, de desfile, uma coisa cívica e não mais uma luta pelos direitos trabalhistas. Na cabeça de Vargas, não fazia sentido lutar por direitos trabalhistas, afinal, 'ele já tinha dado um monte de coisas' para o trabalhador. Há uma mudança de semântica: de trabalhador para o trabalho. 'É hora de homenagear o trabalho, já que todo mundo tem trabalho', pensava-se." É nesse contexto que surge o conceito de peleguismo, afinal, o meio que o governo usou para controlar as organizações sindicais. "O projeto getulista de modernização do Brasil, incentivando a industrialização, baseava-se em, de um lado, enfatizar a importância e o papel do trabalhador; por outro, era preciso docilizar e manipular a massa de trabalhadores que estava se constituindo", explica Bertolli. Isso foi feito à moda do pão e circo. De um lado, o salário mínimo e a CLT. De outro, as festividades. "Em sua perspectiva de domar esse trabalhador, o governo começou a investir numa redefinição da festa dos trabalhadores. Se essas celebrações haviam começado em São Paulo com os anarquistas, de forma livre, independente e patrocinada pelos próprios trabalhadores e suas associações, Getúlio Vargas começou com a ideia de eventos festivos. Ele domesticou o Primeiro de Maio e o Estado passou a participar do evento", conta Bertolli. "Um dos caras que cantavam muito nessas festas era um mocinho proletário que depois ganharia fama. Seu nome era Vicente Celestino." Era um tempo de construção de narrativas e reforços ao imaginário público, a propaganda era a chave. "Entre 1930 e 1945 circularam no Brasil, então governado por Getúlio Vargas, as mais diferentes formas de propaganda política que, produzidas pelo poder instituído, tinham como objetivo promover heróis e incriminar os inimigos do regime. Álbuns de figurinhas e de fotografias exaltavam as lideranças brasileiras, assim como os feitos do Terceiro Reich, admirado por suas conquistas", descreve a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Universidade de São Paulo (USP) no livro, ainda inédito, 'Panfletos Subversivos'. "A narrativa oficial pautava-se pela presença de Vargas em todos os círculos das esferas públicas, destacado inicialmente como revolucionário de 1930, depois como 'trabalhador n.1 do Brasil' e, finalmente, como presidente eleito pelo povo, apesar do golpe ditatorial de 1937. Dessa forma vislumbramos nos impressos daquele período um conjunto de narrativas e imagens que estavam em sintonia com o ideário estadonovista." Esse caráter apolítico da data foi se tornando praxe, cada vez mais. "Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho, legalizou os sindicatos e atrelou os trabalhadores ao Estado — e a ele, em particular. O Primeiro de Maio foi transformado em cerimônia de Estado. E, claro, do dirigentes sindicais pelegos", contextualiza Villa. "Historicamente o Primeiro de Maio é um dia de luta dos trabalhadores. A data, no Brasil foi perdendo força — na Europa, hoje, também. A mudança do padrão de acumulação capitalista pode explicar este fato, lá e aqui. E 'aqui' porque a decadência veio antes do auge, coisas do Brasil." Nas últimas décadas isso ficou claro com festas do Primeiro de Maio que mais se assemelhavam a show do que a manifestações operárias. "O que Vargas fez se parece muito com aquilo que foi recuperado, sobretudo com o governo do PT: era festa", compara Bertolli. "Antes, a partir do fim dos anos 1990, houve esse resgate: tinha evento com sorteio de carro, essas coisas. O caráter despolitizante da festa é uma característica do festejo no Brasil das últimas décadas", complementa Galves. "O Primeiro de Maio é cada vez menos um festejo político e cada vez mais um feriado de lazer, de descanso", define Galves.
2023-05-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52494236
brasil
Qual o impacto de gafes e falas polêmicas de Lula nos primeiros meses de governo
Desde que tomou posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu algumas declarações controversas que geraram debates nas redes sociais, críticas e até reações de outros países. Em alguns casos, ele reconheceu o erro e pediu desculpas. Isso ocorreu, por exemplo, quando Lula relacionou problemas de saúde mental com violência, em uma reunião em que anunciou medidas para aumentar a seguranças nas escolas. Em outras ocasiões, o presidente tentou corrigir rumos, como fez depois da repercussão gerada quando disse que a Ucrânia, que foi invadida pela Rússia, também tem responsabilidade pela guerra. Mas até que ponto essas falas do presidente tiveram impacto direto na política doméstica ou na relação do Brasil com o mundo? A BBC News Brasil reuniu aqui algumas das gafes e falas polêmicas mais recentes. E ouviu especialistas, diplomatas e políticos sobre as consequências dessas declarações nos primeiros meses do governo Lula. Fim do Matérias recomendadas Recentemente, algumas falas de Lula causaram desconforto entre pessoas com deficiência e minorias. Ao assumir a Presidência, Lula anunciou o ministério com mais diversidade da história do país — com maior presença de mulheres, negros e indígenas. Mas, ao falar de improviso em discursos, alguns deslizes chamaram a atenção. Por exemplo, ao visitar em Roraima a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em 13 de março, Lula falou que a escravidão, apesar de terrível, teria trazido algo de bom, a miscigenação no Brasil. “Toda desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação da mistura entre indígenas, negros e europeus, que permitiu que nascesse essa gente bonita aqui, que gosta de música, que gosta de dança, que gosta de festa, que gosta de respeito, mas que gosta de trabalhar para sustentar a sua família e não viver de favor de quem quer que seja", afirmou. Muitos ativistas e historiadores usaram as redes sociais para explicar que a miscigenação no Brasil, na verdade, é fruto da violência e do estupro de mulheres negras e indígenas — não de um processo harmônico e pacífico. Também reforçaram que não há saldo positivo na escravidão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outro momento que causou polêmica foi quando Lula disse que pessoas que sofrem de deficiência intelectual têm “problemas de desequilíbrio de parafuso". A fala foi feita durante o anúncio de investimentos em segurança nas escolas, após o ataque que matou crianças numa creche em Blumenau. “A OMS [Organização Mundial da Saúde] sempre afirmou que, na humanidade, deve haver 15% de pessoas com algum problema de deficiência mental. Se esse número é verdadeiro, e você pega o Brasil com 220 milhões de habitantes, significa que temos quase 30 milhões de pessoas com problema de desequilíbrio de parafuso”, disse. “Pode uma hora acontecer uma desgraça”, completou. Mais uma vez, a declaração gerou fortes críticas, dessa vez de pessoas com deficiência ou que trabalham por políticas de saúde mental. O apresentador Marcos Mion, que tem um filho no espectro autista, usou suas redes sociais para dizer que a fala de Lula reforça o preconceito contra pessoas com deficiência intelectual. "Irresponsavelmente, a fala dele liga deficientes intelectuais diretamente aos casos de violência que infelizmente temos visto acontecer. Isso é um absurdo, pois não há qualquer comprovação. Como pai de um autista, eu me sinto atingido", disse Mignon. Lula se retratou depois com uma publicação no Twitter. "Gostaria de pedir desculpas sobre uma fala que fiz na semana passada, durante reunião sobre violência nas escolas. Conversei e ouvi muitas pessoas nos últimos dias e não tenho vergonha de assumir que sigo aprendendo e buscando evoluir”, disse. "É por isso que quero me retratar com toda a comunidade de pessoas com deficiência intelectual, com pessoas com questões relacionadas à saúde mental e com todos que foram atingidos de alguma maneira por minha fala." Ele também se desculpou por relacionar transtorno mental com violência. "Não devemos relacionar qualquer tipo de violência a pessoas com deficiência ou pessoas que tenham questões de saúde mental. Não vamos mais reproduzir esse estereótipo. Tanto eu quanto nosso governo estamos abertos ao diálogo." Para o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), vice-líder do governo no Congresso, as gafes do presidente têm “pouca repercussão no dia a dia do povo brasileiro” e não abalam a popularidade de Lula. “Acho que o impacto é muito pequeno. Você vê o presidente Bolsonaro, anterior ao Lula. Ele falava os maiores absurdos e a quantidade de preconceitos contra as pessoas negras, mulheres, contra o povo LGBT, indígenas. Ele fazia isso a torto e a direito e mesmo assim ele manteve uma certa popularidade”, disse Zarattini à BBC News Brasil. “O presidente Lula toma o maior cuidado. E ele não é preconceituoso nem com as mulheres, nem com os gays, nem com os negros. Mas, às vezes, tem questões que são um modo de falar da população brasileira, que ainda está muito introjetado nas pessoas. Então, às vezes, qualquer pessoa, por mais que tenha uma visão moderna, tenha uma visão progressista, comete também esse tipo de fala, entende? Mas tem muito pouca repercussão isso no dia a dia do povo brasileiro.” Pesquisa da Genial/Qaest de abril mostrou que a avaliação positiva do governo Lula recuou quatro pontos percentuais desde fevereiro, passando de 40% para 36%. Mas, de fato, segundo o levantamento, a queda se deu sobretudo entre eleitores de Jair Bolsonaro (PL), não entre quem votou no atual presidente. Ou seja, ao menos por enquanto, as gafes não se refletiram necessariamente em perda de apoio popular. “Foram os eleitores que votaram em Bolsonaro na eleição do ano passado que passaram a se posicionar contrariamente ao governo. Entre os bolsonaristas, a avaliação negativa do governo subiu de 51% para 60%, enquanto a não resposta caiu de 20% para 5%”, explicou Felipe Nunes, da Genial/Qaest, em post no Twitter. “Lula tem sido um bom presidente para quem votou nele, mas seu governo, ao não fazer acenos para o eleitorado de centro e oposicionista, dá boas razões para que ele passe a buscar motivos para não gostar do que está vendo", avaliou. Mas outras declarações de Lula que envolvem política externa provocaram reações imediatas de outros países. E, segundo diplomatas e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, tiveram impacto concreto na relação do Brasil com o mundo. É o caso de duas falas de Lula relacionadas à Guerra da Ucrânia. Em entrevista coletiva quando visitava a Arábia Saudita, Lula atribuiu à Ucrânia, que foi invadida pela Rússia, responsabilidade pela guerra. Antes, quando visitava a China, sugeriu que Estados Unidos e Europa contribuem para a continuidade da guerra. “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia pare de incentivar a guerra e comecem a falar em paz", disse. A Casa Branca reagiu. Um porta-voz do governo americano chegou a dizer que a posição brasileira “é profundamente problemática” e que o país estaria "papagueando propaganda russa e chinesa" sobre a guerra. A Europa também se manifestou. “Não é verdade que os Estados Unidos e a União Europeia estão ajudando a prolongar o conflito. Nós oferecemos inúmeras possibilidade à Rússia de um acordo de negociação em termos civilizados”, disse Peter Sano, porta-voz para Assuntos Externos da União Europeia. Depois, em Portugal, Lula tentou corrigir rumos ao enfatizar que o Brasil condena as ações da Rússia na Ucrânia. "Nunca igualei os dois países porque sei o que é invasão e integridade territorial. Todos nós achamos que a Rússia errou e já condenamos em todas as decisões da ONU”, disse. Mas, segundo o professor Christopher Sabatini, especialista em Relações Internacionais, as declarações anteriores do presidente podem ter minado a tentativa do Brasil de ter papel ativo nas negociações pela paz entre Rússia e Ucrânia. Sabatini foi professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e é pesquisador da Chatham House, instituto de políticas públicas em Londres, no Reino Unido. “Claramente as falas de Lula em Portugal são uma tentativa de correção de rumos, mas pode ser tarde demais. Acho que permanece a desconfiança gerada pelas declarações dele na China”, disse à BBC News Brasil. “Ele realmente pode ser um mediador neutro? Onde está a lealdade dele? Ele tende a uma posição pró-Rússia? Acho que vários governos da Europa Ocidental vão ficar relutantes em confiar a Lula qualquer tipo de esforço sério de servir como mediador da paz.” Já Zarattini, vice-líder do governo no Congresso, minimizou as consequências dessas declarações e disse que Lula está reforçando a posição de independência do Brasil em relação aos Estados Unidos. “Os governos do Lula e da Dilma sempre tiveram uma posição de independência. A gente sempre teve boas relações com os Estados Unidos e com outros países, mas sempre mantendo uma posição de independência. Então, não é porque o Estados Unidos têm uma opinião que nós devemos seguir exatamente aquela opinião. Nós temos uma opinião diferente, nesse caso, em relação a esse conflito”, disse. Na visão dele, Lula tem a seu favor o fato de ser visto internacionalmente como um democrata, em contraste com seu antecessor. E também o fato de se dizer comprometido em proteger a Amazônia, depois dos recordes de desmatamento no governo anterior. "Esse momento de aparente estremecimento é absolutamente superável porque há uma convergência maior de agenda e complementaridade mais aguda de interesses entre Lula e Europa e o governo (americano de Joe) Biden”, disse Kalout.
2023-04-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1rle2j82jlo
brasil
Por que Brasil foi obrigado a se desculpar publicamente com quilombolas do Maranhão
O Estado brasileiro reconheceu que violou direitos de comunidades quilombolas e emitiu um pedido de desculpas às populações deslocadas forçadamente após a construção do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. A admissão ocorreu durante audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na qual o Brasil foi julgado por violações contra os quilombolas. O caso está relacionado à instalação da base de lançamentos de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB) e à remoção de mais de 300 famílias da região onde o projeto foi construído na década de 1980, durante o regime militar. O julgamento, que aconteceu de forma presencial na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago, foi encerrado nesta quinta-feira (27/4). A audiência foi convocada após uma denúncia apresentada por representantes das comunidades afetadas e entidades da sociedade civil em 2001. Fim do Matérias recomendadas A Corte é uma instituição autônoma ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem como objetivo aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. É um dos tribunais regionais de proteção dos direitos humanos, ao lado do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Diante das declarações feitas pelo Estado brasileiro no julgamento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou ao Brasil que apresente suas propostas por escrito, para que possam ser avaliadas pelos representantes das comunidades quilombolas e pelo próprio tribunal, antes de que qualquer decisão oficial seja tomada. Entenda a seguir quais foram as acusações contra o Brasil e qual a posição tomada pelo governo durante a audiência. O conflito na região remonta à década de 1980, quando a base começou a ser construída durante o governo do general João Figueiredo. Município com 22 mil habitantes a cerca de 100 km de São Luís, Alcântara fica numa península com localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites. Próximo à linha do Equador, o centro - inaugurado pela FAB em 1983 - possibilita uma economia de até 30% no combustível usado nos lançamentos. A construção, porém, levou um território de 52 mil hectares a ser declarado como de "utilidade pública", segundo a CIDH. Parte dessa área era habitada por 32 comunidades quilombolas que foram realojadas em sete "agrovilas" concebidas pelos militares. E as disputas territoriais seguem até hoje. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades. O quilombola Nonato Masson, advogado do Centro de Cultura Negra do Maranhão, afirmou à BBC News Brasil que os quilombos de Alcântara viveram sem interferências externas de 1700 até o início da construção do centro de lançamentos. A principal violação denunciada pelas organizações sociais e representantes locais é a remoção de 312 famílias quilombolas para a construção da base, à qual a CIDH se referiu como "usurpação do patrimônio coletivo" das comunidades. A Corte também analisou a questão da titularidade do território - concessão do direito de posse de uma área - e da reparação às comunidades. A Constituição Federal de 1988 assegura o direito aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras, à propriedade definitiva de seus territórios. Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras. O caso chegou ao tribunal internacional após organizações peticionarem a denúncia na CIDH. O órgão recomendou em duas ocasiões ao Estado brasileiro que fosse feita a titulação do território, a reparação financeira dos removidos e um pedido público de desculpas. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), chegou a publicar um relatório apontando que mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados em favor dos quilombolas, mas o processo não foi encaminhado. Como as recomendações não foram cumpridas, a Comissão levou o caso à Corte em janeiro de 2022. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outro ponto também foi discutido na audiência: a realização de consultas públicas para efetuar novos deslocamentos de comunidades na região ou fazer obras de ampliação da base aérea. Esse tópico tem relação principalmente com um projeto de expansão base, incentivado por um acordo entre Brasil e Estados Unidos assinado em 2019. Apoiadores da proposta afirmam que ela seria de grande importância para ampliar o aproveitamento da base, que no passado foi pouco utilizada, e desenvolver o setor no país - mais recentemente o centro passou a negociar a operação de lançamentos comerciais. Mas segundo Servulo Borges, militante do movimento quilombola de Alcântara afirmou à BBC, a ampliação estudada desde os anos 2000 poderia levar ao despejo de mais de 40 comunidades da região. Na audiência pública foram ouvidos representantes quilombolas e moradores da região, além de especialistas na área, indicados tanto pelos denunciantes como pelo Estado brasileiro. Durante a audiência, o Estado brasileiro reconheceu, de forma oficial, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara. A violação ao direito de propriedade teria acontecido na medida em que o governo não levou a cabo a titulação de seu território. Já o descumprimento do direito à proteção judicial ocorreu por não ter sido oferecido remédio judicial rápido e eficaz para a situação. Na mesma audiência, o país fez um pedido de desculpas formal aos quilombolas do município maranhense e informou ao Tribunal que sua declaração será divulgada por escrito e ficará disponível durante um ano em página oficial do governo federal. O posicionamento do Brasil foi manifestado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, durante o julgamento. "Como consequência dessa violação, e ciente da natureza própria de que se revestem as medidas de reparação por violações ao direito internacional, em nome do Estado brasileiro manifesto nosso mais sincero e formal pedido de desculpas à senhora Maria Luzia, ao senhor Inaldo Faustino e aos demais membros das comunidades quilombolas de Alcântara", afirmou Messias, se referindo a alguns dos envolvidos no caso que participaram da audiência. O advogado também confirmou a criação de um grupo de trabalho interministerial que terá o objetivo de buscar soluções para a titulação territorial das comunidades remanescentes de quilombos. Segundo o governo, o grupo terá participação de quilombolas e deverá concluir os trabalhos em até um ano. Após esse período, a titulação progressiva das terras deverá ocorrer em até dois anos após a publicação da portaria de reconhecimento territorial. Messias afirmou ainda que o governo federal está comprometido em viabilizar recursos financeiros para compensação das violações. Segundo ele, esses fundos serão entregues na forma de implementação de políticas públicas que beneficiem diretamente as comunidades. As propostas agora deverão ser entregues por escrito à Corte e aos quilombolas antes da tomada de uma decisão final. Após o término da audiência, os representantes das organizações e comunidades quilombolas que entraram com a denúncia na Corte classificaram o pedido de desculpas do Brasil como "incompleto". Em nota, afirmaram que os anúnicos "foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional". Os representantes se queixaram que o Estado não precisou qual a extensão ou localização dos territórios a serem titulados, assim como a forma jurídica de tais títulos. Também criticaram a criação de um grupo de trabalho sem antes fazer qualquer consulta às comunidades quilombolas envolvidas. Segundo as organizações, a instalação da base alterou intensamente o modo de vida e as práticas culturais das comunidades. "Nas sete agrovilas nas quais as comunidades foram reassentadas, elas sofreram uma alteração dos costumes e práticas atuais e são até os dias atuais privadas de condições adequadas de vida, com a falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social", afirmaram as instituições quilombolas e de outros setores da sociedade civil em outro comunicado divulgado à imprensa. Os denunciantes também se queixam da falta de iniciativas de reparação ou reconhecimento da propriedade do território antes da audiência pública. "O governo brasileiro teve diversas oportunidades de reconhecer e reparar as violações, mas não o fez. Os Quilombos de Alcântara ainda não contam com títulos de propriedade coletiva sobre os seus territórios tradicionais", dizem. Danilo Serejo, quilombola e representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), uma das organizações envolvidas no processo, afirma também que mesmo as famílias que não foram deslocadas em um primeiro momento tiveram suas vidas afetadas. Por isso, a compensação buscada é para todas as comunidades locais. "A área desapropriada alcança mais de 150 comunidades. Mas além das pessoas deslocadas na década de 1980, outras muitas perderam os direitos sobre suas terras e vivem há mais de 40 anos em uma situação de incerteza, sempre com o temor de serem despejadas", afirmou à BBC News Brasil antes do julgamento. Serejo explica ainda que o objetivo das instituições denunciantes não é encerrar as operações da base ou obrigar o centro a se retirar da região, mas garantir o direito de propriedade e que as comunidades quilombolas tenham voz em projetos futuros envolvendo suas terras. "Ninguém está pedindo que a base seja retirada do município, mas é preciso que se discuta formas de compensação. Nosso entendimento é de que a base está no nosso território e não o contrário", diz.
2023-04-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c037z59zg3lo
brasil
O que está em jogo em vitória bilionária de Haddad no STJ
"Regalias a quem não precisa" e "assalto aos cofres públicos": é assim que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vem se referindo a benefícios fiscais concedidos a empresas que somam mais de R$ 400 bilhões. Segundo estimativa da sua equipe, reverter ao menos parte desses benefícios pode aumentar a receita anual da União em algumas dezenas de bilhões de reais. A medida é considerada, pela equipe econômica, peça fundamental do plano do governo para equilibrar as contas públicas (deixar de gastar mais do que arrecada) ao mesmo tempo que cumpre a promessa eleitoral de elevar gastos sociais e investimentos. Mas esse plano enfrenta resistências dos setores beneficiados, que alegam usufruir de descontos legítimos, dentro da legislação tributária. Empresas argumentam ainda que a reversão desses benefícios vai elevar os custos de produção, gerando reajustes nos preços (inflação). Fim do Matérias recomendadas Apesar do tema delicado, o governo conseguiu uma vitória na quarta-feira (26/4), em um julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a tributação do lucro de grandes empresas. A decisão – que limitou a redução de descontos no ICMS do lucro tributável – pode significar mais R$ 90 bilhões em arrecadação, segundo estimativa da Receita Federal. A validade desse julgamento, porém, ainda será avaliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), depois que o ministro André Mendonça deu uma liminar suspendendo a eficácia da decisão do STJ (entenda melhor abaixo). O plenário virtual do Supremo vai avaliar se mantém ou derruba a liminar de Mendonça a partir de 5 de maio. A perspectiva é positiva para a União porque, em julgamentos passados, o STF já avaliou que a discussão em torno de descontos no ICMS e impostos sobre lucros era um tema para ser decidido no STJ, e não no Supremo. Haddad celebrou a decisão da Primeira Seção do STJ, que deu vitória unânime à União. Ele manifestou confiança na manutenção do resultado pelo STF. "Esperava um 7x2, 6x3, mas foi 9x0", comemorou. "Considerei o julgamento exemplar. O voto do relator foi acompanhado por outros oito ministros. Isso dá muita confiança que estamos no caminho certo para remover do sistema tributário aquilo que está impedindo a busca de um equilíbrio orçamentário", disse ainda a jornalistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O que está em jogo nesse caso é se grandes empresas que recebem descontos no ICMS (imposto estadual) devem ou não contabilizar esses ganhos como lucro tributável. Isso faz diferença para a União porque impacta na cobrança de impostos federais que incidem sobre os ganhos das empresas (IRPJ e CSLL). Segundo estimativas da Receita Federal, uma vitória nesse caso pode representar mais R$ 90 bilhões em arrecadação, sendo que R$ 70 bilhões pertenceriam aos cofres da União, e outros R$ 20 bilhões representam a parcela do IRPJ e CSLL que é compartilhada com Estados e municípios. A disputa remonta a uma lei aprovada no Congresso em 2017 permitindo ao setor produtivo ampliar o uso de descontos de ICMS na redução do lucro tributável. No entanto, discordâncias entre a Receita Federal e empresas sobre como interpretar e aplicar a lei levaram a centenas de ações na Justiça. "Essa subtração, na mão grande, da base de cálculo de um tributo federal, pelo não pagamento de um tributo estadual, foi um assalto aos cofres públicos. Não tenho como caracterizar de outra maneira", chegou a dizer Haddad no início de abril, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. A Primeira e a Segunda Turma do STJ vinham tomando decisões divergentes sobre esse tema, o que levou a Primeira Seção da Corte (colegiado que reúne as duas turmas) a realizar o julgamento desta quarta-feira para pacificar a questão. Após intensa campanha de Haddad, que se reuniu com o ministro relator do caso, Benedito Gonçalves, na segunda-feira (24/04), a Primeira Seção decidiu por unanimidade em favor da União. Vale explicar que há diversos tipos de desconto no ICMS, que normalmente são concedidos pelos Estados para atrair investimentos. Em outro julgamento, de 2017, o STJ já autorizou as empresas a descontarem do seu lucro tributável o crédito presumido, um valor que a empresa pode abater do ICMS devido. No julgamento realizado agora, a Primeira Seção analisou se a mesma lógica deveria valer para outros descontos no ICMS, como redução da base de cálculo, isenção e diminuição de alíquota, entre outros. Os ministros decidiram, porém, que esses outros descontos têm natureza diferente do crédito presumido e, por isso, só podem ser retirados do lucro tributável quando servirem para a empresa realizar novos investimentos. Já quando os benefícios fiscais forem usados apenas para reduzir o custeio (custo recorrente de produção), o valor não poderá ser reduzido do lucro tributável. Durante o julgamento, advogados do setor produtivo rebateram as acusações da Fazenda às empresas. Eles criticaram a elevada carga tributária e afirmaram que o aumento da tributação vai penalizar o consumidor, com aumento de preços. O advogado Saul Tourinho, que defendia a empresa Fast Indústria e Comércio, do ramo de tratamento sanitário, lembrou que indústrias do setor de alimentos também seriam impactadas. "O ministro da Economia está dentro do tribunal dizendo que precisa de R$ 90 bilhões pelo social. Será que há algo mais social que comida e esgoto? É para lá que vai o preço disso", argumentou. Já a análise de empresas com ações negociadas em Bolsa, que precisam informar benefícios fiscais em seus balanços, mostra que o setor de varejo será especialmente afetado. Em 2022, subsídios de ICMS chegaram a representar mais de 40% do lucro líquido do Grupo Soma (dono de marcas como Hering e Farm) ou mais de 20% da companhia de sapatos Arezzo e da atacadista Assaí, segundo levantamento do Santander, por exemplo. A decisão liminar do ministro André Mendonça determinou a suspensão dos efeitos do julgamento do STJ até que o Supremo julgue outra ação sobre a incidência de créditos presumido de ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, outro tributo federal. Sua decisão atendeu a um pedido da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), sob o argumento de que os temas eram parecidos e, portanto, o STJ deveria esperar a manifestação do STF nessa outra ação. A liminar determinava, inclusive, que o caso não fosse analisado pelo STJ. Mas, como o julgamento já havia começado na Primeira Seção quando a decisão foi tomada, os ministros decidiram continuar. Dessa forma, a União obteve a vitória no STJ, mas a decisão depende da liminar de Mendonça ser derrubada para entrar em vigor.
2023-04-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0kpqwzjl7eo
brasil
EUA pedem extradição de suspeito de ser espião russo que se passava por brasileiro
O governo dos Estados Unidos pediu a extradição do russo Sergey Vladimirovich Cherkasov, que está preso no Brasil e é apontado pelo FBI (a polícia federal norte-americana) como um agente de inteligência a serviço do governo russo que se passava por brasileiro. A informação foi confirmada nesta quarta-feira (26/4) à BBC News Brasil pelo Ministério das Relações Exteriores. Cherkasov vem negando ser um espião. A BBC News Brasil solicitou uma posição da Defensoria Pública da União (DPU), que atua na defesa de Cherkasov, mas nenhuma resposta foi enviada até o momento. Segundo o Itamaraty, o pedido de extradição foi feito pelas autoridades norte-americanas na terça-feira (25/4). "O Ministério das Relações Exteriores recebeu, na data de ontem (25/4), o pedido de extradição de Sergey Vladimirovich Cherkasov feito pelo governo dos Estados Unidos. O pedido será prontamente encaminhado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), autoridade central para a cooperação jurídica internacional", diz a nota enviada pelo Itamaraty à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas O pedido feito pelos norte-americanos deverá tramitar no Supremo Tribunal Federal (STF), instância responsável pelo julgamento de casos de extradição. Cherkasov, aliás, já é alvo de um outro pedido de extradição, mas feito pela Rússia, em agosto de 2022. O russo foi preso no Brasil em abril de 2022 após ser impedido de entrar na Holanda, quando tentava iniciar um estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), que investiga e julga crimes de guerra. Na ocasião, Cherkasov usava documentos falsos brasileiros e adotava a identidade de Victor Muller Ferreira. No Brasil, ele foi condenado a 15 anos de prisão pelo uso de documentos falsos. As investigações conduzidas pela Polícia Federal após a sua prisão apontaram indícios de que ele atuava como um agente de inteligência a serviço do governo da Rússia. Além da condenação, Cherkasov ainda é alvo de um inquérito por lavagem de dinheiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em março deste ano, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos formalizou uma acusação contra Cherkasov por crimes como atuação de agente estrangeiro em solo norte-americano sem autorização, fraudes financeiras e com objetivo de obter um visto. Na acusação, o governo norte-americano afirma que Cherkasov é um oficial do Departamento Central de Inteligência (GRU) e que usava a identidade brasileira para se infiltrar em instituições e obter informações estratégicas como a análise de especialistas em geopolíticas sobre a reação dos países alinhados aos Estados Unidos à invasão da Ucrânia. Segundo o FBI, Cherkasov fazia parte de um grupo considerado a elite da espionagem russa, formado por espiões que são enviados a outros países pelo governo russo com a missão de assumir diferentes nacionalidades e personalidades para conseguir acesso a informações de políticos, acadêmicos, instituições e empresas de interesse do governo russo.  Procurada inúmeras vezes para se manifestar sobre o assunto, a Embaixada da Rússia não respondeu aos pedidos de informação sobre o caso. O governo russo também não se manifestou sobre o episódio. Em agosto de 2022, o governo da Rússia formalizou um pedido de extradição de Cherkasov alegando que ele seria, na verdade, um traficante de drogas procurado pelas autoridades russas há quase 10 anos. Ouvido no processo, Cherkasov chamou atenção ao afirmar que gostaria de ser entregue às autoridades do seu país, apesar da possibilidade de uma pena na Rússia com maior duração do que precisaria cumprir no Brasil. O pedido de extradição feito pelo governo russo está sob a relatoria do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Edson Fachin. Em março, ele deu decisão favorável para entrega de Cherkasov aos russos, mas condicionou ao fim das investigações da Polícia Federal ainda em curso sobre a atuação dele no país. As investigações conduzidas pela PF e pelo FBI indicam que Cherkasov usava a sua identidade brasileira para viajar por diferentes países e até mesmo para estudar em universidades de renome nos Estados Unidos (como a Universidade Johns Hopkins) e na Irlanda (Trinity College). Os investigadores também localizaram pendrives que pertenceriam a Cherkasov e que continham, segundo a PF e o FBI, relatórios de suas atividades destinados aos seus controladores (espécie de supervisores de ações de espionagem). Em um desses pendrives, segundo a Polícia Federal e o FBI, Cherkasov relata como teria se aproximado de uma ex-funcionária de um tabelionato de São Paulo para conseguir a autenticação de documentos de forma fraudulenta. Desde o surgimento do caso de Cherkasov, vieram à tona pelo menos outros dois casos de supostos espiões russos usando identidades falsas brasileiras. Um deles foi preso na Noruega, em outubro de 2022. O outro teria desaparecido no início deste ano após uma viagem à Malásia. O pedido de extradição dos norte-americanos pode colocar o Brasil em uma crise diplomática. Isso pode ocorrer porque o julgamento desse pedido cabe ao STF, mas a lei faculta ao presidente da República a decisão sobre entregar ou não a pessoa extraditada. As autoridades brasileiras terão que decidir se e para quem o país vai extraditar Cherkasov: Estados Unidos ou Rússia. O pedido também chega em um momento de intensificação das tensões entre os dois países, especialmente após o início da invasão da Ucrânia por tropas russas, em fevereiro de 2022. Os Estados Unidos são o principal fornecedor de armas para a Ucrânia desde o início do conflito. Além das tensões por conta do conflito na Ucrânia, Rússia e Estados Unidos também enfrentam uma escalada diplomática por conta da prisão do jornalista norte-americano Evan Gershkovich, em março deste ano. O repórter trabalhava para o jornal The Wall Street Journal, mas o governo russo acusa o jornalista de praticar espionagem no país.
2023-04-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czvkdzryjglo
brasil
Telegram: por que Justiça mandou tirar aplicativo do ar no Brasil
A Justiça determinou nesta quarta-feira (26/4) a suspensão do serviço do Telegram no Brasil depois que a empresa "cumpriu apenas parcialmente a ordem judicial" para fornecer dados de participantes de grupos com conteúdo neonazista dentro do aplicativo. Segundo decisão do juiz Wellington Lopes da Silva, da Justiça Federal do Espírito Santo, operadoras de telefonia móvel e lojas virtuais de aplicativo devem indisponibilizar o acesso ao Telegram. Os ofícios para o cumprimento dessa determinação teriam que ser entregues aos destinatários até as 19h desta quarta. A multa pela falta de informações por parte da empresa também foi elevada para R$ 1 milhão por dia de atraso. A Polícia Federal havia solicitado ao Telegram informações sobre integrantes e administradores de dois grupos online que promovem antissemitismo. A obtenção desses dados faz parte das investigações sobre o ataque a uma escola da cidade capixaba de Aracruz, realizado por um adolescente de 16 anos no final do ano passado. Fim do Matérias recomendadas Segundo a polícia, "o conteúdo do celular utilizado pelo jovem revela que a ação pode ter sido induzida por integrantes neonazistas de forma anônima através do aplicativo do Telegram". Grandes plataformas da internet, como Twitter e TikTok, além dos aplicativos de troca de mensagens, têm sido questionadas sobre a disponibilização de conteúdo para cooptar e estimular jovens que tenham interesse no tema. O caso do adolescente de 13 anos que invadiu uma escola no final de março em São Paulo, matou uma professora e feriu cinco pessoas ligou um alerta sobre esse tipo de atividade online. O autor do ataque fazia referências a um dos autores do massacre em Suzano (SP) em 2019, algo recorrente em grupos neonazistas na internet. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No texto do despacho, o juiz diz que o Telegram "ao descumprir a ordem judicial, se limitou a negar o fornecimento dos dados requisitados sob a alegação genérica de que 'o grupo [de conteúdo antissemita] já foi deletado'." "Assim, ante a recalcitrância do Telegram em cumprir de modo integral o que lhe foi ordenado judicialmente (...) impõe-se a aplicação de sanções". A BBC News Brasil entrou em contato com o Telegram para obter posicionamento da empresa sobre a decisão judicial e aguarda resposta. Durante evento em Fortaleza nesta quarta, o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que "a Polícia Federal pediu e o Poder Judiciário deferiu que uma rede social que não está cumprindo as decisões, no caso o Telegram, tenha uma multa de R$ 1 milhão por dia e suspensão temporária das atividades, exatamente porque há agrupamentos denominados Frentes Antissemitas ou Movimentos Antissemitas atuando nessas redes e nós sabemos que isso está na base da violência contra nossas crianças e nossos adolescentes". O Ministério da Justiça disse anteriormente que monitora mensagens sobre supostas ameaças de ataques na internet, que 1.224 casos estão sob investigação e que quase 700 adolescentes já foram intimados a depor. É a segunda vez em pouco mais de um ano que a Justiça ordena a suspensão dos serviços do Telegram no Brasil. Em março do ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, determinou que o aplicativo fosse tirado do ar porque a empresa não havia tomado providências para combater desinformação e divulgação de notícias falsas de conteúdo político. Na época, Moraes afirmou em seu despacho que "o aplicativo Telegram é notoriamente conhecido por sua postura de não cooperar com autoridades judiciais e policiais de diversos países, inclusive colocando essa atitude não colaborativa como uma vantagem em relação a outros aplicativos de comunicação, o que o torna um terreno livre para proliferação de diversos conteúdos, inclusive com repercussão na área criminal". Horas depois da divulgação da decisão do ministro do Supremo, o diretor-executivo da companhia, o russo Pavel Durov, divulgou um pedido de desculpas e começou a cumprir as ordens estabelecidas. O ministro então revogou a ordem de bloqueio e permitiu o funcionamento do aplicativo.
2023-04-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25ewyqev32o
brasil
A 'operação de guerra' para chocar ovos de espécie rara que passou 75 anos considerada extinta
A rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis) não chama a atenção apenas pelos olhos azuis e a bela plumagem marrom-castanho: ela está entre as aves mais raras do mundo. A espécie, que vivia no Cerrado e era avistada de Goiás a São Paulo, de Mato Grosso a Minas Gerais, praticamente desapareceu do mapa e não era encontrada na natureza há 75 anos. Mas essa história ganhou uma reviravolta surpreendente em 2015, quando 12 rolinhas-do-planalto foram descobertas ao acaso no município mineiro de Botumirim, a 354 quilômetros de Belo Horizonte. Desde então, um time de cientistas lançou uma verdadeira "operação de guerra" para tentar salvar essa espécie da extinção. E o mais recente capítulo deste trabalho aconteceu nos primeiros meses de 2023, quando dois ovos da rolinha-do-planalto foram retirados da natureza e incubados com o auxílio de máquinas e especialistas. Fim do Matérias recomendadas Os filhotes que nasceram foram então transportados de jatinho até Foz do Iguaçu, onde inaugurarão um viveiro cheio de cuidados especiais — para que, no futuro, indivíduos dessa espécie possam ser reintroduzidos na natureza. A BBC News Brasil conversou com os responsáveis pelo projeto — e você confere a seguir todos os detalhes da corrida para resgatar essa ave da extinção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2015, o ornitólogo Rafael Bessa viajava pelo interior de Minas Gerais quando decidiu parar num determinado local da Serra do Espinhaço, no norte do Estado, para tirar fotos e apreciar a vista. Foi aí que o especialista ouviu o canto de um pássaro diferente, que ele não reconheceu de primeira. Bessa resolveu voltar ao mesmo lugar no dia seguinte, munido dos equipamentos necessários para registrar aquela espécie misteriosa. "Olhei pelo binóculo, e minhas pernas começaram a tremer. Sabia que tinha um verdadeiro fantasma na minha frente. Foi um momento de muita emoção, indescritível. Estava muito feliz e nervoso ao mesmo tempo", disse o especialista à BBC News Brasil, numa reportagem publicada em junho de 2016. "Só pensava em documentar e aproveitar o momento. Até então, não sabíamos absolutamente nada sobre a espécie, e aqueles poucos minutos de observação poderiam significar muito para a conservação da rolinha." Sim, Bessa estava diante da rolinha-do-planalto, que não era vista na natureza há 75 anos. O biólogo Pedro Develey, diretor-executivo da Save Brasil, ong que trabalha pela conservação das aves na natureza, lembra que ficou sabendo da descoberta no Congresso Brasileiro de Ornitologia de 2015, realizado em Manaus. "Os registros eram extraordinários. Estávamos diante de uma das maiores descobertas da ornitologia do último século", pontua. "Nós só conhecíamos a rolinha-do-planalto por algumas peças de museu, e os órgãos responsáveis já a classificavam como uma espécie praticamente extinta", complementa ele. A descoberta de Bessa deu início a uma verdadeira corrida contra o tempo. Afinal, ele só havia observado cerca de 12 indivíduos no local. "Um de nossos primeiros questionamentos foi justamente sobre a propriedade. Quem era o dono daquela terra? Tratava-se de uma área protegida? Havia alguma ameaça à vida daquelas poucas aves?", questiona Develey. A Save Brasil começou a fazer toda essa investigação e, em cerca de três anos, comprou o terreno localizado na cidade de Botumirim com recursos próprios para montar uma reserva natural privada de 600 hectares. "Em paralelo, trabalhamos com o governo de Minas Gerais para a criação do Parque Estadual de Botumirim, que tem 35 mil hectares", conta o biólogo. A primeira missão estava cumprida: a área onde as raras rolinhas-do-planalto foram observadas depois de tanto tempo estava finalmente protegida. Começava, então, a próxima etapa. "A gente precisava entender a biologia dessa ave. O que ela come, onde vive, se faz migração, como se comporta nas temporadas de chuva ou seca, como se reproduz…", lista Develey. E, ao longo dos estudos, os cientistas depararam com uma boa notícia. "A rolinha-do-planalto é prolífera quando o assunto é fazer ninhos e botar ovos. Ela pode fazer até três posturas de ovos durante a temporada reprodutiva, que acontece durante a primavera e o verão", explica. Isso significa, portanto, que os especialistas poderiam colher ovos logo no início desse período de reprodução sem prejudicar o futuro da espécie na natureza, já que a fêmea botaria outra unidade na sequência, sem prejuízos. "A gente também percebeu que a predação dos ovos era muito alta", acrescenta o biólogo. Outras aves maiores costumam entrar nos arbustos onde a rolinha-do-planalto esconde o ninho para roubar os ovos e usá-los como alimentos. Ao retirar o primeiro ovo, portanto, os cientistas evitariam o "desperdício" de um material tão precioso. "Vale ressaltar que temos todas as licenças ambientais para realizar esse trabalho e, antes de iniciar o projeto, fizemos um workshop com 20 instituições e quase 30 especialistas do mundo todo", pondera Develey. "Foi nessa reunião que planejamos todas as ações de acordo com as evidências científicas e as experiências prévias", completa. Todo o planejamento de quase oito anos foi colocado em prática na última temporada reprodutiva, entre o final de 2022 e o início de 2023. Os cientistas coletaram dois ovos da rolinha-do-planalto na natureza. Eles foram colocados numa incubadora artificial e tiveram todos os parâmetros monitorados de perto. O processo de desenvolvimento dos embriões foi marcado por alguns sustos. "Certo dia, aconteceu uma queda de luz e não podíamos ficar sem energia. Tivemos que comprar um gerador para garantir o funcionamento dos aparelhos", relata Develey. "Passamos momentos de muita tensão, pois tínhamos que cuidar de dois ovos de uma das espécies mais raras do mundo", constata ele. Felizmente, deu tudo certo: os dois filhotes nasceram nos dias 21 e 22 de fevereiro, sob o olhar atento e um tanto apreensivo da equipe de especialistas. Nos primeiros dias, eles foram alimentados com papinhas entre às 6 horas da manhã e às 18h da tarde. Ambos se desenvolveram bem e estavam prontos para alçar um voo precoce — e inédito. "Nós, da Save Brasil, conhecemos muito sobre a conservação das aves na natureza, mas não temos expertise sobre o manejo e o cuidado delas em cativeiro", admite Develey. "Foi daí que surgiu a parceria com o Parque das Aves." Localizada em Foz do Iguaçu, no Paraná, a instituição tem como foco a conservação das aves da Mata Atlântica e aceitou a missão de abrigar os filhotes da rolinha-do-planalto. Tinha início, assim, a terceira etapa dessa missão: o transporte das aves por 1,5 mil km. "Nós planejamos praticamente uma operação de guerra para trazer essas aves para cá", contextualiza a veterinária Paloma Bosso, diretora técnica do Parque das Aves. No dia 23 de março, a caixinha com os dois filhotes foi transportada de carro por 160 km até a cidade de Montes Claros, onde fica o aeroporto mais próximo de Botumirim. Ali, elas foram embarcadas num jatinho particular da Azul — a companhia aérea fez o trajeto aéreo sem custos para a Save Brasil ou o Parque das Aves. A aeronave saiu de Minas Gerais às 9h30 da manhã e pousou em terras paranaenses às 13h15. Bosso, que acompanhou as rolinhas-do-planalto durante o voo, explica que tudo correu bem. "Ficamos preocupados com a altitude e a temperatura, mas não tivemos intercorrências", diz. Após o pouso, elas fizeram mais uma rápida viagem de carro até entrar no parque. "Quando elas chegaram, uma coisa que me chamou a atenção foi como elas ficam juntinhas, grudadas uma na outra. E elas continuam muito próximas", observa Develey. Desde então, a dupla é monitorada numa habitação provisória o tempo todo por uma equipe de veterinários, biólogos e outros profissionais. Aos poucos, a alimentação delas foi modificada da papinha para as sementes que a espécie tanto aprecia. "Elas estão super independentes, se alimentam, tomam banho de sol e fazem todas as atividades habituais das rolinhas", destaca Bosso. Agora, os responsáveis pelo Parque das Aves estão finalizando o viveiro onde os filhotes — que acabam de completar dois meses de vida — vão viver de forma definitiva. E são muitos os detalhes envolvidos na construção desse local. "Uma das coisas que aprendemos nos workshops com especialistas é que muitas rolinhas morrem em cativeiro ao se chocarem com as telas dos viveiros. Para evitar isso, foi instalado um tecido maleável e suave, que evita esse tipo de acidente", detalha a médica veterinária. Por fora, o viveiro também conta com outra tela mais rígida para evitar a entrada de espécies predadoras. Ao redor da moradia das rolinhas-do-planalto, foi instalado um fosso com água, para impedir a entrada de formigas no recinto. Até o chão conta com um aquecimento especial, para imitar o clima da região de onde elas vieram. "O teto que instalamos é retrátil, para permitir que as aves tomem sol e chuva. Também trouxemos o terreno arenoso do local e as plantas típicas do habitat delas", acrescenta ela. Mas por que foi necessário criar um projeto desse tamanho para manter a rolinha-do-planalto em cativeiro? Develey explica que, quando o número de indivíduos de uma espécie está muito baixo, preservar o local em que ela habita não basta. "No último censo, só observamos 15 rolinhas-do-planalto na natureza. Nesse caso, apenas manter o habitat não é suficiente. Precisamos manejar esse problema com o auxílio da biologia reprodutiva", diz. A proposta dos especialistas, então, é criar uma espécie de reserva dessa ave em cativeiro. Os dois filhotes que acabaram de chegar em Foz do Iguaçu são os primeiros — e a ideia é mandar outros na próxima temporada de primavera/verão. "Planejamos retirar mais ovos no início da postura, sem prejudicar as aves na natureza", pontua Bosso. Com isso, os pesquisadores esperam no futuro conseguir que esses indivíduos gerem descendentes no próprio viveiro do Parque das Aves. Isso permitirá que, um dia, após muitos anos de trabalho, as rolinhas-do-planalto criadas em cativeiro sejam reintroduzidas de novo na natureza. Para Develey, essa ave rara tem todas as qualidades para virar uma bandeira em prol da conservação do Cerrado. "Metade desse bioma já foi perdido, o que ajuda a explicar a quase extinção da rolinha-do-planalto", lamenta. "Essa espécie é rara justamente porque boa parte do ambiente que ela habita não existe mais e foi transformado em terras agrícolas", complementa. Já Bosso destaca que toda a história dessa espécie representa um fio de esperança. "A rolinha-do-planalto pode inspirar as pessoas a entenderem que nem tudo está perdido e é possível fazer alguma coisa em prol do meio ambiente e de uma relação mais harmônica com os animais e a natureza."
2023-04-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl52ng1598zo
brasil
Carta escrita à mão por detento ajuda a provar inocência de homem preso por roubo: 'Um pesadelo em vida'
Dois anos. Esse foi o tempo que o analista de pricing Vinicius Villas Boas, 37, ficou preso em regime fechado no Centro de Detenção Provisória de São José do Rio Preto (SP) após ser condenado por roubo a uma residência em 2016. No entanto, no último dia 21 de março, a Justiça reconheceu que Villas Boas foi preso injustamente e que ele não era um dos autores do crime, decidindo pela sua absolvição. O reconhecimento da inocência do analista de pricing só veio depois que um detento, que cumpria pena no mesmo local, escreveu uma carta à mão apontando os verdadeiros culpados pelo assalto. A reviravolta no caso trouxe alívio para Villas Boas e para o advogado Nugri Campos, que já tinha esgotado todos os argumentos para tentar convencer a Justiça de que as provas do inquérito eram frágeis e não comprovavam a participação do analista no crime. Segundo o processo, que foi transitado e julgado, no dia 17 de fevereiro de 2016, um homem de 51 anos foi feito refém por três assaltantes ao chegar em sua residência, em José Bonifácio, interior de São Paulo, e flagrar o trio furtando diversos objetos do local. No boletim de ocorrência, o morador relatou que foi amarrado e trancado no banheiro, enquanto os bandidos fugiram levando R$ 1,2 mil em dinheiro, um cordão de ouro, um celular e dois perfumes avaliados em R$ 1,4 mil. Na ocasião, a vítima relatou à polícia ter visto um veículo Gol cinza perto da casa dele. Fim do Matérias recomendadas Dias depois, outra residência nas proximidades foi furtada. Imagens das câmeras de segurança do local flagraram que os bandidos usaram um carro Gol cinza, com as mesmas características, durante o crime. A semelhança fez com que a Polícia Civil acreditasse que os crimes foram cometidos pelo mesmo grupo e passasse a investigá-los em conjunto. As investigações apontaram que o veículo pertencia a um morador de Mendonça, cidade com pouco mais de 5 mil habitantes, a 22 quilômetros de onde os crimes foram cometidos, e um dos suspeitos seria Villas Boas – que havia se mudado de São Paulo para a cidade com a esposa e o filho pequeno. A foto de Villas Boas foi apresentada para a vítima do assalto e o homem teria o reconhecido como um dos homens que invadiram a sua casa e praticado o roubo. Outra prova da suposta participação de Villas Boas usada pela Justiça foram as imagens das câmeras de segurança da casa onde foi registrado o segundo crime. Nelas era possível ver um homem pardo caminhando do outro lado da rua um dia antes do crime. Para a polícia, esse homem era o analista de pricing. "As imagens são de qualidade ruim e não é possível identificar o homem que aparece nelas. Além disso, tínhamos um álibi, no dia e hora dos crimes, o Vinicius estava trabalhando como pintor em uma obra, inclusive o patrão dele da ocasião foi ouvido na audiência e confirmou que Vinicius estava trabalhando com ele. Também pedimos a quebra do sigilo telefônico para mostrar a geolocalização do Vinicius no dia do crime, mas o pedido foi negado pela Justiça", detalha o advogado. Villas Boas foi então condenado a cumprir nove anos de prisão. Após recorrer em todas as instâncias tentando provar a sua inocência e a inconsistência das acusações, a pena foi reduzida para sete anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Foi trabalhando no Centro de Detenção Provisória (CDP) servindo comida aos demais presos e ajudando na limpeza do local que Villas Boas conheceu um detento que também era de Mendonça, conhecia os verdadeiros autores dos crimes e sabia que o analista havia sido preso injustamente. "Um dia esse detento me chamou e perguntou a minha história, o porquê de eu estar preso. Após contar, ele disse que sabia da minha inocência e que havia pedido para os verdadeiros autores se entregarem, porque na lei do crime eles não admitem que um pai de família levasse a culpa, mas como isso não aconteceu, ele iria me ajudar", recorda o analista. Para provar a inocência de Villas Boas, o detento escreveu uma carta à mão relatando tudo o que sabia sobre o caso e apontando quem seriam os autores dos crimes. "Eles falaram que foram eles que fizeram o roubo e que eles nem sabem como que o Vinicius foi enquadrado nesse BO. Eles falaram que não iam assumir nada, mas eles assumiram o BO perante eu, pessoalmente", diz um trecho da carta. Após anexar a carta ao processo, o detento foi ouvido formalmente em uma audiência online e confirmou que o analista havia sido confundido com o verdadeiro criminoso. "Foi aquela luz no fim do túnel porque todos os nossos recursos já haviam se esgotado. Mas com o surgimento de uma nova prova, o processo foi reaberto para uma nova análise", diz Villas Boas. As novas provas foram analisadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que reconheceu a inocência de Villas Boas. "Inexistindo provas produzidas em juízo para afiançar a autoria do fato, estando a condenação do peticionário fiada em prova nula e vazia e havendo prova de sua inocência, resta a esta Relatoria deferir o pedido revisional para absolver Vinícius Silva Villas Boas", diz trecho do acórdão. O analista ainda responde ao processo sobre o furto ocorrido uma semana depois do roubo. A primeira audiência para reavaliar o caso está marcada para o dia 16 de maio e será realizada virtualmente. "Eu jamais imaginei que um dia estaria em uma cadeia. Estar em meio a criminosos, em uma cela, ouvir o barulho dos cadeados e portões batendo, foi um pesadelo em vida", recorda Villas Boas. Villas Boas e a esposa, na época grávida do primeiro filho do casal, moravam em São Paulo e se mudaram para o interior do Estado, em 2013, em busca de fugir da violência dos grandes centros. Na época em que foi preso, o analista estava prestes a inaugurar uma pizzaria na cidade e os planos foram interrompidos. "Havíamos vendido nossa casa em São Paulo e comprado uma residência no interior. Tínhamos feito um curso de pizzaiolo, investido parte do nosso dinheiro em um forno e equipamentos para dar início ao nosso negócio. Mas assim que recebi a liberdade condicional já voltamos para a capital, tive muito medo de continuar no interior", relata. "Você receber uma condenação sem ter feito nada, sem dever, é horrível. Ali caiu meu mundo, foi muito doloroso, ali eu pensei que estava tudo perdido. É um sentimento de dor, incapacidade e injustiça", acrescenta. Há três anos Villas Boas trabalha como analista de pricing em uma startup e tenta recomeçar a vida. "É realmente recomeçar do zero porque todo o dinheiro que tínhamos foi gasto tentando provar a minha inocência. Agora, com a absolvição é vida nova, porque é muito triste você ser culpado por algo que não fez, isso atrapalha em todos os campos da vida. Só quero continuar trabalhando", diz. Segundo o advogado Nugri Campos, o homem apontado na carta como sendo o verdadeiro autor do roubo com quem Villas Boas teria sido confundido ainda não foi investigado. Outros dois suspeitos citados foram absolvidos em primeira instância por insuficiência de provas e um terceiro foi condenado na mesma época de Villas Boas. A reportagem da BBC News Brasil questionou a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo sobre o erro envolvendo a prisão indevida de Villas Boas, que explicou que os procedimentos adotados pela Polícia Civil obedeceram às regras processuais. "O caso foi investigado pela Delegacia de José Bonifácio, que analisou todos os elementos apresentados para fundamentar a sua decisão pelo indiciamento e prisão do suspeito, tanto que o homem foi denunciado pelo Ministério Público e condenado pela Justiça, em primeira instância. O inquérito policial foi concluído e relatado em julho de 2017 para análise do Poder Judiciário, e não retornou mais à delegacia", disse o órgão em nota. A SSP não deu detalhes de como está a investigação do caso após a absolvição de Villas Boas. Já o Tribunal de Justiça de São Paulo disse que não se manifesta sobre questões jurisdicionais. "Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente", diz a nota.
2023-04-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxwp8wwz0k9o
brasil
Por que Brasil enfrenta julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) inicia nesta quarta-feira (26/4) a audiência pública que julgará o Brasil por possíveis violações de direitos humanos contra as comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão. O caso está relacionado à instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), base de lançamentos de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB), e à remoção de mais de 300 famílias da região onde o projeto foi construído na década de 1980, durante o regime militar. O julgamento deve se estender até a quinta-feira (27) e acontece após uma denúncia apresentada por representantes das comunidades afetadas e entidades da sociedade civil em 2001. A Corte é uma instituição autônoma ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem como objetivo aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. É um dos tribunais regionais de proteção dos direitos humanos, ao lado do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Fim do Matérias recomendadas A audiência pública acontecerá de forma presencial na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago, mas será transmitida pelas redes sociais. Entenda a seguir quais foram as consequências do caso, quais são as acusações contra o Brasil e qual a posição oficial do governo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O conflito na região remonta à década de 1980, quando a base começou a ser construída durante o governo do general João Figueiredo. Município com 22 mil habitantes a cerca de 100 km de São Luís, Alcântara fica numa península com localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites. Próximo à linha do Equador, o centro - inaugurado pela Força Aérea Brasileira (FAB) em 1983 - possibilita uma economia de até 30% no combustível usado nos lançamentos. A construção, porém, levou um território de 52 mil hectares a ser declarado como de “utilidade pública”, segundo a CIDH. Parte dessa área era habitada por 32 comunidades quilombolas que foram realojadas em sete "agrovilas" concebidas pelos militares. E as disputas territoriais seguem até hoje. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades. O quilombola Nonato Masson, advogado do Centro de Cultura Negra do Maranhão, afirmou à BBC Brasil que os quilombos de Alcântara viveram sem interferências externas de 1700 até o início da construção do centro de lançamentos. A principal violação denunciada pelas organizações sociais e representantes locais é a remoção de 312 famílias quilombolas para a construção da base, a qual a CIDH se referiu como “usurpação do patrimônio coletivo” das comunidades. A Corte também analisa a questão da titularidade do território - concessão do direito de posse de uma área - e da reparação às comunidades. A Constituição Federal de 1988 assegura o direito aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras, à propriedade definitiva de seus territórios. Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras. O caso chegou ao tribunal internacional após organizações peticionarem a denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também ligada à OEA. O órgão recomendou em duas ocasiões ao Estado brasileiro que fosse feita a titulação do território, a reparação financeira dos removidos e um pedido de desculpas públicas. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), chegou a publicar um relatório apontando que mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados em favor dos quilombolas, mas o processo não foi encaminhado. Como as recomendações não foram cumpridas, a Comissão levou o caso à Corte em janeiro de 2022. Há ainda mais um ponto que deve ser discutido: a realização de consultas públicas para efetuar novos deslocamentos de comunidades na região ou fazer obras de ampliação da base aérea. Esse tópico tem relação principalmente com um projeto de expansão da CLA, incentivado por um acordo entre Brasil e Estados Unidos assinado em 2019. Apoiadores da proposta afirmam que seria de grande importância para ampliar o aproveitamento da base, que no passado foi pouco utilizada, e desenvolver o setor no país - mais recentemente o centro passou a negociar a operação de lançamentos comerciais. Mas segundo Servulo Borges, militante do movimento quilombola de Alcântara afirmou à BBC, a ampliação estudada desde os anos 2000 poderia levar ao despejo de mais de 40 comunidades da região. Na audiência pública serão ouvidos representantes quilombolas e moradores da região, além de especialistas na área, indicados tanto pelos denunciantes como pelo Estado brasileiro. Segundo as organizações que apresentaram a denúncia à Comissão, a instalação da base alterou intensamente o modo de vida e as práticas culturais das comunidades. “Nas sete agrovilas nas quais as comunidades foram reassentadas, elas sofreram uma alteração dos costumes e práticas atuais e são até os dias atuais privadas de condições adequadas de vida, com a falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social”, afirmaram as instituições quilombolas e de outros setores da sociedade civil em um comunicado divulgado à imprensa. Os denunciantes também se queixam da falta de iniciativas de reparação ou reconhecimento da propriedade do território. “O governo brasileiro teve diversas oportunidades de reconhecer e reparar as violações, mas não o fez. Os Quilombos de Alcântara ainda não contam com títulos de propriedade coletiva sobre os seus territórios tradicionais”, dizem. Danilo Serejo, quilombola e representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), uma das organizações envolvidas no processo, afirma também que mesmo as famílias que não foram deslocadas em um primeiro momento tiveram suas vidas afetadas. Por isso a compensação buscada é para todas as comunidades locais. “A área desapropriada alcança mais de 150 comunidades. Mas além das pessoas deslocadas na década de 1980, outras muitas perderam os direitos sobre suas terras e vivem há mais de 40 anos em uma situação de incerteza, sempre com o temor de serem despejadas”, afirmou à BBC Brasil. Serejo explica ainda que o objetivo das instituições denunciantes não é encerrar as operações da base ou obrigar o centro a se retirar da região, mas garantir o direito de propriedade e que as comunidades quilombolas tenham voz em projetos futuros envolvendo suas terras. “Ninguém está pedindo que a base seja retirada do município, mas é preciso que se discuta formas de compensação. Nosso entendimento é de que a base está no nosso território e não o contrário”, diz. Em nota enviada à reportagem, a Força Aérea Brasileira (FAB), responsável pela base, afirmou que há no caso uma “sobreposição geográfica de duas políticas públicas”. “Uma voltada ao atendimento do direito constitucional relacionado ao reconhecimento de propriedade e titulação das comunidades remanescentes de quilombos, e outra voltada às demandas por um espaço-porto brasileiro”. A Aeronáutica afirmou ainda que o assunto foi objeto de conciliação na Câmara de Conciliação da Administração Federal (AGU) em 2009, porém o resultado desse trabalho não foi implementado até a presente data. “A demora do Estado Brasileiro nesse processo ensejou a submissão das reivindicações da comunidade supostamente afetada àquela egrégia Corte”, diz. “A Força Aérea Brasileira, enquanto Instituição que compõe a República Federativa do Brasil, está trabalhando conjuntamente com as demais Instituições envolvidas (MRE, AGU, MDHC, MIR) no processo de defesa do Estado Brasileiro perante à Corte IDH e reitera o firme propósito de alcançar um resultado que atenda, de forma equilibrada, os direitos das comunidades quilombolas de Alcântara e as necessidades do Programa Espacial Brasileiro, o qual certamente trará benefícios socioeconômicos para todo o município de Alcântara e região.” Já a Advocacia-Geral da União (AGU) anunciou nesta quarta que irá coordenar um grupo de trabalho interministerial, criado por decreto pela Presidência, para encontrar soluções que viabilizem a titulação e o funcionamento da base ao mesmo tempo. "O grupo deverá apresentar em no máximo um ano um relatório com as propostas de solução para a titulação. O documento será então submetido à Casa Civil para aprovação e, em seguida, para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que deverá publicar a portaria de reconhecimento do território das comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara", diz a nota divulgada pela AGU. A BBC Brasil também entrou em contato com o Ministério de Povos Indígenas e o Ministério da Defesa, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
2023-04-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gp304j1pgo
brasil
O que é o acordo Mercosul-UE e por que Lula quer ajuda da Espanha
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua comitiva permanecem pouco mais de 24 horas em Madri, na Espanha, com um objetivo claro em mente: contar com o lobby do governo espanhol para concluir, de uma vez por todas, o acordo Mercosul-União Europeia. Isso porque, em julho, a Espanha assume a presidência do bloco comum europeu. O acordo, que o governo brasileiro já anunciou querer concluir até a metade deste ano, foi assinado em 2019, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), após 20 anos de negociações. Apesar disso, ainda está em fase de revisão entre os países dos dois blocos e há divergências. Entre os entraves, está a questão ambiental, liderada pela França. Fim do Matérias recomendadas Os franceses insistem que o tratado não deve ser implementado sem garantias "sólidas" sobre o cumprimento do Acordo de Paris, o tratado mundial sobre as mudanças climáticas. Mas nos bastidores fontes afirmam se tratar de uma desculpa para o protecionismo agrícola — como o Brasil é grande produtor de alimentos agrícolas, produtores franceses temem concorrência desfavorável em um cenário de eliminação de tarifas. Se a isenção de tributos é, sem dúvida, um ponto de discórdia, também é o maior benefício do acordo — quando entrar em vigor, será o maior tratado de livre comércio do mundo, englobando 32 países, com 780 milhões de pessoas e um Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços) combinado de US$ 20 trilhões (R$ 100 trilhões). Para entrar em vigor o acordo de livre comércio tem que ser ratificado por todos os 27 países membros da União Europeia. Lula falou sobre o acordo em encontro com empresários em Madri. O petista disse que "o Brasil e os outros países do Mercosul (Argentina, Paraguai e Uruguai) estão engajados no diálogo para concluir as negociações com a União Europeia e esperamos ter boas notícias ainda este ano. É um acordo muito importante para todos e queremos que seja equilibrado e que contribua para a industrialização do Brasil". Apesar de o acordo União Europeia-Mercosul ser o principal assunto na mesa de negociações, a Ucrânia é o tema que vem sendo mais destacado pela imprensa espanhola, depois das falas polêmicas de Lula. O petista já repetiu em Madri o que falou em Portugal: que condena a invasão russa da Ucrânia, mas que busca uma solução pacífica para o conflito. Em Portugal, Lula tentou amenizar as declarações que deu em Abu Dhabi, quando voltava de viagem à China, equiparando Rússia e Ucrânia e acusando Estados Unidos e União Europeia de contribuir para o prolongamento do conflito. Após visita de cinco dias a Portugal, Lula chegou a Madri, na Espanha, na tarde de terça-feira (25/4). Na capital espanhola, ele participou do encerramento do Fórum Empresarial Brasil-Espanha, ao lado da ministra de Assuntos Econômicos e de Transformação Digital espanhola, Nadia Calviño. Nesta quarta-feira (26/4) pela manhã, Lula se encontra com Pedro Sánchez, presidente do governo da Espanha (cargo equivalente ao de primeiro-ministro) no Palácio Moncloa, sede da presidência do governo e residência oficial de Sánchez. Na sequência, almoça com o rei Felipe 6º no palácio real. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite desta quarta-feira.
2023-04-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjj9l98dlx1o
brasil
Lula critica 'saudosos do autoritarismo' em fala no Parlamento português marcada por protestos
A presença de Lula no Parlamento de Portugal nesta terça-feira (25/4) refletiu, dentro e fora do Legislativo luso, a polarização observada no Brasil. No interior do edifício, onde Lula discursava, deputados da direita radical tumultuavam a fala do brasileiro. Já parlamentares de esquerda aplaudiam constantemente as intervenções do petista. Do lado de fora, centenas de manifestantes protestavam a favor e contra Lula em locais diferentes — uma medida da polícia para evitar confrontos. Os dois grupos estavam separados por cerca de 250 metros, de lados opostos no entorno da Assembleia da República (AR), o Parlamento português. O policiamento foi reforçado e barreiras impediam qualquer contato entre eles. Lula discursou no Parlamento em uma sessão de boas-vindas, antes da sessão principal, no dia da comemoração da Revolução dos Cravos, que marca o fim da ditadura portuguesa. A fala de Lula já havia causado polêmica antes mesmo de acontecer (ler mais abaixo). Fim do Matérias recomendadas Enquanto o petista falava, os 12 deputados do Chega, partido da direita radical que se tornou a terceira maior força política de Portugal nas últimas eleições legislativas, ficaram de pé, segurando cartazes com a bandeira da Ucrânia e com a frase "chega de corrupção". Também bateram nas mesas e fizeram barulho para atrapalhar o discurso de Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar das interrupções, o petista se aproveitou do contexto da Revolução dos Cravos para defender a democracia no Brasil. "A democracia no Brasil viveu recentemente momentos de ameaça. Saudosos do autoritarismo tentaram atrasar o relógio em 50 anos e reverter as liberdades que conquistamos. Os portugueses assistiram a tudo, preocupados com a possibilidade de que o Brasil desse as costas ao mundo", disse. Também voltou a falar sobre a Guerra da Ucrânia e pediu paz, criticando soluções militares. O tema marcou o início de sua viagem a Portugal. "Quem acredita em soluções militares para os problemas atuais luta contra os ventos da história. Nenhuma solução de qualquer conflito, nacional ou internacional, será duradoura se não for baseada no diálogo e na negociação política", declarou. Ele ainda voltou a condenar a violação à integridade territorial ucraniana pela Rússia. Declarações recentes do petista causaram polêmica, quando Lula, em visita a Abu Dhabi ao retornar da China, equiparou Rússia e Ucrânia, além de acusar Estados Unidos e União Europeia de contribuirem para o prolongamento do conflito. A manifestação contra Lula foi convocada pelo líder do Chega, o deputado André Ventura, apoiador declarado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Ventura prometeu que seria a "maior manifestação da história contra um líder estrangeiro". O protesto, de fato, reuniu algumas centenas de pessoas, mas ocupava menos de um quarteirão nas proximidades do Parlamento português. Questionados pela BBC News Brasil, policiais não souberam estimar o número de manifestantes. Por outro lado, o clima era de revolta e os manifestantes, estridentes gritavam palavras de ordem contra Lula, como "Lula, ladrão, seu lugar é na prisão", e seguravam cartazes contra o presidente brasileiro, com dizeres como "Tolerância zero à corrupção". Entre eles estava a brasileira Cristiane Farias, natural de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, que já mora há 20 anos em Portugal. Ela disse ser apoiadora de Bolsonaro e Ventura. "Esse bandido está aqui gastando dinheiro do povo. Lula, ladrão, seu lugar é na prisão", disse ela à BBC News Brasil. Já o português Alex Oliveira diz ter vindo de Coimbra, a 200 km de Lisboa, para protestar contra Lula e o acusou de corrupção. "Se Lula roubou, seu lugar é na prisão", afirmou. No entanto, em meio aos apoiadores do Chega, maioria absoluta no protesto, havia aqueles que não concordavam com a pauta que motivou a manifestação. José Inácio Faria, presidente do Conselho Nacional do MPT (Partido da Terra), um partido verde de tendência conservadora, disse estar protestando contra a presença de Lula, mas por ocasião de sua presença no Parlamento português no dia da Revolução dos Cravos. "Este é o dia da liberdade. É o dia dos portugueses. Não podemos aceitar uma intromissão destas num ato que é genuinamente português. O presidente do Brasil tem toda a legitimidade de vir a Portugal e receber todas as honrarias; merece, com certeza, mas não no dia 25 de abril. Este dia é nosso", disse ele. "Isso é uma conspurcação. É uma vergonha", acrescentou. Segundo ele, Lula "não defende os mesmos valores que nós defendemos na Europa. A União Europeia e os Estados Unidos defendem a Ucrânia. Não podemos aceitar que um presidente de uma potência regional como o Brasil tenha dito o que disse em relação à Ucrânia, que é um Estado soberano". "Não podemos aceitar um presidente de uma república federativa que deveria ser nosso irmão venha espalhar o ódio e a maledicência em relação aos ucranianos. E colocar-se ao lado da Federação Russa, que é o invasor. Hoje é o dia da liberdade", acrescentou. "Não é porque ele foi preso ou não está mais preso, não temos nada a ver com isso", finalizou. A cerca de 200 metros dali, brasileiros e portugueses se manifestavam a favor de Lula, mas em menor número. Uma delas era Evones Santos, de Rondônia, que mora há 20 anos em Portugal e é integrante do Núcleo do PT, além de coordenadora do Comitê Popular de Mulheres da sigla. "Vim protestar porque, em primeiro lugar, estou defendendo a democracia, independentemente de estar no Brasil ou em Portugal. Penso que é uma obrigação nossa combater o fascismo que é uma ideologia que vai contra os direitos humanos", disse. "Em segundo lugar, porque acredito no governo do presidente Lula, que representa a maioria, a diversidade do povo brasileiro e a democracia", acrescentou. A presença de Lula no Parlamento português havia causado polêmica antes mesmo de seu discurso. Lula seria o primeiro chefe de Estado estrangeiro a discursar no Legislativo luso por ocasião da comemoração da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura em Portugal. A participação do petista chegou a ser anunciada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho, em visita ao Brasil. "É a 1ª vez que um chefe de Estado estrangeiro faz um discurso nesta data", disse Cravinho em entrevista a jornalistas em Brasília. Mas partidos de oposição, como PSD, IL e Chega, se manifestaram contra o convite e, após uma reunião entre lideranças políticas, chegou-se a um consenso de que Lula discursaria, mas numa sessão solene de boas-vindas, à parte das comemorações da Revolução dos Cravos. Lula deixou o Parlamento português logo depois de discursar e foi direto para o aeroporto, onde viajou para Madri, na Espanha, última parada de sua viagem à Europa. Na tarde desta terça-feira, ele se encontra com lideranças sindicais espanholas. Na quarta-feira (26/4), são esperados encontros com o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, e o rei do país, Felipe 6º. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite do mesmo dia.
2023-04-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwpge8wpjo
brasil
Como foi a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura em Portugal
Já passava da meia-noite do dia 25 de abril de 1974 quando a canção Grândola, Vila Morena, do cantor e compositor português Zeca Afonso, foi transmitida pela Rádio Renascença. Proibida pela ditadura que governava o país por sua alusão ao comunismo, era o sinal que civis e militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) aguardavam para iniciar o levante que colocaria fim a 48 anos de ditadura fascista e a 13 anos de guerras coloniais em Portugal, quase sem derramamento de sangue. Começava a Revolução dos Cravos — chamada dessa forma, pois a população distribuía cravos vermelhos a vários soldados dissidentes, que os enfiavam nos canos de suas armas. O levante, rápido e pacífico, foi orquestrado por cerca de 200 capitães e majores e encerrou um dos regimes autoritários mais longos do século 20, em sua grande parte encabeçado pelo ditador António de Oliveira Salazar, de inspiração fascista. Na época, Portugal passava por uma grave crise econômica e enfrentava guerras de independência em suas colônias na África. Fim do Matérias recomendadas O salazarismo também perdia força desde a morte de Salazar, em 1970, dois anos depois de ser afastado do poder após sofrer um AVC — sendo substituído pelo jurista Marcelo Caetano. Como Portugal recusava-se a aceitar a independência de suas colônias, surgiram grupos guerrilheiros em Moçambique, Guiné-Bissau e Angola. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A contragosto, as forças armadas portuguesas foram enviadas ao continente africano e obrigadas a combatê-los. Os conflitos se estenderam por 13 anos e foram muito sangrentos. Estima-se que 10 mil soldados portugueses e 45 mil civis morreram. Para se ter uma ideia, durante o período, quase metade do orçamento de Portugal passou a ser destinado ao setor militar; a imensa maioria das famílias possuíam parentes enviados às guerras coloniais. A crise econômica e os desgastes nas guerras coloniais começaram, então, a gerar grande insatisfação nas forças armadas e na população, levando ao aparecimento de movimentos contra a ditadura. Além disso, como no Brasil, partidos e movimentos políticos eram proibidos, e diversos líderes oposicionistas estavam na prisão ou no exílio. A ideia de organizar o levante partiu dos oficiais Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, enquanto trocavam um pneu furado. "Quando retornávamos de uma de nossas primeiras reuniões, tivemos um pneu furado e o trocamos. Eram duas da madrugada, mais ou menos, quando disse a Otelo que não íamos solucionar nada com requerimentos e papéis, que devíamos dar um golpe de Estado e convocar eleições. Ele me olhou e disse: 'Mas você também pensa assim? Esse é meu sonho!'", contou Lourenço em entrevista à agência de notícias EFE. Curiosamente, o MFA foi autorizado pelo governo de Marcelo Caetano, o que os permitiu atuar dentro de certa legalidade. "Essa estrutura permitiu nos organizar e reunir, não dissemos abertamente que íamos conspirar contra o governo e dar um golpe de Estado, embora no fundo o propósito era derrubar o fascismo e a ditadura", explicou Lourenço. Com a queda do regime militar, as liberdades civis e democráticas foram retomadas e outros direitos conquistados, como o de votar. Os países africanos passaram por processos de independência e uma nova Constituição entrou em vigor em Portugal. A Revolução dos Cravos também teve grande impacto na cultura do país, com a derrocada do moralismo rígido da ditadura. Afastado do poder, Marcelo Caetano foi enviado já no dia seguinte para a ilha da Madeira. Depois viveu no Brasil e morreu, em outubro de 1980, exilado no Rio de Janeiro. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), havia sido convidado para fazer um discurso no Parlamento português, a Assembleia da República, em evento comemorativo pelo aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos. A participação do petista chegou a ser anunciada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho, em visita ao Brasil em fevereiro deste ano. "É a 1ª vez que um chefe de Estado estrangeiro faz um discurso nesta data", disse Cravinho em entrevista a jornalistas em Brasília. Mas partidos de oposição, como PSD, IL e Chega, se manifestaram contra o convite e, após uma reunião entre as lideranças políticas portuguesas, chegou-se a um consenso de que Lula discursaria, mas numa sessão solene de boas-vindas, à parte das comemorações da Revolução dos Cravos. Confira a letra de Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso. Grândola, Vila Morena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade Dentro de ti, ó cidade O povo é quem mais ordena Terra da fraternidade Grândola, Vila Morena Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade Grândola, Vila Morena Terra da fraternidade Terra da fraternidade Grândola, Vila Morena Em cada rosto igualdade O povo é quem mais ordena À sombra duma azinheira Que já não sabia a idade Jurei ter por companheira Grândola a tua vontade Grândola a tua vontade Jurei ter por companheira À sombra duma azinheira Que já não sabia a idade
2023-04-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51gyremkk3o
brasil
Quem é o adolescente alagoano que produz capas de séries de sucesso na Netflix
Gabriel Pereira Santos, 16, só queria fazer thumbnails legais para seu canal de Minecraft no YouTube quando descobriu o interesse por design gráfico. Tinha 12 anos e usou a plataforma de vídeos como sua professora. Sequer tinha computador: era tudo no celular que dividia com sua mãe, a dona de casa Carla Daniella Pereira Santos. É claro que a maioria dos talentos não são descobertos sem qualquer esforço ou ajuda e, por isso, o menino passava horas tentando aprender e a executar aquelas tarefas na pequena tela do aparelho. Começou com a thumbnail, aprendeu cartões de visita, cardápios e fez serviços para familiares sob pequenos pagamentos. Ganhou, por exemplo, uma lasanha de uma prima que havia recém aberto um restaurante. Mal imaginava que, dali a quatro anos, estaria contratado pelo studioFREAK, empresa argentina que tem em seu portfólio a Netflix como cliente. Gabriel ganhou destaque por conta disso: o menino da periferia que trabalhava para a gigante do streaming. Fim do Matérias recomendadas A matéria publicada pelo Jornal de Alagoas o alçou a estrela municipal. Foi procurado para entrevistas e recebeu mensagens de apoio para que seguisse o caminho. "Faz quase um ano que fiz meu primeiro contato com a empresa. Eu já fazia alguns trabalhos e fui publicando numa plataforma, sempre curtindo e comentando os conteúdos de estúdios que eu achava legais. Esse me respondeu e eu fiquei sem acreditar. ‘Poxa, é isso mesmo?’. Fiz um teste, já com um documentário da Netflix, eles gostaram e desde então estou prestando serviço", contou. Ele fez as artes dos filmes Que Culpa Tem o Carma?, O telefone do Sr. Harrigan, Em todas partes e A vida de togo e das séries El Rey e Gol contra. O processo parece simples: o estúdio envia algumas imagens e um briefing do assunto para que a arte possa ser criada. O processo dura dias, mas Gabriel fica com vontade de vê-lo materializado o quanto antes. "Eu acordo às 5h, vou para a escola, volto para casa umas 12h, almoço e já corro para o quarto para começar a fazer o trabalho. Começo nesse horário e vou até 21h, 22h. Meus pais até chamam, mas eu quero é ver como vai ficar aquilo que estou criando. Antigamente, eu ia até a madrugada, mas hoje estou fazendo isso com menor frequência". Sob a chamada de vídeo, o quarto de Gabriel era a construção do seu objetivo. Uma cadeira confortável, uma bicicleta, porta fechada e tudo iluminado por uma forte luz vermelha, com teclado igualmente retroiluminado, além de um monitor grande. Nem sempre foi assim. Aquele computador foi um dos primeiros investimentos que ele próprio conseguiu fazer na profissão. O primeiro, porém, veio do próprio pai. Maurilio Marcos Pereira Santos, preparador de tintas em uma empresa local, viu logo cedo que o filho tinha interesse e, para ajudá-lo a continuar os estudos na área, substituiu o celular da mãe por um notebook ainda inicial, mas que aguentou a correria. "Um dia, ele me chamou para ir ao shopping comprar um notebook. Fomos, escolhemos o que podíamos, que nem tinha muita potência, e trouxemos para casa. Passei a assistir a ainda mais vídeos, a conhecer os programas de edição que uso até hoje. O YouTube me ensinou tudo e fui aprimorando. Comprei essa máquina atual peça por peça porque o notebook já não aguentava mais. Estava travando muito", disse, aos risos. O fiel companheiro continua em casa. "Como nossa televisão não é smart, o notebook se tornou o nosso conversor. É só usar um cabo HDMI e o problema está resolvido." Gabriel não é muito fã de assistir a séries e filmes. Embora às vezes receba episódios para produzir as peças, quase nunca "perde tempo" com esse tipo de diversão. Quer mesmo é ficar no computador, onde sente que pode mudar a sua própria vida e a vida de sua família. "Quando eu comecei a ser pago, meu pai achava que era só uma brincadeira. Eu não tinha conta no banco, então pedi a dele e ele começou a receber esses valores. Ficou surpreso porque ele só me via ali no quarto, trabalhando quietinho. Sei que é motivo de orgulho para eles. E eu me orgulho em poder ajudá-los. Quando eu era mais novo, meu pai e minha mãe garantiam a nossa sobrevivência. Hoje posso dizer que, juntos, garantimos isso." Gabriel ainda tem uma irmã mais nova, de 11 anos, chamada Gabrielly. A pandemia abriu os caminhos para que Gabriel crescesse ainda mais no mercado. As aulas da rede estadual em todo o país tiveram problemas e, em Alagoas, ele diz que ficou quase um ano sem ter aulas. Usou o tempo livre para aprender mais. "Meu pai dizia para eu sair do computador porque iria prejudicar minha visão", lembra, aos risos. "Ele mandava todo mundo dormir quando já era tarde e ia junto. Escondido, eu voltava para o computador e ficava lá. Ele vinha me buscar toda vez, mandando parar e tal, e eu não conseguia. A minha vontade continua a mesma hoje em dia." Gabriel diz que nunca passou por grandes dificuldades. Por ser de periferia e estudar em uma escola estadual, ele se preocupa com as questões sociais e sente que uma das suas missões é ajudar outros garotos e garotas para que consigam mudar as suas realidades a partir de trabalhos como o dele. "Na escola, fizemos uma apresentação sobre nossos sonhos para o futuro e muitos amigos meus se interessaram no que eu estava fazendo. Meu objetivo é poder repassar o que aprendi para as pessoas, seja por meio de um curso, pelo exemplo. É bom saber que o mundo também pode nos dar oportunidades. Meu outro objetivo também é parecido. Eu quero ser referência na minha área." Além dos trabalhos para o studioFREAK, Gabriel também constrói projetos com o designer Jack Usephot, uma de suas inspirações no mundo do design.
2023-04-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp3511re03jo
brasil
Eleições no Paraguai: como Brasil influencia os rumos do país vizinho
As eleições gerais que elegerão o próximo presidente do Paraguai ocorrem no dia 30 de abril. Diferentemente do Brasil, o país vizinho não conta com um segundo turno e não permite reeleição - o candidato que conseguir a maioria dos votos é eleito para um mandato único. A eleição de um novo chefe de Estado inicia um novo capítulo na história de cooperação bilateral entre Brasil e Paraguai, importante parceiro comercial do Brasil. Os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil consideram que quem quer que seja o vencedor no dia 30 de abril, os rumos das relações não devem ser alterados, mas acreditam que a relação seja intensificada pela maior proximidade que a volta de Lula ao cargo de presidente do Brasil pode oferecer aos vizinhos. Fim do Matérias recomendadas A expectativa é que Lula possa ceder, ao menos parcialmente, a acordos econômicos que beneficiem o Paraguai, sobretudo na divisão da energia gerada pela usina hidrelétrica de Itaipu. A distribuição da energia elétrica produzida pela usina hidrelétrica de Itaipu entre os dois países é tema de debate constante por parte dos paraguaios. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como o Paraguai tem uma economia muito menor que a brasileira, o país consome apenas uma parte da sua metade e vende o restante para o Brasil, por meio da Eletrobras. Por isso, o acordo atual estabelece que o Brasil receba 85% da energia gerada, enquanto o Paraguai fica com os 15% restantes. O preço que o Brasil paga pela energia excedente é considerado baixo em comparação com os valores praticados no mercado internacional de energia - e este é justamente um dos pontos centrais das eleições que ocorrem no fim de abril. “Os paraguaios falam em uma defasagem de 80% no preço. há muita conexão entre resolver Itaipu e melhorar saúde, educação e infraestrutura. Se faz uma conexão direta entre Itaipu e a capacidade do Estado paraguaio de prover bens públicos à população”, diz Pedro Feliú, professor da USP e especialista em política paraguaia. Em entrevista à rádio CBN, Peña disse que a intenção é arrecadar mais dinheiro para incrementar linhas de transmissão e distribuição e gerar empregos. “O mesmo que aconteceu no Brasil nas décadas de 70, 80 e 90 com a energia que Itaipu gerou para o Brasil. Agora o Paraguai quer o mesmo. E para isso o Paraguai tem que ter uma conversa com o Brasil, para ver como pode gerar recursos para que o Paraguai tenha força de se mover nos próximos cinco anos.” Efraín Alegre também já citou, em entrevistas, que não considera justa a divisão atual negociada com o Brasil. Pedro Feliú avalia que o episódio - e os interesses atuais do país vizinho - afastam os candidatos atuais à presidência de uma postura "entreguista". "Do ponto de vista eleitoral, tanto Efraín Alegre quanto Santi Peña não trazem um grande impacto em termos de posicionamentos nas negociações, mas não quer dizer que o resultado da negociação do Anexo C vá na direção desejada pelo Paraguai. O país precisa de investimento em linhas de transmissão em geradoras, para distribuição de energia… Então a soberania energética do Paraguai esbarra na própria infraestrutura do país." Em entrevista ao jornalista Jairo Eduardo, da CBN Cascavel, em fevereiro deste ano, o candidato Santiago Peña disse que Lula já demonstrou muita generosidade com o Paraguai no passado ao aumentar o preço da parcela cedida pelo Paraguai no acordo da usina de Itaipu - algo que, segundo ele, permitiu que os recursos fossem utilizados na educação. “A lembrança que o Paraguai tem do governo de Lula é muito boa. É com a mesma visão que nós olhamos o futuro da relação bilateral entre Paraguai e Brasil.” Pedro Brites, professor de relações internacionais da FGV (Faculdade Getúlio Vargas), aponta que é notável a predisposição que Lula teve em fazer acordos que deixaram os vizinhos satisfeitos no passado. “Nos dois primeiros mandatos, ele tentou construir relações não tão desiguais assim com o Paraguai e agora há expectativa que o Brasil reconheça que existe um abismo nas condições que o Paraguai tem para poder acessar a parte que lhe cabe dentro do acordo.” Na análise de Brites, mesmo que o Paraguai mantenha um governo mais conservador, como o do Partido Colorado, que está no poder há muito tempo e tem um viés mais de direita ou centro-direita, o país tem mais ganhos com o governo Lula, que oferece um avanço no nível de coordenação regional e no nível de integração regional. No governo Bolsonaro, lembra o professor, houveram poucas iniciativas e propostas econômicas novas que interessassem aos paraguaios, e o ex-presidente retirou o Brasil da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), decisão que foi revertida por Lula. “Eu acho que isso também se manifesta na maneira como o Brasil vem tratando o próprio tema das eleições paraguaias e defendendo a ideia de que o Paraguai tem que continuar sendo autônomo, até porque o Brasil aposta muito na construção de um Mercosul revigorado com o retorno agora recente da Unasul. Como liderança regional, espera-se que o Brasil construa um espaço de diálogo efetivo com os vizinhos, principalmente os vizinhos mais pobres, que são geralmente aqueles com quem você vai precisar construir relações mais estruturadas em torno de cooperação ou de apoio ao desenvolvimento para tentar evitar que ele se afastem do processo de integração.” “Se olharmos nossas parcerias comerciais, o Paraguai é único país do mundo que poderíamos dizer que realmente depende do Brasil”, afirma Pedro Feliú. O Brasil é o principal destino das exportações paraguaias, que enviam produtos agrícolas para o vizinho, contribuindo para o abastecimento interno de alimentos e para a exportação desses produtos para outros países. Em contrapartida, alguns dos principais produtos exportados pelo Brasil para o Paraguai são: petróleo e seus derivados, produtos químicos, veículos, máquinas e equipamentos, produtos têxteis e alimentos como carne, açúcar e café. A relação comercial entre os dois países é beneficiada pela proximidade geográfica e pela integração regional, através do Mercosul. “O que eu tenho observado da postura dos candidatos é um objetivo comum em manter as relações com o Brasil em bases positivas. O Brasil é importante demais para a economia do país, portanto, seria muito arriscado tentar construir algum tipo de transformação nesse sentido que pudesse pôr em xeque essa relação especial”, aponta Brites. Na avaliação do professor da FGV, o governo Lula precisa observar com atenção o movimento de aproximação entre Paraguai e China. “Não acho que seja uma ameaça imediata, mas o temor é que isso afaste um pouco o país vizinho das relações comerciais com o Brasil e que isso atrapalhe o Mercosul.
2023-04-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1zly2gn2po
brasil
Quem é André Ventura, líder da direita radical em Portugal que convocou manifestação contra Lula
"Lula da Silva deve ser condenado por sua proximidade com a Rússia e pela incapacidade de ver o sofrimento do povo ucraniano, contrário à diplomacia que Portugal tem feito e bem, no âmbito europeu, pela sua proximidade à China, pela sua hesitação em condenar as ditaduras sul-americanas que tanta dor, pobreza e sofrimento têm causado, mas sobretudo e acima de tudo, pelo nível de corrupção que representa." Foi assim que o deputado André Ventura, líder do partido de direita radical português Chega, descreveu o presidente brasileiro, às vésperas de sua visita a Portugal, em vídeo enviado nesta semana à imprensa do país. Ele acrescentou: "Lula é, na nossa perspectiva e na perspectiva de qualquer cidadão de centro-direita ou de direita, o pior que a política representa". Fundado em abril de 2019 por Ventura, o Chega, que se define como um partido "conservador, liberal e nacionalista", tem no discurso anti-imigrante um de seus principais alicerces e é hoje a terceira maior força na Assembleia da República (Parlamento português), com 12 deputados. A sigla realizou um protesto contra Lula no dia 25 de abril nas proximidades do Parlamento. "Lugar de ladrão é na prisão", dizia a chamada para a manifestação, que faz referência à prisão de Lula em 7 de abril de 2018 - as condenações contra o presidente foram posteriormente anuladas. A convocação do ato foi compartilhada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que descreveu a manifestação como "justa". O perfil do Chega! no Twitter respondeu ao post do parlamentar dizendo que "Lula, não é bem-vindo em Portugal!". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 13 de janeiro deste ano, em sessão no Parlamento português, Ventura chamou Lula de "bandido". Na ocasião, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva (Partido Socialista), rebateu Ventura e afirmou se tratar de "uma expressão ofensiva em relação ao presidente de um país muito amigo de Portugal". O líder do Chega replicou e disse ser "difícil se referir ao presidente do Brasil de outra forma". Ventura apoiou publicamente a reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no ano passado. Em sua manifestação de apoio, ele disse que o capitão reformado era a "escolha certa" para o Brasil. No mês que vem, em maio, Ventura deve receber Bolsonaro e o vice-primeiro-ministro da Itália, Matteo Salvini, entre outros nomes da direita em Lisboa para uma cúpula mundial organizada pelo Chega. O objetivo, segundo Ventura, é transformar Portugal num dos centros mundiais da ultradireita contra o socialismo. "A presença de Jair Bolsonaro, de Matteo Salvini e de muitos outros dirigentes da direita europeia marca Lisboa como um dos novos centros da direita mais forte da Europa e uma das referências mundiais da luta contra o socialismo", disse Ventura em outro vídeo compartilhado em suas redes sociais. "Vamos criar um evento com o objetivo ambicioso de ser um polo, uma alternativa à Conferência Conservadora que ocorre todos os anos nos EUA", acrescentou. Quando pequeno, Ventura estudou em um seminário e queria tornar-se padre. Mas mudou de ideia. Formou-se em Direito, trabalhou na Autoridade Tributária (órgão equivalente à Receita Federal) e lecionou em duas das principais universidades de Lisboa. Também foi comentarista esportivo. Atualmente, aos 40 anos, exerce mandato como deputado pelo Chega. Foi eleito pela primeira vez em 2019. Tentou se candidatar à Presidência de Portugal em 2021, sem sucesso, ficando em terceiro lugar. Por outro lado, numa demonstração clara de seu prestígio e do crescimento da extrema-direita no país, o Chega passou de partido de deputado único para a terceira maior força política nacional, elegendo 12 deputados nas eleições legislativas de janeiro de 2022. Definindo-se como "liberal a nível econômico, nacionalista e conservador", Ventura ganhou fama por declarações consideradas machistas, anticiganistas, islamofóbicas e xenofóbicas. Ventura critica o que chama de "migração sem controle" na Europa e defende um continente "de matriz cultural e cristã e de identidade, contra a imigração descontrolada". Quando se elegeu, em 2019, Ventura postou no Twitter: "Por que razão cresce o Chega nas sondagens e na rua? Porque já não é só a voz individual, os nossos desejos e as nossas ambições. O Chega é a voz de um povo inteiro farto de corrupção e de impunidade." Entre suas propostas, estão a castração química ou física a condenados por crimes de violação ou abuso sexual de menores; a prisão perpétua; e a duplicação das penas por corrupção e proibição de exercício de cargo público durante dez anos, além de agravamento de penas para crimes como violação, homicídio, terrorismo e tráfico de pessoas. "Não me parece justo que alguém que mata várias pessoas de forma aleatória, fria e por motivos fúteis possa estar cá fora ao fim de 12 anos. (...) Defendo a obrigatoriedade de trabalho para os reclusos. Quem está na prisão é porque cometeu um crime de forma voluntária então não é justo que também ele contribua para aquilo que estamos nós todos a contribuir? Alguns chamam a isto trabalhos forçados, querem chamar-lhe isso, força. Não me importo", disse ele em entrevista ao site Notícias ao Minuto em 2018. "Apesar de serem ambos crimes gravíssimos, não posso equiparar quem mata duas pessoas e quem abusa sexualmente de duas pessoas. Mas o perigo para a sociedade é muito grande e aquele tratamento químico garante que não haverá reincidência dos ímpetos sexuais para voltar a atacar", acrescentou. Seu discurso anti-imigrante foca nos ciganos e nos muçulmanos, mas poupa os brasileiros, maior comunidade de estrangeiros em Portugal atualmente, com 252 mil em situação regular, segundo os dados mais recentes do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras). Em 2017, Ventura disse que Portugal tinha "excessiva tolerância com alguns grupos e minorias étnicas". "Não compreendo que haja pessoas à espera de reabilitação nas suas habitações, quando algumas famílias, por serem de etnia cigana, têm sempre a casa arranjada. Já para não falar que ocupam espaços ilegalmente e ninguém faz nada. Quem tem de trabalhar todos os dias para pagar as contas no final do mês olha para isto com enorme perplexidade. Isto não é racismo nem xenofobia, é resolver um problema que existe porque há minorias no nosso país que acham que estão acima da lei", afirmou ele, em entrevista ao site Notícias ao Minuto. Sobre os muçulmanos, Ventura postou em 2019 em sua conta no Twitter: "Quantos paquistaneses vão ter de cortar a cabeça a mais mulheres para percebermos o real perigo que esta vaga (onda) islâmica significa para a Europa?" Em fevereiro deste ano, ele admitiu que, para o Chega, nem todos os imigrantes são bem-vindos a Portugal. "A esquerda quer um país de completas portas abertas, a esquerda tem de querer um país em que haja imigração, ate porque muitos dos nossos setores necessitam de imigração, para trabalhar e para construir economia, mas não pode ser uma imigração em que a nacionalide é completamente vendida e a porta é completamente aberta." Apelidado de "Bolsoluso" ou "Bolsonaro português", por seu alinhamento ideológico com o ex-presidente brasileiro, Ventura criticou, no entanto, os atos antidemocráticos no Brasil em janeiro deste ano. Na sessão no Parlamento português em chamou Lula de "ladrão" o líder do Chega condenou "os ataques às instituições e a violência" de 8 de janeiro, quando milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos três poderes em Brasília. Ventura tampouco exalta a ditadura militar portuguesa, diferentemente do ex-presidente brasileiro. Sobre António Salazar, ditador português durante o regime de Estado Novo, ele disse que "a República liderada pelo Dr. António de Oliveira Salazar, a maior parte do tempo, também não resolveu [os problemas do país] e atrasou-nos muitíssimo em vários aspetos. Não nos permitiu ter o desenvolvimento que poderíamos ter tido, sobretudo no quadro do pós-II Guerra Mundial. Portugal poder-se-ia ter desenvolvido extraordinariamente e ficamos para trás, assim como os espanhóis". Apesar disso, em discurso de encerramento em um congresso do Chega em novembro de 2021, Ventura apropriou-se do lema de Salazar, "Deus, pátria e família", acrescentando-lhe a palavra "trabalho", para resumir os valores em que o partido acredita. A popularidade de Ventura reflete o crescimento da extrema-direita em Portugal. Segundo um levantamento recente realizado pelo Instituto Intercampus para um grupo de jornais portugueses, as intenções de votos no partido de ultradireita saltaram de 7,2%, há um ano, para 13,5%. A BBC News Brasil solicitou entrevista a André Ventura, mas ele não retornou o pedido até a conclusão desta reportagem.
2023-04-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9r037eldw1o
brasil
O que é o prêmio Camões, entregue com atraso a Chico Buarque após recusa de Bolsonaro
Depois de quatro anos de espera, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque, de 78 anos, recebeu nesta segunda-feira (24/4) em Sintra, Portugal, o prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa. Um dos motivos da demora se deveu à recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em assinar a documentação necessária para que o artista recebesse o diploma em 2019, segundo explicou à BBC News Brasil o ministro da Cultura de Portugal, Pedro Adão e Silva. A entrega também ficou prejudicada pelo confinamento imposto pela pandemia de covid-19. Em sua fala ao receber a premiação, em um salão nobre no Palácio Nacional de Queluz, Buarque, visivelmente emocionado, fez alusão a Bolsonaro, mas não o citou nominalmente. "O ex-presidente (Bolsonaro) teve a rara fineza de não sujar o diploma de Camões, deixando o espaço em branco para a assinatura do presidente Lula", afirmou ele. Segundo Buarque, "quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas não podemos nos distrair, a ameaça fascista persiste", acrescentou. Fim do Matérias recomendadas "Recebo este prêmio menos como honraria pessoal, mas mais como desagravo pelos artistas brasileiros ofendidos por esse anos de estupidez e obscurantismo", finalizou. Falando antes de Buarque, Lula disse que o prêmio corrigia "um dos maiores absurdos da cultura brasileira dos últimos tempos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O ataque a cultura em todas as suas formas foi uma dimensão do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil. Se hoje estamos aqui para fazer essa espécie de celebração e reparação da obra do Chico é porque finalmente a democracia venceu no Brasil", disse. "Não podemos esquecer que obscurantismo e a negação das artes também foi uma marca das ditaduras. Esse prêmio é uma resposta do talento contra a censura, do engenho contra a força bruta", acrescentou Lula. Chico Buarque estreou como escritor de ficção em 1974, com a novela Fazenda Modelo. Em 1979, publicou o livro infantil Chapeuzinho Amarelo. Seu primeiro romance, Estorvo, foi lançado em 1991. Quatro anos depois, publicou o segundo, Benjamin. Em 2003, lançou Budapeste; em 2009, Leite Derramado e em 2014, Irmão Alemão. Ele escreveu as peças de teatro Roda Viva (1968); Calabar (1972, juntamente com Ruy Guerra); Gota D’Água (1974, com Paulo Pontes), e Ópera do Malandro (1978). O prêmio Camões foi criado em 1988 "com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma", segundo o Ministério da Cultura (Minc). É considerado a mais importante premiação da língua portuguesa e contempla anualmente autores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Seu nome homenageia o poeta português Luís de Camões (1524-1580), uma das maiores figuras da literatura lusófona. O ganhador do prêmio recebe 100 mil euros (R$ 555 mil), sendo metade desse valor subsidiado pela Fundação Biblioteca Nacional, entidade vinculada ao Ministério da Cultura. A outra metade é paga pelo governo português. O diploma entregue aos laureados contém o nome de todos os países lusófonos e é assinado pelos chefes de Estado de Portugal e do Brasil. A escolha é feita por um júri de seis membros, dois do Brasil, dois de Portugal e dois escolhidos em comum acordo por outros países lusófonos (Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste). O primeiro a receber o prêmio, em 1989, foi o poeta e escritor português Miguel Torga. Desde então, outros 33 escritores foram agraciados. Foram 14 do Brasil, 14 de Portugal, três de Moçambique, dois de Angola e dois de Cabo Verde (José Luandino Vieira, vencedor em 2006, é luso-angolano; ele recusou o prêmio). Entre os brasileiros laureados, estão Raduan Nassar (2016), Ferreira Goulart (2010), Lygia Fagundes Telles (2005), e Jorge Amado (1994). Devido à recusa de Bolsonaro em conceder o prêmio a Buarque, os seguintes escritores ainda não puderam recebê-lo: o português Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2020), a moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o brasileiro Silviano Santiago (2022). Primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Chiziane é a primeira africana e a primeira negra a vencer a premiação. Niketche: Uma História de Poligamia é um de seus romances mais famosos. Em declaração no sábado (22/4) em Lisboa por ocasião da abertura da 13ª Cúpula Brasil-Portugal, que já não acontecia havia sete anos, o primeiro-ministro português, António Costa, fez alusão ao prêmio Camões. Ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Costa usou a recusa de Bolsonaro em entregar a premiação como um exemplo do esfriamento das relações entre Brasil e Portugal nos últimos anos. Segundo ele, no entanto, é momento de "virar a página". "Queria sublinhar a importância do dia de hoje, em que depois de sete anos de interrupção retomamos as cimeiras (cúpulas) anuais entre Portugal e o Brasil. Retomamos estas cimeiras na segunda visita que em poucos meses o presidente Lula faz a Portugal e na primeira visita que o presidente Lula faz à Europa", disse. Costa falou da "interrupção de contatos" entre os dois países. Em sua visão, a consequência mais clara disso foi o fato de "só na próxima segunda-feira (24/4) ser entregue a Chico Buarque de Holanda o Prêmio Camões, que ganhou há quatro anos, em 2019". "Viramos, por isso, uma página", disse. Lula está em viagem oficial em Portugal, aonde chegou na última sexta-feira (21/4). Ele fica no país até terça-feira (25/4), quando segue para a Espanha. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26/4).
2023-04-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce96y65534eo
brasil
Lula diz que não vai vender estatais e volta a criticar juros em encontro com empresários em Portugal
Em pronunciamento na manhã desta segunda-feira (24/4) no Fórum Empresarial Brasil-Portugal, em Matosinhos, na região do Porto, em Portugal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a criticar a alta taxa de juros do Brasil e reiterou que não vai vender empresas estatais. "Nós temos um problema, primeiro-ministro (António Costa, premiê de Portugal), que não sei se Portugal tem, que a nossa taxa de juros é muito alta, é muito alta. No Brasil, a taxa Selic, que é a taxa referencial, está a 13,75%. Ninguém toma dinheiro emprestado a 13,75%, ninguém", disse Lula, que está em viagem oficial em Portugal desde sexta-feira (21/4). "E a verdade é que um país capitalista precisa de dinheiro, e esse dinheiro precisa circular, não apenas na mão de poucos, na mão de todos". "É por isso que eu digo sempre: a solução do Brasil é a gente voltar a colocar no Orçamento, é a gente garantir que as pessoas pobres possam participar, porque quando eles virarem consumidores, eles vão comprar; quando eles comprarem, o comércio vai vender; quando o comércio vender, vai gerar emprego; quando o comércio vender, vai comprar mais produtos da fábrica; não precisa importar da China, pode comprar produtos produzidos no Brasil, e a gente vai gerar mais emprego, e mais emprego vai gerar mais salário; é uma coisa mais normal da roda gigante da economia funcionando e todo mundo participando". "Já fizemos isso uma vez e vamos fazer outra vez", acrescentou. Fim do Matérias recomendadas Lula também reiterou que seu governo não vai vender estatais. "No Brasil, não vamos vender as empresas públicas. Queremos convidar os empresários para fazer parcerias naquilo que a gente precisa criar de novo", afirmou. Segundo Lula, nos últimos seis anos, estatais foram vendidas "simplesmente para pagar juros da dívida pública". "Ou seja, nos desfizemos do nosso patrimônio, e a qualidade do serviço não melhorou", disse o petista, citando o caso da Eletrobras. Lula falou a empresários na sequência do primeiro-ministro português, António Costa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não é a primeira vez que o petista critica os juros no Brasil. Desde o início de seu mandato, ele vem se queixando do patamar dos juros e pressionando por sua redução. Também tem feito críticas públicas ao presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. Parlamentares e empresários, também. Na semana passada em Londres, no Reino Unido, Campos Neto destacou a independência do Branco Central e defendeu a subida dos juros no ano passado. "O Banco Central fez a maior alta de juros num ano de eleição na história do mundo. Isso mostra que o BC atua de forma bastante independente. Na política monetária, quando você age antes, o custo é menor", disse o presidente do BC em palestra na conferência em Londres. Na visão de Campos Neto, se os juros não tivessem subido em ano de eleição, a inflação não seria 5,8%, mas de 10%, como previsto pelas projeções. "A inflação esperada no outro ano seria 14% e, se isso tivesse acontecido, basicamente a gente teria que estar com juros de 18,75% para ter o mesmo objetivo. E teria, muito provavelmente, que subir o juros para o ano que vem, colocando o país numa recessão, alguma coisa entre 3% e 4%, que foi a última coisa que aconteceu da última vez que o Brasil tentou 'cair' os juros", assinalou ele, falando para uma plateia de empresários, ex-ministros da Fazenda, ex-presidentes do Banco Central e parlamentares. Segundo Campos Neto, embora o "anseio dos juros seja político" o trabalho do Banco Central "é técnico". "O timing técnico é diferente do timing político, por isso a autonomia é importante. O custo de combater inflação é alto e sentido no curto prazo, mas o custo de não combater é mais alto e perene", afirmou. Para o presidente do Banco Central, a taxa Selic alta se justifica porque as previsões econômicas para os próximos anos no Brasil se deterioraram. "De novembro para cá, as expectativas começaram a se deteriorar, tanto para 2025 quanto 2026." No dia anterior, em fala no mesmo evento, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pediu a Campos Neto uma redução das taxas de juros no Brasil. Diante do presidente do BC, que estava na plateia da conferência, Pacheco afirmou haver um "consenso" entre o governo federal, o Congresso Nacional e empresários de que a taxa de juros precisa baixar. "Não conseguiremos crescer o Brasil com taxa de juros a 13,75%. Temos um novo governo com uma forma de pensar o país, um Congresso que tem suas perspectivas. Há divergências no meio empresarial. Mas se há algo que nos une é o desejo de reduzir a taxa de juros no Brasil", disse. "Nós aprovamos a autonomia do Banco Central, que foi fundamental. Mas a perspectiva dessa autonomia é para que o BC não fosse suscetível a interferências indevidas. Há um sentimento de que precisamos encontrar caminhos para a redução imediata da taxa de juros." Segundo Pacheco, a redução dos juros "é o desejo do Congresso, da economia e do setor produtivo, junto com o arcabouço fiscal." A taxa Selic (sigla para Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) serve como referência para todas as taxas de juros do mercado brasileiro e é definida pelo Copom, grupo composto pelo presidente e diretores do Banco Central. Eles se reúnem para definir a trajetória da Selic. A Selic é o principal instrumento de política monetária usado pelo Banco Central para controlar a inflação. Quando a taxa sobe, os juros cobrados em financiamentos, empréstimos e no cartão ficam mais altos e isso desencoraja o consumo — o que, por sua vez, estimula uma queda na inflação. Por outro lado, se a inflação está baixa e o BC reduz os juros, isso barateia os empréstimos e incentiva o consumo. Para definir o que fazer com a Selic, o BC avalia as condições da inflação, da atividade econômica, das contas públicas e o cenário externo — sempre com o objetivo de manter a inflação dentro da meta. O instrumento é usado por todos os governos e autoridades monetárias. O Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, define os juros básicos da economia americana. O Banco Central Europeu faz o mesmo com os juros nos países que compõem a zona do euro. No Brasil, o mais recente ciclo de alta começou em 17 de março de 2021. Desde então, a Selic subiu 12 vezes consecutivamente, de 2% para 13,75%, patamar atingido em agosto do ano passado. Desde então, permanece inalterada. É o nível mais alto desde 2016, quando a taxa começou o ano em 14%.
2023-04-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckvkdlwkj4xo
brasil
Como são os aviões com padrão da Otan que Embraer quer produzir em Portugal
A Embraer vai produzir em Portugal uma versão do A-29 Super Tucano, um avião de ataque leve, para atender aos requisitos operacionais da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar ocidental. A parceria consta de um memorando assinado pelos governos brasileiro e português durante a cúpula Brasil-Portugal, ocorrida no último sábado (22/4). Nesta segunda-feira (24/4), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visita nos arredores de Lisboa a sede da OGMA, empresa aeroespacial portuguesa da qual a Embraer detém 65% do capital e que fabricará o avião. Mas como é essa aeronave e por que ela será produzida em Portugal? O A-29N é uma versão do A-29 Super Tucano com equipamentos e funcionalidades na configuração da Otan e havia sido lançado pela Embraer no dia 12 de abril. O objetivo, segundo a Embraer, é atender às necessidades de nações da Europa — a empresa quer se aproveitar do aumento dos gastos de defesa desses países por medo da Rússia após a invasão à Ucrânia. Entre as funcionalidades, estão um novo datalink (tecnologia que permite a troca de informações simultâneas entre a aeronave, outra aeronave ou uma base no solo) e o single-pilot operation (quando apenas um piloto comanda o avião). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Conhecido por sua versatilidade, o A-29 Super Tucano pode ser usado para ataque leve, vigilância e interceptação aérea e contra-insurgência. Além disso, consegue operar a partir de pistas remotas e não pavimentadas em bases operacionais avançadas com pouco apoio logístico, segundo a Embraer. O avião tem preço estimado inicial de US$ 10 milhões (R$ 50 milhões), mas o valor sobe dependendo da configuração. Tem velocidade máxima de 590 km por hora e pode alcançar uma altitude de 35 mil pés. Além das funções de combate, a aeronave é amplamente utilizada como treinador avançado, devido à sua capacidade de simular missões de combate. Segundo a Embraer, o avião é equipado com sensores e armas de última geração, incluindo um sistema eletro-óptico/infravermelho com designador de laser, óculos de visão noturna, comunicações seguras de voz e dados. Já foram entregues 260 unidades do A-29 Super Tucano em todo o mundo. Atualmente, a aeronave é usada por 15 diferentes forças aéreas, incluindo a Força Aérea dos Estados Unidos (USAF). Na sexta-feira (22/4), em entrevista a jornalistas, o ministro da Defesa, José Múcio, disse que a certificação dos aviões da empresa pela Otan pode abrir portas no mercado europeu e outros. Segundo ele, a produção em Portugal é "importante porque já cumpre os pré-requisitos da Otan". "Vamos fabricar aeronaves brasileiras com características da Otan", disse Múcio, que integra a comitiva de ministros do presidente Lula em visita oficial a Portugal. Em 2019, o governo português disse que compraria cinco aeronaves de transporte militar KC-390 da Embraer e um simulador de voo por 827 milhões de euros. Países como Suécia e Colômbia recentemente também manifestaram interesse em comprá-lo. Segundo a agência de notícias Reuters, a Áustria está em negociações com a Embraer para a compra de quatro ou cinco aeronaves de carga militar KC-390. Na sexta-feira, Múcio disse que a Embraer quer exportar o KC-390 para mais países europeus. "O presidente (Lula) quer incentivar a indústria de defesa brasileira e aumentar os investimentos no setor", disse Múcio. Já o primeiro-ministro português, António Costa, disse no sábado (22/4) que o A-29 Super Tucano "passará a ser adaptado para os padrões da Otan. E Portugal passará a acolher todo o processo de formação de pilotos na Europa e na África para este caça brasileiro".
2023-04-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721ld096rvo
brasil
O que é o prêmio Camões, que será entregue com atraso a Chico Buarque após recusa de Bolsonaro
Depois de quatro anos de espera, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque, de 78 anos, vai finalmente receber nesta segunda-feira em Sintra, Portugal, o prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa. Um dos motivos da demora se deveu à recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em assinar a documentação necessária para que o artista recebesse o diploma, segundo explicou à BBC News Brasil o ministro da Cultura de Portugal, Pedro Adão e Silva. A entrega também ficou prejudicada pelo confinamento imposto pela pandemia de covid-19. Como resultado, todos os vencedores do prêmio — quatro no total, incluindo Buarque — ainda não o receberam. Chico Buarque estreou como escritor de ficção em 1974, com a novela Fazenda Modelo. Em 1979, publicou o livro infantil Chapeuzinho Amarelo. Seu primeiro romance, Estorvo, foi lançado em 1991. Quatro anos depois, publicou o segundo, Benjamin. Em 2003, lançou Budapeste; em 2009, Leite Derramado e em 2014, Irmão Alemão. Ele escreveu as peças de teatro Roda Viva (1968); Calabar (1972, juntamente com Ruy Guerra); Gota D’Água (1974, com Paulo Pontes), e Ópera do Malandro (1978). O prêmio Camões foi criado em 1988 "com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma", segundo o Ministério da Cultura (Minc). Fim do Matérias recomendadas É considerado a mais importante premiação da língua portuguesa e contempla anualmente autores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Seu nome homenageia o poeta português Luís de Camões (1524-1580), uma das maiores figuras da literatura lusófona. O ganhador do prêmio recebe 100 mil euros (R$ 555 mil), sendo metade desse valor subsidiado pela Fundação Biblioteca Nacional, entidade vinculada ao Ministério da Cultura. A outra metade é paga pelo governo português. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diploma entregue aos laureados contém o nome de todos os países lusófonos e é assinado pelos chefes de Estado de Portugal e do Brasil. A escolha é feita por um júri de seis membros, dois do Brasil, dois de Portugal e dois escolhidos em comum acordo por outros países lusófonos (Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste). O primeiro a receber o prêmio, em 1989, foi o poeta e escritor português Miguel Torga. Desde então, outros 33 escritores foram agraciados. Foram 14 do Brasil, 14 de Portugal, três de Moçambique, dois de Angola e dois de Cabo Verde (José Luandino Vieira, vencedor em 2006, é luso-angolano; ele recusou o prêmio). Entre os brasileiros laureados, estão Raduan Nassar (2016), Ferreira Goulart (2010), Lygia Fagundes Telles (2005), e Jorge Amado (1994). Devido à recusa de Bolsonaro em conceder o prêmio a Buarque, os seguintes escritores ainda não puderam recebê-lo: o português Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2020), a moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o brasileiro Silviano Santiago (2022). Primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Chiziane é a primeira africana e a primeira negra a vencer a premiação. Niketche: Uma História de Poligamia é um de seus romances mais famosos. Em declaração no sábado (22/4) em Lisboa por ocasião da abertura da 13ª Cúpula Brasil-Portugal, que já não acontecia havia sete anos, o primeiro-ministro português, António Costa, fez alusão ao prêmio Camões. Ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Costa usou a recusa de Bolsonaro em entregar a premiação como um exemplo do esfriamento das relações entre Brasil e Portugal nos últimos anos. Segundo ele, no entanto, é momento de "virar a página". "Queria sublinhar a importância do dia de hoje, em que depois de sete anos de interrupção retomamos as cimeiras (cúpulas) anuais entre Portugal e o Brasil. Retomamos estas cimeiras na segunda visita que em poucos meses o presidente Lula faz a Portugal e na primeira visita que o presidente Lula faz à Europa", disse. Costa falou da "interrupção de contatos" entre os dois países. Em sua visão, a consequência mais clara disso foi o fato de "só na próxima segunda-feira (24/4) ser entregue a Chico Buarque de Holanda o Prêmio Camões, que ganhou há quatro anos, em 2019". "Viramos, por isso, uma página", disse. Lula está em viagem oficial em Portugal, aonde chegou na última sexta-feira (21/4). Ele fica no país até terça-feira (25/4), quando segue para a Espanha. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26/4).
2023-04-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0emyjr4j5o
brasil
Depoimento de Bolsonaro à PF: o que pode ligar ex-presidente aos crimes de 8/1
A Polícia Federal vai ouvir na próxima quarta-feira (26/4) o ex-presidente Jair Bolsonaro como parte da investigação sobre quem foram os mentores intelectuais das invasões de 8 de janeiro ao Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Palácio do Planalto. O inquérito tramita no STF e o relator, ministro Alexandre de Moraes, havia determinado no dia 14 de abril, que a PF agendasse o depoimento em até dez dias. Os policiais devem questionar Bolsonaro sobre mensagens postadas nas redes sociais em que ele questiona o resultado da eleição e sobre o fato de não ter determinado, quando ainda presidente, a retirada dos acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis. Mas, para que as investigações resultem numa denúncia contra o ex-presidente, os investigadores terão que encontrar evidências de que os atos de Bolsonaro resultaram nas invasões aos prédios públicos. Bolsonaro tem negado envolvimento no 8 de janeiro. Enquanto ainda estava nos EUA, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões. Fim do Matérias recomendadas "As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo", disse o ex-presidente à emissora NBC. A BBC News Brasil ouviu criminalistas para entender que crimes podem ser considerados nessa investigação, quais as possibilidades de o inquérito terminar em acusação penal contra o ex-presidente, e que condutas de Bolsonaro que devem ser investigadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo os professores de processo penal Juliana Bertholdi e Gustavo Badaró, se os investigadores encontrarem provas do envolvimento de Bolsonaro com os atos de 8/1, ele poderá ser enquadrado em algum (ou alguns) desses três crimes: o do Art. 286 do Código Penal, e os dos artigos 359-L e 359-M, que punem quem atenta contra o Estado Democrático de Direito. O Art. 286 do Código Penal prevê pena de detenção de três a seis meses ou multa a quem incita publicamente a prática de crime. Já o Art. 359-L pune com reclusão de 4 a 8 anos quem: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais." E o Art. 359-M pune com reclusão de 4 a 12 anos quem: "Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído". Ou seja, pune quem tenta dar um golpe de Estado. Até agora, 100 pessoas que participaram dos acampamentos e invasões foram denunciadas. Muitas delas foram enquadradas nos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, além de associação criminosa armada e danos ao patrimônio público. “Em relação ao Bolsonaro, obviamente ele não invadiu nenhum estabelecimento, nem permaneceu acampado em nenhum quartel. E não se tem notícia de que ele tenha financiado, num sentido material do termo, as invasões”, diz o professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo Gustavo Badaró. “Mas o que se coloca é se ele, fora da Presidência da República ou no final do mandato, incitou ou instigou a população na prática desses atos.” Segundo Juliana Bertholdi, professora de Processo Penal da PUC-PR, durante o depoimento, a Polícia Federal vai tentar esclarecer até que ponto as condutas de Bolsonaro e outros integrantes de seu governo contribuíram para as invasões do 8 de janeiro. “Nós estamos tentando entender como toda essa articulação para os atos do dia 8/1 aconteceu. Existem diferentes formas do articulador participar dessa organização. Ele pode ser um financiador, ele pode ser um mentor intelectual ou alguém que participou desse planejamento”, explica. “No depoimento, a força policial vai tentar recolher o máximo de informações possíveis sobre aquele fato que aconteceu e, a partir dessas informações, tentar tipificar ou não as condutas. Vai decidir se aquela pessoa deve ser indiciada ou não.” Ao pedir que Bolsonaro fosse investigado no inquérito que apura quem foram os autores intelectuais das invasões, a Procuradoria-Geral da República citou uma postagem do ex-presidente nas redes sociais feita no dia 10 de janeiro, dois dias após os atos. A publicação, que rapidamente viralizou antes de ser apagada da conta de Bolsonaro, diz: “Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo TSE e o STF”. Na representação feita ao Supremo, o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, sugere que Bolsonaro fez incitação pública à prática de crimes contra o Estado de Direito ao questionar o resultado eleitoral. Para ele, ainda que a postagem tenha sido feita após os episódios de violência e vandalismo do dia 8 de janeiro, as condutas do ex-presidente devem ser investigadas no inquérito sobre a autoria intelectual dos ataques. “Não se nega a existência de conexão probatória entre os fatos contidos na representação e o objeto deste inquérito, mais amplo em extensão. Por tal motivo, justifica-se a apuração global dos atos praticados antes e depois de 8 de janeiro de 2023 pelo representado”, escreveu. Para o professor da USP Gustavo Badaró, essa postagem tem relevância por ter sido feita pouco após as invasões. Mas a Polícia Federal deverá avaliar também outras condutas do ex-presidente, como o fato de ele não ter desmobilizado as manifestações de bolsonaristas em frente aos quartéis antes de deixar a Presidência. “As pessoas protestando pedindo abertamente a prática de um ato ilegal ficaram lá nos acampamentos pelo tempo que quiseram. Foram mobilizadas numa área de segurança que era uma área pertencente ao quartel”, lembra Badaró. “Acho que o ponto principal da investigação vai ser esse: o fato de Bolsonaro, que é ex-militar, não ter agido para desmobilizar os acampamentos quando era presidente e, portanto, superior hierárquico do ministro da Defesa e de todas as forças.” Outras condutas que, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, podem ser investigadas incluem os vários momentos em que Bolsonaro questionou o sistema eleitoral, em postagens, entrevistas e lives e em que defendeu os protestos nos acampamentos, antes da invasão. Também deve ser levado em consideração pela PF o fato de o governo do ex-presidente ter pressionado para que o Exército pudesse auditar as eleições. Mas, os criminalistas destacam que não será fácil estabelecer uma relação de causalidade entre as falas e omissões de Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro. Juliana Bertholdi explica que, para o ex-presidente ser enquadrado como mentor intelectual dos crimes de golpe de Estado e atentado violento ao Estado de Direito, é preciso ficar claro que ele tinha a intenção de induzir seus eleitores a invadir os Três Poderes. “A gente tem que demonstrar que a pessoa tinha a intenção de, com aquele comportamento, atingir aquele resultado danoso. Então, a gente entra num espaço de subjetividade e complexidade bastante significativo”, disse à BBC News Brasil. Para a criminalista, Bolsonaro foi cauteloso em suas manifestações, conseguindo se comunicar com seus apoiadores mais radicais sem incitá-los de maneira direta a cometer crimes. “A forma como ele construiu o discurso foi seguramente muito pensada, porque em nenhum momento ele afirma o que ele parece querer afirmar. Ele sempre se utiliza de subterfúgios na hora de fazer as afirmações”, diz. Gustavo Badaró também destaca que será um desafio estabelecer um nexo causal entre as falas de Bolsonaro e as invasões. Por isso, segundo ele, a PF deverá construir uma narrativa que agregue diferentes condutas e falas como evidência do possível envolvimento do ex-presidente com os atos de 8/1. “A gente não tem um ato decisivo que a gente possa falar que claramente foi crime. A questão é verificar se, pelo conjunto da obra, os pequenos atos, sinalizações e omissões têm, do ponto de vista jurídico, relevância causal para o 8 de janeiro”.
2023-04-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03958r9gn5o
brasil
Brasil vai lançar programa de combate ao racismo no esporte por episódio de Vini Jr., diz Anielle Franco
A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, disse neste domingo (23/4) em Lisboa que sua pasta, em parceria com o Ministério do Esporte, vai lançar um programa de combate ao racismo no esporte voltado para atletas que atuem no Brasil e no exterior. O estopim, segundo ela, foi o episódio envolvendo o jogador de futebol Vinicius Jr, do Real Madrid. Segundo ela, a iniciativa, que ainda não tem data para ser lançada, está em fase conclusiva, após uma série de reuniões com o Ministério do Esporte, comandado pela ex-jogadora de vôlei Ana Moser. O nome do programa ainda não está definido, acrescentou Franco. "O estopim foi, claro, o caso de Vinny Jr., um atleta que eu admiro muito (…)", disse Franco a jornalistas, destacando que detalhes do programa serão divulgados em breve. O atacante Vinicius Jr., do Real Madrid, foi alvo de racismo no jogo contra o Mallorca, pelo Campeonato Espanhol, em fevereiro deste ano. Segundo a imprensa espanhola, o brasileiro afirmou que se sentiu ofendido pelos gritos racistas na partida. Fim do Matérias recomendadas As imagens foram captadas por um canal de TV espanhol que flagrou um torcedor gritando para o atacante: "Vinicius, macaco! É um p*** macaco". A LaLiga, a liga do campeonato espanhol, pediu uma punição para o torcedor e frisou que a ação foi individual. O torcedor, do Mallorca, foi punido com uma multa de 4 mil euros (cerca de R$ 22 mil) e uma suspensão de recintos esportivos por um período de 12 meses. No início deste mês, Vinicius Jr. prestou depoimento sobre o episódio, por teleconferência, à Justiça espanhola. Falando sobre o programa, a ministra lembrou um episódio ocorrido quando era criança e jogava vôlei. “Recebia bombril (palha de aço) como amigo oculto”, recordou. “Precisamos de uma comunicação que combata o racismo de frente”, acrescentou. Na conversa com jornalistas, Franco falou que conversou sobre racismo no esporte com a ministra portuguesa Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, além de outros casos de discriminação e xenofobia envolvendo a comunidade brasileira em Portugal. Ainda são raros os registros oficiais de punições efetivas de portugueses que agrediram e discriminaram minorias étnicas e imigrantes.
2023-04-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqv0egv8p2xo
brasil
A megaestrada que ligará Brasil e Chile cruzando 'inferno verde' no Paraguai
"É um novo Canal do Panamá". É assim que Egon Neufeld descreve o corredor bioceânico, um gigantesco projeto de infraestrutura que tentará ligar a costa do oceano Pacífico no Chile com a costa atlântica no Brasil. Neufeld, um rico proprietário de vastas terras no Paraguai, diz que a rodovia – que terá cerca de 2.200 quilômetros e cortará Argentina, Brasil, Chile e Paraguai – facilitará a vida dos fazendeiros e camponeses da região no transporte de gado e na exportação de produtos de exportação aos portos que estão no Atlântico e no Pacífico. Os governos de cada um dos países envolvidos no projeto manifestaram apoio, mas o presidente paraguaio, Mario Abdo, foi um de seus principais impulsores. "O Paraguai é o quarto maior exportador de soja do mundo. Para que a soja chegue ao Oceano Pacífico é preciso passar pelo Canal do Panamá. Com a nova rodovia pronta, haverá uma economia para todo o setor produtivo em cerca de 25% nos custos de logística", disse entusiasmado o presidente à BBC. Cerca de 525 quilômetros dessa nova rodovia passam pela região conhecida como Gran Chaco, uma das principais reservas ambientais do país, povoada por cerrados e zonas úmidas. Fim do Matérias recomendadas É o lar de onças, onças-pardas, tamanduás e milhares de espécies de plantas, um dos lugares de maior biodiversidade do planeta. Esse lugar nem sempre foi amado por aqueles que quiseram se estabelecer nessas terras. Quando os menonitas, uma comunidade cristã protestante, desembarcaram ali no início do século 20, eles o chamaram de "inferno verde". O avô de Neufeld foi um dos menonitas que se estabeleceram no Chaco em 1930, depois de escapar da perseguição na Ucrânia. Quase 100 anos depois, seu neto continua lutando contra o ambiente hostil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O corredor bioceânico é um projeto de infraestrutura desenvolvido desde 2015 pelos governos da Argentina, Brasil, Paraguai e Chile para ligar quatro portos localizados no Oceano Pacífico – sendo eles Antofagasta, Mejillones, Tocopilla e Iquique – ao porto da cidade brasileira de Santos. Estima-se que a rodovia terá cerca de 2.200 quilômetros de extensão e o custo aproximado do investimento total é de US$ 10 bilhões. A rodovia cruzará as regiões do Mato Grosso do Sul no Brasil, Gran Chaco no Paraguai, as províncias de Salta e Jujuy na Argentina e as regiões de Antofagasta e Tarapacá no Chile. Cada país tem a responsabilidade de cumprir alguns trechos e prazos, porém não está claro qual é o prazo final para a conclusão do projeto. De fato, em janeiro deste ano, os presidentes do Brasil e do Chile, Lula e Gabriel Boric, confirmaram que iriam acelerar a construção dos trechos que correspondem aos seus territórios. Talvez um dos países que está mais avançado na execução dos projetos seja o Paraguai, que já tem um dos três trechos de seu território pronto. "O trecho um do corredor bioceânico, que está pronto, já permitiu um acesso muito mais fácil para os comércios, porque antes a estrada era de terra e quando chovia era difícil transitar. Agora você pode chegar facilmente às diferentes cidades menonitas e suas colônias", disse à BBC o engenheiro Alfredo Sánchez, porta-voz do governo para a questão do corredor. “Para nós, o maior problema é que temos que retirar o mato dos campos. Se você não cuidar, esse mato volta e toma conta de tudo”, explicou. Para Neufeld, a rodovia dará mais oportunidades de trabalho que atrairão pessoas de outras partes do Paraguai. Sua comunidade conseguiu se estabelecer com sucesso em algumas seções do "inferno verde", especialmente eles conseguiram construir uma lucrativa indústria de gado e laticínios, que agora são transportados em caminhões 4x4 e não em carroças puxadas por cavalos como em outras comunidades Mas o que para alguns é atrativo, para outros é preocupante. Taguide Picanerai, um jovem líder da comunidade indígena Ayoreo, uma das primeiras a habitar o Chaco, a comunidade já está sofrendo os efeitos do desmatamento, porque milhares de árvores foram derrubadas em razão da pecuária. Cerca de 20% da floresta do Gran Chaco, o equivalente à área do estado de Nova York, foi convertida em terras para pastagem de gado e produção agroindustrial desde 1985, segundo fotografias de satélite da NASA. “A nova rodovia vai significar mais criação de gado, o que leva a uma grande perda de biodiversidade”, diz Picanerai, acrescentando que também está preocupado com a perda de território dos Ayoreo. Ele explica que no passado os produtores se mudaram para os territórios ancestrais dos Ayoreo, impediram o acesso à água e restringiram o espaço de caça para as comunidades indígenas. A vida dos Ayoreo mudou significativamente em apenas uma geração. Os pais de Picanerai viviam na floresta impenetrável, onde caçavam javalis e tartarugas. A comunidade foi convencida por missionários americanos que vieram para o Paraguai na década de 1960 a abandonar a vida de caçadores, vestir roupas e se estabelecer com outras comunidades indígenas. E grande parte de suas terras foi vendida a fazendeiros e pecuaristas, o que levou a batalhas legais de anos para recuperar parte dessas terras para que a comunidade pudesse se restabelecer. "Esse território é vital para nós", declarou Picanerai. O presidente Abdo reconhece que a nova rodovia “aumentará a população no Chaco” e gerará “mais atividade comercial”. Mas ele acredita que, desde que as leis sejam cumpridas, o impacto será positivo. Ele disse à BBC que já existiam regras rígidas para os proprietários de terras, incluindo uma cláusula que estipulava que "o máximo que as pessoas podem desmatar no Chaco é 50% de seu latifúndio, e menos se a biodiversidade da área for considerada mais delicada”. Para o ambientalista Miguel Lovera, essas medidas não são suficientes. “A construção de novas estradas leva a um maior desmatamento e derrubada de florestas em pequenos trechos, o que coloca uma enorme pressão sobre o frágil ecossistema”, disse Lovera, que dirige uma organização que luta pela proteção de grupos indígenas no Chaco. Por outro lado, para Bianca Orqueda, jovem cantora e compositora do grupo indígena Nivaclé, a estrada tem alguns aspectos positivos. Orqueda, que dirige uma escola de música infantil na periferia da cidade menonita de Filadelfia, divide seu tempo entre sua comunidade e a capital do Paraguai, Assunção. E a rodovia a ajudará a encurtar os tempos de viagem. Ela não está convencida de que seja possível que sua comunidade continue vivendo isolada, acrescentando que os Nivaclé precisam "progresir", o que para alguns pode significar deixar o Chaco e seu modo de vida para trás. "Eu digo às crianças que, se quiserem ser médicas, arquitetas, dentistas ou musicistas, terão que sair assim que terminarem a escola e irem para outra cidade." "Aqui na Filadélfia não há universidades, não há nada a menos que você queira ir para a agricultura", disse Orqueda. Para Picanerai, a conservação do Chaco é mais do que apenas o modo de vida de sua comunidade indígena. “A rica biodiversidade do Chaco significa que é um problema global que deveria preocupar a todos”, comentou ele, acrescentando que está determinado a proteger sua terra dos recém-chegados que se mudarem para a região após o fim das obras da nova rodovia.
2023-04-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pz24dr843o
brasil
'Tive meu bebê no carro': quando o parto acontece sem assistência
"Eu posso dizer que tenho dois relatos de parto possíveis. De um lado, o romantizado, surreal, instagramável, com reviravolta, para as pessoas dizerem que eu fui guerreira. Ou o parto aterrorizante, sem acolhimento, no escuro e desesperador que foi. Esse foi o real." Assim começa a descrição que a advogada Júlia Assis fez aos amigos mais íntimos do parto da segunda filha, que aconteceu em São Paulo no início de dezembro. "As pessoas até podem querer um parto rápido, mas ninguém quer parir sozinha dentro de um carro em movimento", desabafa. Era seu segundo bebê e, diferentemente do primeiro, que nasceu por cesárea, ela optou pelo parto normal. "Eva nasceu com 39 semanas e cinco dias, a termo. E eu fiz o pré-natal com uma equipe super especializada, cara, particular. A primeira coisa que me disseram foi que um parto demora horas. Meu primeiro parto foi cesárea, mas não foi marcada, então cheguei a entrar em trabalho de parto. Me disseram que o segundo poderia ser mais rápido porque o corpo já sabe. Mas daí a ter um parto de duas horas há uma distância. E isso me disseram que dificilmente aconteceria", relata. "Quando entrei na maternidade, depois de parir no carro, as pessoas bateram palmas, a doula disse 'é o parto de um milhão de dólares', porque foi rápido. Mas eu estava assustada, em choque, preocupada com a minha filha e com a minha mãe, que estava ao meu lado." Fim do Matérias recomendadas Apesar de ter sido um parto externo, o bebê de Júlia foi registrado como nascido no hospital. Essa é apenas uma das dificuldades de medir a real ocorrência de partos que acontecem antes da chegada à maternidade no Brasil — em muitos casos, a caminho dela, seja com a assistência de profissionais como doulas e enfermeiras obstétricas ou não. No entanto, um conjunto de fatores faz com que nem sempre seja possível chegar a tempo — o que pode significar que a mãe e o bebê passem por esse momento em locais sem preparo e corram riscos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A primeira vez que eu tive contrações foi na madrugada de domingo para segunda. Na segunda-feira pela manhã, senti contrações fortes, como uma cólica menstrual. Na madrugada de terça também. Avisei para a equipe, mas nem cheguei a contabilizar no aplicativo que usávamos, porque não eram ritmadas. A doula sempre me disse que a gente deveria contabilizar um intervalo de uma hora com contrações ritmadas de cinco em cinco minutos. Mas isso nunca aconteceu para mim. De quarta para quinta, eu já estava cansada de sentir dor. Às 4h, eu sentia contrações desritmadas, mas com uma sensação de dor maior, a ponto de não conseguir mais ficar deitada. Fui ao banheiro, vi que meu tampão (mucoso, secreção que protege o útero) estava começando a sair. Às 7h, eu estava com muita dor e fui para a banheira esperar as contrações ritmarem como a doula falou. Fui ao médico, ele viu que minha bolsa estava perto de estourar, eu tinha três centímetros de dilatação, mas o colo do útero ainda não estava na posição. Ele me mandou ir para casa. Comecei a ter contrações bem fortes a cada 20 minutos, 10 minutos." Em um parto natural típico, o neném está com a cabeça virada para baixo, e os eventos acontecem dentro do que se considera um tempo adequado para cada fase, segundo o obstetra Ricardo Porto Tedesco, membro da Comissão especializada em Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). "A gente tem uma fase inicial, chamada fase de latência, em que há algumas contrações e uma dilatação de até quatro centímetros do colo do útero. Isso pode durar dias. Depois, uma fase ativa, que é quando a dilatação ocorre mais rapidamente, e o chamado período expulsivo, que é quando ocorre de fato o nascimento", explica. Em geral, numa primeira gestação, se considera que a fase ativa e a expulsão do bebê pode durar entre oito e 10 horas — sendo entre duas e três horas só no período expulsivo, enquanto o bebê desce pelo canal vaginal. A partir da segunda gravidez, quando os músculos da mulher já estão mais frouxos, o parto costuma ser mais rápido. A fase ativa — até ocorrer a dilatação total de 10 cm — pode chegar até oito horas. A expulsão do bebê pode acontecer em menos de duas horas. "Em mulheres que já tiveram parto normal, é comum que essa descida demore de dez minutos a uma hora, mais ou menos", diz a obstetriz Ana Cris Duarte, gestora do coletivo Nascer, em São Paulo. A questão é que a duração de cada uma dessas fases varia para cada mulher e cada situação. Para evitar uma internação precoce, segundo Ricardo Tedesco, costuma-se determinar que a fase ativa começa quando a mulher tem cinco centímetros ou mais de dilatação e três contrações em 10 minutos. "É verdade que internar a mulher cedo demais está associado com uma incidência maior de cesáreas. Ou sugeridas pela equipe do hospital ou porque a própria paciente se cansa da espera e da dor. E muitas vezes se faz cesáreas que não eram necessárias", admite. "Então hoje, com um desejo maior pelo parto normal, as mulheres demoram mais a irem para o hospital e acabam indo perto do período expulsivo, e aí podem não ter assistência adequada a tempo. E, claro, muitas vezes a mulher brasileira tem dificuldade de acesso a uma maternidade ou hospital próximo mesmo." No caso de Júlia, o receio de uma cirurgia indesejada também acabou decidindo os rumos que o parto tomaria. "Eu sempre disse que queria ir muito cedo para o hospital, assim que eu começasse a ter contrações. Mas a equipe me dizia que era importante descobrir o momento ideal para ir porque eu poderia acabar sendo induzida a uma cesárea", diz ela. "Às 13h37, eu senti que a bolsa ia estourar. A ideia era que a enfermeira obstetra e a doula iriam para a minha casa e iriam me examinar, acompanhar até a hora de ir para o hospital, mas elas moram longe de mim. Elas saíram de casa nesse momento, mas não conseguiram chegar. Às 14h, eu estava no chuveiro, como me recomendaram, mas estava me sentindo completamente sozinha, vulnerável. Mesmo com meu marido tentando resolver e minha mãe também ali. As contrações aumentam conforme a dilatação aumenta, mas eu não sabia qual era a dilatação equivalente àquela dor que eu estava sentindo, estava no escuro. Às 14h03, eu estava urrando de dor, a ponto dos meus vizinhos ouvirem. A enfermeira ouviu meu urro de dor pelo telefone e disse: 'Vai para o hospital’. No carro, as coisas começaram a evoluir para além da dor. Você começa a sentir a força de expulsar o bebê e depois a sentir o círculo de fogo, que é quando a cabeça começa a passar pelo colo do útero e entrar no canal vaginal. No começo do meu pré-natal, me disseram que essa coisa de a bolsa estourar e eu já ter que ir para o hospital não acontecia, era coisa de filme. E também que o processo expulsivo demoraria mais. Mas eu senti todas essas coisas nos 27 minutos de casa até o hospital. A sensação era desesperadora, porque eu pensava: 'Não acredito que estou passando por tudo o que não queria passar'. Eu nem conseguia pensar naquela coisa romântica de 'vou conhecer minha filha'. Só pensava no 'isso que eu estou passando vai acabar'. Eram quase 14h30, tudo parado no trânsito, no meio das contrações, eu comecei a sentir um volume entre as minhas pernas. Eu comecei a gritar: 'Mãe, ela tá nascendo, rasga a calcinha'. E minha mãe, em pânico, dizia: 'Não vai, não vai!', e ficava com a mão entre as minhas pernas, tentando segurar a cabeça. Quando o carro subiu na calçada para entrar na maternidade, ela saiu inteira. O médico disse que não achava que eu chegaria nesse estado, que eu chegaria com oito centímetros de dilatação. Ele não acreditou que seria tão rápido. Abriram a porta do carro, dei alguns passos, sentei na maca e vi minha mãe tremendo tanto. E eu segurando minha filha, desesperada, só conseguia dizer: 'Alguém por favor cuida da minha mãe'. Até pouco tempo atrás, eu não conseguia falar disso sem chorar." No hospital, algumas horas após o parto, a equipe médica descobriu que Júlia estava sofrendo uma hemorragia, causada por uma laceração na vulva. Ela precisou de duas transfusões de sangue, mas se recuperou em uma semana. Em casos mais raros, e difíceis de prever, o parto pode ser ainda mais rápido, conhecido como parto precipitado ou tsunâmico. Em maio de 2022, Flaviane Tironi teve esta experiência na sua primeira gestação. Mesmo com o acompanhamento de uma equipe de referência em Belo Horizonte, tendo assistido a documentários, lido livros, feito pilates e fisioterapia em preparação para o parto, a rapidez do processo a pegou de surpresa. "Tive contrações de treinamento no domingo, que duraram só uma hora e pararam. Na segunda, a médica me examinou e disse que eu estava com três centímetros de dilatação, poderia nascer em breve ou só na semana seguinte. Mas às 4h da manhã de terça, eu comecei a ter contrações mais fortes e já não consegui mais dormir", relata. "Às 7h, eu já estava gritando, e a contração vinha a cada 10 minutos. E quando vinha, parecia que eu ia morrer. A doula e a enfermeira se puseram a caminho, mas só chegaram umas 9h e pouco. Eu disse que queria ir para o hospital e tomar anestesia, mas a doula propôs me examinar no banheiro antes. Quando me sentei no vaso, ela me disse: 'A cabeça do seu bebê já está apontando. Podemos ir para o hospital ou fazer o parto na sua casa'." Com receio de dar à luz no caminho, Flaviane optou por ficar em casa. Por causa da posição em que estava, mais confortável, e do momento avançado do parto, ela deu à luz ao primeiro filho no vaso sanitário, cerca de 50 minutos depois da chegada da doula. "A enfermeira chegou também, e era super preparada, tinha todos os aparelhos. Mas mesmo com essa equipe que tinha conhecimento e prática, eu fiquei com medo de acontecer alguma coisa. Depois me disseram que um parto tão rápido é raro, ainda mais na primeira vez", relembra. A equipe chegou à conclusão de que, por volta das 7h, apenas três horas depois de começar a ter contrações, Flaviane já tinha entrado na fase expulsiva do parto. "Mas meu corpo segurou o bebê com força, eu estava com medo. Tanto é que ele nasceu com um galinho, um coágulo de sangue na cabeça, que sumiu depois do primeiro mês", diz ela. Mesmo que nem ela nem o bebê tenham tido complicações, Flaviane sentiu dificuldade de lidar com as lembranças do parto. "Eu fiquei três dias sem conseguir entrar no banheiro porque eu começava a chorar. Pensava que muitas coisas poderiam ter dado errado. Eu tive acompanhamento, sabia de todas as fases do parto. Mas eu não fui preparada para ser tão rápido. Demorei três meses na terapia para aceitar que minha história foi daquela forma." "Sei que é um acontecimento raro, mas acho que deveríamos ter mais material sobre isso. Talvez até uma simulação. Se a gente soubesse que poderia ter essa possibilidade, eu talvez já tivesse corrido para o hospital quando tive contrações mais intensas", pondera. O parto é considerado tsunâmico quando a fase ativa e a expulsiva — ou seja, o tempo entre o início da dilatação do colo e o nascimento do bebê — acontecem num intervalo de menos de quatro horas, às vezes até menor que uma hora. "Você toca, a paciente está com cinco centímetros, uma hora depois ela está com o neném no colo", exemplifica Ricardo Tedesco. "Ao contrário do que muita gente pensa, que é apenas algo maravilhoso, isso é visto como uma anormalidade, e potencialmente associado a riscos." A real incidência deste tipo de parto extremamente rápido é desconhecida no Brasil. Estudos americanos, frequentemente usados como base em outros países, como o Reino Unido, falam de uma ocorrência de três em cada 100 mulheres. Esse tipo de ocorrência é maior, segundo Tedesco, em mulheres que já tiveram filhos. "Não quer dizer que uma mãe de primeira viagem não possa ter, mas a partir do segundo filho é mais comum um parto mais rápido, mesmo que não seja tsunâmico, porque os músculos vão ficando mais frouxos, então é mais fácil o bebê passar pelo canal de parto", explica. Outro fator que pode favorecer o parto precipitado é o feto pequeno, com menos de 2,5 kg. "Mas a medicina não é uma ciência exata. A questão é a proporcionalidade do tamanho do feto em relação à bacia da mãe. Ou seja, estamos falando de um bebê pequeno em relação à mãe." "Em dois mil partos que já atendemos no nosso coletivo, só vi o parto tsunâmico de verdade umas quatro vezes. É realmente raro", diz a obstetriz Ana Cris Duarte. "Mas uma mulher que está tendo seu segundo parto normal deveria estar educada para essa possibilidade, porque é uma possibilidade concreta. E, de qualquer forma, como os partos a partir do primeiro tendem a ser mais rápidos, toda semana chega na maternidade uma mãe com um bebê nascido no carro. Já tivemos bebês nascidos na garagem, no chuveiro." Tanto os excepcionais partos tsunâmicos como aqueles em que a mulher não tem tempo de chegar ao hospital apresentam riscos semelhantes, de acordo com os especialistas: - Impossibilidade de acompanhar os sinais vitais do bebê ou eventuais complicações na mãe; - Risco de trauma — o bebê pode cair no chão ou não conseguir ser amparado ao ser ejetado do útero. No caso do parto tsunâmico, de acordo com Ricardo Tedesco, também há um risco de sofrimento para o bebê, caso as contrações sejam muito intensas ou muito frequentes. "Nessas duas situações, a oferta de oxigênio para a placenta e, consequentemente para o feto, fica comprometida. A cada contração uterina, o fluxo de sangue que passa dentro do útero diminui, e aí o útero relaxa e enche de sangue de novo e, consequentemente, de oxigênio. Isso é natural, e o feto aguenta isso. Porém, se isso ocorre de maneira muito intensa ou muito frequente, não dá tempo de ele se recuperar. Ele pode entrar numa situação de sofrimento por falta de oxigênio", explica. O risco de lesões que podem causar hemorragia — que já existe no parto natural regular — também aumenta no tsunâmico, justamente pela força das contrações e pela rapidez do processo. Mas o que é possível fazer quando o parto vai acontecer sem assistência? O mais importante é manter a criança aquecida, segundo a obstetriz Ana Cris Duarte. "É bom ter uma toalha para aparar e envolver o bebê, mas pode até ser no casaco do pai. Coloca o bebê em contato com a mãe, pele com pele, cobre os dois e vai para o hospital, busca ajuda ou chama o Samu. Isso é o essencial", explica. "Não é para cortar o cordão umbilical. Não é para puxar a placenta. Vejo até pessoas que amarram um cadarço no cordão. Não se deve fazer nada disso. Nem limpar a boca do bebê, nem chupar nada dela", diz a especialista. A busca imediata por ajuda é importante para garantir que tanto a mãe quanto a criança serão acompanhadas, caso haja alguma complicação. "Cerca de 5% dos bebês precisam de ajuda para respirar ao nascer, com a ventilação, que é aquele balãozinho que põe na boca do bebê. A hemorragia pós-parto e o risco de laceração também podem ocorrer, mas geralmente depois que a placenta é expulsa. A questão é quem socorre a mãe e o bebê nessas horas." Para Ricardo Tedesco, é importante lembrar, no entanto, que os partos tsunâmicos são exceções — e, mesmo nesses casos, a mãe e o bebê ficam bem na maioria das vezes. "As mulheres precisam saber que o parto natural traz riscos, mas não devemos tomar decisões baseadas em exceções. Ele é seguro. A cesárea feita sem necessidade, em vez de salvar vidas, coloca em risco a mulher e a criança", afirma. Ao chegar na recepção da maternidade que fica perto da sua casa em Belo Horizonte, em 22 de dezembro de 2022, a arquiteta Enara Paiva já tinha contemplado a possibilidade de ter a filha no box do banheiro. "Eu já tinha dito que, mesmo estando perto da maternidade, não queria sair de casa com nove centímetros de dilatação e parir na calçada. Mas as contrações fortes começaram mesmo às 19h, e quando a doula chegou na minha casa, por volta das 22h, fomos para o chuveiro, e ela me disse: 'Quando vier a contração, você vai botar o dedo lá no fundo e me dizer o que está sentindo'. Eu disse: 'Tem um negócio duro'. E ela me explicou que era a cabeça do neném", relembra. "A enfermeira obstétrica não tinha chegado, e a doula colocou a toalha no chão do box e me orientou: 'Você vai colocar a mão, receber sua criança'. O médico chegou a dizer que ia lá em casa, mas depois disse para irmos ao hospital. Sabíamos que o bebê estava saindo, mas tive que colocar um roupão e um chinelo e ficar de quatro no banco do carro, porque não conseguia sentar. Depois descobri que o CRM (Conselho Regional de Medicina) não deixava o médico fazer parto domiciliar." Ao chegar na maternidade, Enara encontrou sua equipe e foi colocada, emergencialmente, dentro de um consultório médico vazio. "Tinha uma maca e me mandaram deitar. Eu disse: 'De jeito nenhum'. Apoiei o cotovelo na maca, em pé, e assim nasceu Ana, às 23h29", relembra. Apesar do susto, a arquiteta diz que o processo deixou boas lembranças, por que ela teve orientação e a assistência da doula. "Quando ela chegou, me tranquilizou, disse a meu marido o que ele tinha que fazer, e eu tive segurança. Eu poderia ter parido na rua, mas ao menos ela estava ao meu lado. Hoje não tenho na mente registro de pânico, nem da dor", afirma. Mais informação teria feito diferença na experiência de Júlia Assis, segundo ela, mesmo com o susto de dar à luz a caminho da maternidade. "Meu marido e eu lemos tudo o que podíamos. Mas acho que o que poderia ter me ajudado era não começarem o pré-natal com o discurso de que o parto não é rápido. O parto é diferente para cada pessoa. E a gente tem que entender os sinais de como ele pode ser e tentar identificar isso. Acho que é preciso contar mais de uma história, além do parto regular." "E eu falo da perspectiva de uma pessoa privilegiada, que pode pagar uma equipe para me orientar. Me pergunto o que acontece com as muitas mulheres que não podem", pondera. Hoje, no Brasil, o atendimento pré-natal atinge mais mulheres, mas segue de baixa qualidade, segundo Ricardo Tedesco, da Febrasgo. Por isso, as mães nem sempre estão preparadas para as diversas situações que podem ocorrer durante o parto. Para a obstetriz Ana Cris Duarte, a falta de orientação é produto, principalmente, da cultura brasileira em relação à saúde da mulher. "A gente tem uma cultura de que só quem passa informação é o médico. Mas nessas consultas médicas de 10 ou 15 minutos, que são comuns, não dá tempo de educar a paciente. A educação perinatal no Brasil é muito deficiente", afirma. "Na nossa equipe, as mães recebem, com 37 semanas de gravidez, um texto que diz como vai ser o parto, e há todas as possibilidades, inclusive a possibilidade de nascer tão rápido que a mulher esteja no chuveiro ou tão demorado que dure dois dias. Quando se tem uma equipe afinada, a quantidade de partos que acontecem sem assistência é baixa. No nosso caso, foram só 10 em 2 mil." O custo de um atendimento como esses, no entanto, é pouco acessível — o acompanhamento da gestação e do parto por uma equipe multidisciplinar custa, geralmente, a partir de R$ 6 mil. Doulas costumam cobrar a partir de R$ 2 mil. "Hoje já há doulas voluntárias atendendo, grupos de preparação para o parto no Facebook, transmissões ao vivo, há acesso gratuito à informação. Não é absolutamente necessário pagar uma equipe para ter educação perinatal. Mas o mais difícil é separar o joio do trigo, saber o que é a informação correta", alerta Ana Cris. Mulheres mais acostumadas com serviço pesado, por exemplo, muitas vezes toleram um nível de dor que já sinaliza a fase ativa do parto. Outras chegam a ir ao hospital, são examinadas e, como não devem ser internadas com menos de quatro centímetros de dilatação, ouvem apenas que "não está na hora". "Geralmente não tem tempo de conversar com a mulher e explicar em detalhes o que vai acontecer. E aí ela só volta ao hospital quando a bolsa rompe. Só que isso já é o final do trabalho de parto", afirma a especialista. Nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), diz a obstetriz, o pré-natal pode ser inclusive melhor orientado do que no atendimento privado. "Vejo que nas UBS as mulheres têm mais acesso a uma cultura favorável ao parto normal, e o pré-natal é mais compartilhado entre médico e enfermeira. No setor privado, isso é mais difícil acontecer." Pensando nessas lacunas, Ana Cris e um grupo de doulas estão escrevendo um livro digital gratuito para distribuir a gestantes e familiares pela internet, com informações sobre os tipos de parto e suas fases, como ele pode acontecer, como optar por uma equipe, escolher um hospital público e saber a hora de ir à maternidade. "É importante que as mulheres saibam que até um parto muito rápido ou sem assistência pode ser uma boa experiência se a pessoa estiver preparada para isso. Depende da sua orientação, de quem está ao seu lado e também do quanto ela idealizou esse momento."
2023-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3grke5rjj6o
brasil
O que é 'ecoansiedade', angústia pelo planeta que atinge mais crianças e adolescentes
"Eu fiquei espantada como psiquiatra", diz Debora Tseng Chou. "Os entrevistados citam pânico, dificuldade para dormir e a sensação de que estamos atrasados para resolver um problema urgente." São crianças e adolescentes brasileiros que relataram à pesquisadora suas preocupações com as mudanças climáticas — que se desenha como a maior crise desta e das próximas décadas. "A gente não espera deles pessimismo em relação ao futuro. Principalmente numa fase em que a vida é encarada com a perspectiva de que pode ser melhor", diz ela. Chou e seu colega de pesquisa Emilio Abelama Neto ouviram 50 jovens entre 6 e 18 anos nas cidades de São Paulo, Itaparica (BA) e Salvador como parte de um estudo internacional liderado por Laelia Benoit, da Universidade de Yale, nos EUA, sobre emoções relacionadas ao estado do planeta. Parte desses sentimentos se enquadra no que vem sendo chamado de "ecoansiedade": uma palavra que, em inglês, já foi incorporada pelo dicionário de Oxford e é definida pela Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês) como "medo crônico da catástrofe ambiental". Fim do Matérias recomendadas "A expressão 'ecoansiedade' começa a aparecer na literatura, ainda em livros de ecopsicologia, na década de 1990. Mas só agora a gente está vendo esse tema ganhar projeção", diz Marco Aurélio Biblio. Ele é presidente da Sociedade Internacional de Ecopsicologia, um campo nascido formalmente em 1989 nos EUA e que considera o cuidado com o meio ambiente como condição fundamental para o equilíbrio psíquico de um indivíduo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É importante dizer que ecoansiedade "não é uma patologia, não é uma doença mental", como explica a psicoterapeuta britânica Caroline Hickman, uma das maiores especialistas no tema. "A ansiedade tradicional gerada, por exemplo, pelo medo de andar de avião é algo mais particular de um indivíduo. E a raiz do problema pode ser difícil de identificar", diz ela à BBC News Brasil. A angústia ligada à crise climática, por sua vez, possui uma causa bem definida e é caracterizada por um sentimento coletivo, afirma a psicoterapeuta. "A sensação de impotência e frustração surge com a ação insuficiente dos poderes e a falta de consciência em outros setores da população." Do ponto de vista do profissional, Biblio defende que o tratamento para esse tipo de transtorno não deve ser o mesmo da ansiedade tradicional. "A ecoansiedade tem que ser acolhida como uma possibilidade real e para todos. Então é mais inteligente numa situação dessas que o apoio terapêutico seja dado, junto à medicação quando necessário, confirmando o valor da fantasia psíquica do paciente, considerando como um dado real", diz ele. "É importante também que a pessoa que está sofrendo assuma o seu lugar dentro desse momento de grave crise. O profissional dá a confirmação do que o paciente está sentindo e o ajuda a encontrar uma maneira de se posicionar no mundo de maneira a aliviar o risco que a pessoa sente". Ele lembra que "o risco de emergências ecológicas já vem sendo apontado há um bom tempo. Não é uma novidade. Mas continuamos a viver como se nada estivesse acontecendo. Dentro da ecopsicologia, começou a surgir a ideia de que vivemos uma espécie de negação coletiva". "Ou seja, na nossa organização das informações, nós retiramos de circulação aquelas que geram angústia. E aquilo que não se transforma em percepção se torna tensão. Assim, o nível de ansiedade aumenta." Uma entrevistada do estudo internacional relatou, segundo a pesquisadora Chou, que os jovens procuram evitar o tema nos bate-papos informais. "Uma menina me disse: 'A gente não conversa muito sobre isso, porque a gente tem 12, 13 anos. A gente quer conversar sobre outras coisas, fazer piada. Apesar de saber que essas coisas [as mudanças climáticas] são importantes, a gente acaba tentando não pensar'." No entanto, nós recebemos de forma cada vez mais frequente evidências concretas das mudanças climáticas. No Brasil, os exemplos mais visíveis são as enchentes de 2022 em Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Petrópolis (RJ) e, mais recentemente, em São Sebastião (SP) e no Maranhão. Hickman defende que a angústia tem um papel importante agora: um chamado para reconhecer os desafios e encarar a crise de frente. "É uma resposta mentalmente saudável ao que está acontecendo hoje no mundo." A ecoansiedade, de fato, está relacionada ao grau de consciência e nível de informação sobre a crise climática. Antes dos jovens, os cientistas foram os primeiros a sofrer com essa tensão. O climatologista Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e que mantém no YouTube o canal "O que você faria se soubesse o que eu sei?", conta que há quase 10 anos entrou em uma fase de depressão profunda com elementos de ecoansiedade. "Foi por ser pouco ouvido [como cientista] e por questões pessoais que se entrecruzaram. Em 2014, eu fui convidado para um simpósio no Rio e perdi o voo por conta do que estava passando. Pelo carinho de colegas, eu fui convencido a entrar no avião no dia seguinte", relembra Costa. Durante o evento, ele viveu um momento catártico. Uma pessoa da plateia perguntou "como ele conseguia colocar a cabeça no travesseiro, como conseguia seguir adiante?". "Eu tirei da mala a caixa de remédios [ansiolíticos] e disse: 'Só consigo jogando dopado'. Mas o fato de eu ter entrado fundo nisso anos atrás me possibilitou construir minhas defesas mais cedo." Chou observa que, entre seus 50 entrevistados, a inquietação tinha relação não apenas com a familiaridade desses jovens com o tema, mas também com o engajamento buscado por suas escolas e famílias. Esse elementos são, quase sempre, reflexo do recorte socioeconômico — crianças e adolescentes de contextos com mais estrutura e poder aquisitivo possuem mais informações sobre as mudanças climáticas. Camadas sociais com menos recursos apresentam uma noção mais microecológica (limpar a praia, reciclar o lixo) do que climática. Mas a psiquiatra conta que a resposta de alguns contra os gatilhos do tema foi "buscar o engajamento em algumas atividades, tanto na escola quanto por meio das suas famílias, para converter essa ansiedade em ação e militância". O problema também está se refletindo na relação entre os jovens e os pais, diz Caroline Hickman. Um conflito geracional sobre as responsabilidades pelas mudanças climáticas vem ganhando corpo. "Eu já vi filhos que se recusam a falar com os pais porque estão tão magoados, com tanta raiva. Ou que falam: 'Por que vocês me tiveram sabendo que era esse o mundo em que eu ia nascer?'. Isso vem acontecendo. E vai crescer ainda mais". Ela diz que há outro caminho, apontado pelos trabalhos que realiza com pais e filhos juntos: "Se eles trabalham em conjunto para encontrar soluções nem tudo está perdido. Nós podemos encontrar soluções intergeracionais". "Mas só vamos alcançar isso se pedirmos desculpa para as gerações mais jovens. Precisamos reconhecer que nós ferramos com as coisas", afirma a psicoterapeuta, de 61 anos. "Por isso, a psicologia é importante. Para as gerações mais velhas encararem o luto, a culpa e a vergonha que devem sentir." "Porque as gerações mais novas vão olhar para nós e perguntar: 'O que vocês fizeram? Só porque vocês não vão lidar com esse problema, vocês acharam que dava para esperar e deixaram para lá. Agora a escala das mudanças está rápida demais'." Hickman defende a normalização do tema, mesmo com crianças pequenas. "Crianças de três anos conseguem entender em algum grau os desafios das mudanças climáticas, mesmo que não entendam exatamente o todo. Adultos podem falar que nem sempre as decisões certas são tomadas, mas que nós podemos fazer ajustes para corrigir o rumo. E as crianças da família podem fazer parte nisso, conversando sobre as escolhas do dia a dia da família". O climatologista Alexandre Costa, que tem três filhas, afirma: "Hoje eu vou defender o que puder desse colapso. Nós precisamos do completo oposto do conformismo, do 'tanto faz'." Como indaga um verso premonitório da banda alemã Atari Teenage Riot, escrito mais de uma década atrás: "será necessária outra crise para fazer uma outra geração entrar em ação?".
2023-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84m3j2nx7po
brasil
Os gráficos que mostram os paradoxos da expectativa de vida no Brasil
A expectativa de vida do brasileiro cresceu 40% nos últimos 60 anos. Mesmo assim, o país tem o segundo pior índice entre as dez maiores economias do mundo. Em seis décadas, os brasileiros foram superados pelos chineses no tempo esperado de vida e seguem à frente apenas dos indianos — enquanto isso, a diferença em relação aos japoneses, líderes do ranking, supera os dez anos. Em comparação com os vizinhos da América do Sul, o Brasil historicamente só tinha índices melhores que Bolívia e Peru. Mas os números melhoraram a partir dos anos 1990 e se aproximam cada vez mais do que é observado em outras nações mais longevas da região, como Argentina, Chile e Uruguai. Em suma, a expectativa de vida é indicador que avalia quantos anos um indivíduo que acaba de nascer deve viver se as condições econômicas, sociais, políticas e de saúde público permanecerem as mesmas dali em diante. Ou seja: espera-se que um brasileiro que veio ao mundo no dia de hoje, diante de todos os fatores atuais, viva 74 anos, em média. Esse limite pode subir ou cair, a depender de como a realidade e as políticas públicas mudem — para melhor ou para pior. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, Índia, Reino Unido, França, Itália, Brasil e Canadá formam hoje o grupo das dez maiores economias do mundo. Quando o assunto é expectativa de vida, há assimetrias gritantes entre essas nações. Segundo as estatísticas da ONU e do Banco Mundial, espera-se que um japonês viva em média 84,6 anos e um italiano chegue aos 82,3. Já um brasileiro alcança ao redor de 74 e um indiano os 70,1. Falamos, portanto, de diferenças que superam uma década de vida de acordo com a nação onde um indivíduo nasce. A figura se inverte quando analisamos a mudança relativa na expectativa de vida — ou quanto esses números subiram entre 1960 e 2020. Nas nações historicamente mais ricas (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Alemanha, França e Itália), esse crescimento fica abaixo dos 20%. A única exceção é o Japão, que ampliou o índice em 25% nas últimas seis décadas. Já nos três países emergentes, essa aceleração é bem mais rápida: no Brasil, a expectativa de vida cresceu 40% nesse meio tempo. A porcentagem é ainda maior na Índia (55%) e na China (134%). Para ter ideia, um chinês vivia 33,2 anos em 1960. Em 2020, essa média estava em 78 anos. A demógrafa brasileira Márcia Castro, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, explica que essas subidas aceleradas de Brasil, Índia e China podem ser explicadas pelo impacto que algumas medidas têm em regiões menos desenvolvidas. "Falamos de países em que a carga das doenças infecciosas e da mortalidade infantil era muito alta, o que impactava na expectativa de vida", contextualiza. "Portanto, quando você cria políticas de redução da mortalidade infantil, de vacinação, de saneamento e de atenção básica em saúde, o efeito é amplo e as pessoas acabam vivendo mais anos", ensina. E isso, por sua vez, faz a média da expectativa de vida da nação subir. Nos países mais ricos — Reino Unido, França, Itália, Japão… — problemas como as doenças infecciosas e a alta frequências de óbitos precoces de crianças já foram superados há tempos, bem antes dos anos 1960. O principal desafio deles, então, é lidar com os ajustes finos das doenças crônicas não transmissíveis, que são típicas do envelhecimento e do estilo de vida moderno, como a obesidade, o câncer, a hipertensão e o diabetes. E, mesmo se eles tiverem programas de diagnóstico e tratamento muito eficazes para essas enfermidades, o efeito dessa melhora no tempo de vida dos cidadãos será naturalmente mais tímido. "Afinal, há um limite de quanto tempo o ser humano consegue viver. Com isso, os países que já têm expectativas de vida maiores tendem a crescer menos na média em anos recentes", complementa a médica e epidemiologista Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ao longo das seis últimas décadas, Chile, Uruguai e Argentina mantiveram a dianteira da América do Sul quando o assunto é expectativa de vida. Apesar de ser a maior economia da região, o Brasil sempre esteve nas últimas posições desse ranking, ao lado de Bolívia e Peru. Para ter ideia, um argentino vivia uma média de 63,9 anos em 1960, enquanto o brasileiro só chegava até os 52,6 — uma diferença de 11 anos. A situação começou a mudar de figura a partir dos anos 1990, quando essa disparidade em relação a alguns vizinhos sul-americanos começou a ficar cada vez menor. Enquanto a expectativa de vida do Brasil subiu 5,3% na década de 1990, essa taxa se elevou em 2,7% na Argentina e 2,2% no Uruguai. Mesmo assim, esses países ainda têm índices superiores: hoje em dia, espera-se que um argentino viva por 75,8 anos, enquanto um brasileiro chegue aos 74. Mas o que explica essa retomada de nosso país nas últimas três décadas? "Os anos 1990 marcam a estabilização da economia, a criação de programas direcionados à população mais vulnerável e a implementação de um sistema de saúde público e universal", lista Castro. "O Sistema Único de Saúde (SUS) foi, e continua a ser, um dos maiores mecanismos de redução de desigualdade, acesso à saúde e diminuição da mortalidade já criados no Brasil", diz ela. A professora de demografia aponta que vários trabalhos científicos mostram exatamente isso: a construção de uma rede de saúde pública espalhada pelo país permitiu melhorar vários dos indicadores populacionais, como a própria expectativa de vida. O SUS se encaixa, portanto, numa daquelas intervenções universais que produzem um impacto gigantesco, como explicado no tópico anterior. "Antes do SUS, muitas pessoas dependiam quase exclusivamente da caridade das Santas Casas de Misericórdia", reforça Kerr, que também é professora da Universidade Federal do Ceará. A epidemiologista também chama a atenção para as políticas de transferência de renda nesse contexto. "Uma das coisas que mais impacta a qualidade e a expectativa de vida é a desigualdade", pontua. "Temos inúmeros estudos mostrando como programas no estilo Bolsa Família são capazes de reverter situações de pobreza e ameaças à saúde", complementa. Mas isso, claro, não quer dizer que todos os problemas do país estejam resolvidos e tenhamos atingido um teto na expectativa de vida. "Ainda temos os chamados bolsões de inequidade, que muitas vezes ficam mascarados numa grande média nacional", conta Castro. "Há municípios e regiões inteiras do Brasil com altos índices de mortalidade infantil ou doenças infecciosas que necessitam de políticas públicas voltadas aos mais vulneráveis", completa. Agir nesses locais específicos, portanto, é um dos caminhos para ampliar ainda mais a expectativa de vida do brasileiro — e se aproximar ou até superar o que é observado entre os vizinhos sul-americanos. Quando analisamos especificamente os Brics — o bloco composto pelas economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — é possível ver como as curvas de expectativa de vida podem melhorar ou piorar com o passar do tempo. Neste grupo de nações, o Brasil é a que mantém uma trajetória ascendente, sem grandes subidas ou descidas. Mas repare bem o que acontece com os demais, especialmente com China e Rússia. Enquanto os chineses têm um salto de 134% na expectativa de vida em seis décadas, os russos chegam a ter um decréscimo de 4,2% neste indicador ao longo dos anos 1990. Isso faz com que a expectativa de vida da Rússia tenha uma janela de menos de quatro anos entre o que foi registrado em 1960 (67,4 anos) e 2020 (71,3). Nos demais integrantes do Brics, essa diferença é bem maior: aconteceram "pulos" de 12 anos na África do Sul, de 21 no Brasil, de 24 na Índia e de 44 na China. Segundo as especialistas ouvidas pela BBC News Brasil, esse fenômeno reflete todo o turbilhão político pelo qual este país passou no período, com o fim da União Soviética. "Os eventos de saúde estão diretamente relacionados com a situação social em que as pessoas vivem", contextualiza Kerr. "O fim da União Soviética representou a perda de empregos, de direitos e de toda uma organização social que eventualmente impactaram a expectativa de vida dos russos", complementa a médica. Castro concorda: "O colapso de todo um sistema político e econômico gerou rupturas em várias dimensões, que afetaram inclusive a saúde e o bem-estar das pessoas e causaram um choque de mortalidade." Esse tal choque de mortalidade, inclusive, também pode ser visto mais recentemente em escala global, com a pandemia de covid-19. Em todos os gráficos, é possível ver que vários países apresentaram uma queda na expectativa de vida em 2020, primeiro ano de espalhamento do coronavírus mundo afora. A tendência é que essa trajetória de descenso apareça também em 2021 e 2022, mas os dados ainda estão sendo compilados por Banco Mundial e ONU. "Mas é preciso destacar a carga de desigualdade, pois o choque de mortalidade foi diferente de acordo com o Estado ou o sexo", resume. "E essa foi uma mudança muito dramática e inesperada", conclui a professora.
2023-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1ekewggqwlo
brasil
Investimento baixo dos EUA no Fundo Amazônia dificulta aproximação com Brasil, dizem analistas
Apesar de ser muito maior do que os US$ 50 milhões inicialmente anunciados, o valor — se aprovado pelo legislativo americano — será diluído ao longo de cinco anos e ainda é considerado um compromisso tímido dos EUA diante das expectativas do governo brasileiro, dizem analistas de política internacional. O anúncio acontece logo após um esfriamento na relação entre os dois países, mas o compromisso de pedir esse valor ao Congresso não é suficiente para incentivar uma reaproximação do Brasil com Washington, afirmam. A relação entre os dois países, que estava em crise durante os dois últimos anos do governo Bolsonaro, teve uma mudança de tom com a posse de Lula em janeiro. A decisão de retomar o uso do fundo — que esteve congelado ao longo do governo Bolsonaro — foi elogiada por Washington. Mas, apesar da retórica positiva de Biden sobre a importância da democracia, a falta de compromissos mais concretos de parcerias acabou levando a um afastamento do governo Lula, afirma o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma. Fim do Matérias recomendadas “Apesar da narrativa positiva dos EUA sobre a democracia e a preservação da Amazônia, na hora de assumir um compromisso financeiro, o valor foi muito baixo, o que gerou descontentamento no Planalto", analisa Souza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Os EUA gostariam que o Brasil assumisse uma posição pró-americana em uma série de temas, mas o governo brasileiro precisa de sinais concretos de cooperação — sobretudo financeira — porque precisa da entrada massiva de recursos para poder tocar sua agenda em várias áreas”, afirma Souza, apontando que essa cooperação é central especialmente para a agenda ambiental. O discurso de retomada da proteção ao ambiente, com combate ao desmatamento e olhar para as mudanças climáticas, foi um ponto importante na campanha eleitoral de Lula, que trabalhou para trazer Marina Silva e prometeu a criação de uma autoridade climática. No entanto, aponta Souza, esse tipo de política, como qualquer uma que precisa de fiscalização, demanda muito dinheiro. “E a partir do momento em que fica claro que os EUA, apesar do discurso, não vão assumir compromissos mais concretos, o governo vai procurar em outro lugar — e o destino óbvio é a China”, afirma Souza. “Lula volta de Pequim com 15 acordos que somam US$ 50 bilhões. Não é um resultado ruim em um cenário econômico recessivo. O Brasil queria mais, mas conseguiu algo.” Para Dawisson Belém-Lopes, professor de política internacional na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o governo Lula dá indícios de que vai voltar a ter uma política internacional “pendular” e pragmática, ou seja, se aproximar das potências que oferecem mais acordo e cooperação. O Brasil não tem tido um tratamento prioritário pelos Estados Unidos já há alguns anos, afirma Belém-Lopes, e uma explicação possível é a ideia de que o nosso apoio é, de certa forma, “garantido”. “A ideia de que os EUA imaginam que o Brasil já pertence a uma esfera de influência e portanto não valeria a pena mobilizar recursos é algo que faz sentido quando se olha a relação dos EUA com diversos outros países, como por exemplo no norte da África”, diz o pesquisador. Ele cita o Marrocos e o Egito como exemplos. Como o Marrocos tem um histórico de “alinhamento automático” com os EUA, o país é considerado como um apoio garantido. “No Egito os EUA investem muito mais, botam mais recursos, tomam mais cuidado, o presidente vai ao Cairo, faz discurso”, diz Belém Lopes. Para o Brasil, o “alinhamento automático” também não rendeu um tratamento cuidadoso e prioritário durante o governo Bolsonaro. Nos primeiros dois anos do ex-presidente Jair Bolsonaro, quando Donald Trump estava à frente da presidência americana, o Brasil assumiu uma postura de alinhamento político com a potência sem exigir grandes contrapartidas, aponta Belém-Lopes. Era uma postura muito menos voltada a uma estratégia de negociação internacional e mais focada em agradar a base ideológica de Bolsonaro, analisa o cientista político. A relação mudou quando Joe Biden assumiu a Casa Branca em 2021, mas não de forma que rendesse alguma negociação positiva — a postura do governo Bolsonaro em relação ao ambiente e os ataques feito pelo presidente às urnas foram fortemente criticados por Washington. Com a mudança para o governo Lula, aponta Creomar de Souza, o governo Biden pode ter feito a leitura de que bastava uma retórica de apoio à democracia, ao ambiente e de respeito ao resultado das eleições para conseguir posturas internacionais pró-EUA do Brasil. “Mas Lula assume a presidência com um alto nível de ansiedade e tendo assumido muitos compromissos — toda a fala de reconstruir o país, por exemplo. Se o governo não entregar o que prometeu, especialmente na área econômica, vai enfrentar muitos problemas”, diz Souza. “É essa necessidade de apoio sobretudo financeiro que baliza a estratégia internacional.” Belém-Lopes afirma que, embora o Brasil tenha historicamente uma duradoura relação de proximidade e confiança com os EUA, outros presidentes já flertaram com possibilidades de aproximação com outras potências para conseguir alavancar acordos e concessões em melhores termos com os americanos. “Durante o governo de Juscelino Kubitschek, auge da Guerra Fria, uma corrente dentro do governo afirmava que o Brasil poderia ser ‘presa fácil’ para os soviéticos se não houvesse maior aporte de recursos pelos americanos. O saldo disso foi a criação do BID (Banco Interamericano do Desenvolvimento)”, diz o pesquisador. Para Belém-Lopes, a falta de prioridade para o Brasil na agenda de Washington também pode ter uma explicação mais sistêmica. “A agenda dos EUA para a América Latina é uma agenda negativa, não uma agenda programática, positiva”, afirma. “O tema do meio ambiente, por exemplo, entra na chave do ‘é necessário impedir o desmatamento’, esse foi o tom de Biden na campanha contra o Trump. Mas além disso, a agenda do país para a América Latina é uma agenda voltada para discutir crimes — imigração ilegal, narcotráfico, fraude”, afirma o pesquisador. “O Brasil acaba se inserindo no bojo dessa abordagem dos EUA para o hemisfério.”
2023-04-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp4v8z1r9dqo
brasil
Como surgiu mito de que o Brasil foi descoberto sem querer
Qualquer um que tenha passado pelos bancos escolares brasileiros até meados dos anos 1980 certamente aprendeu uma floreada história sobre o episódio chamado de descobrimento do Brasil, o dia em que o navegador português Pedro Álvares Cabral (1467-1520) e sua comitiva avistaram as terras que depois se tornariam a maior colônia lusitana, em 22 de abril de 1500. Trata-se de uma narrativa épica, em que Cabral e seus comandados enfrentavam a fúria do Atlântico para consolidar a então nova rota comercial que ligava a Europa à Índia, contornando o continente africano e dobrando o Cabo da Boa Esperança. Mas então, nervosas que estavam as águas do oceano e sob intensa tempestade com forte ventania, as embarcações acabaram sendo obrigadas a ajustar a rota, “abrindo” cada vez mais para o oeste e distanciando-se da costa da África. Até que, acidentalmente, chegaram às tais novas terras, “descobrindo” o Brasil e tomando posse do território, com direito a celebração de missa e troca de presentes com os nativos. E assim, apregoavam os professores de história do ensino primário de antigamente, havia nascido o Brasil. Historiadores contemporâneos, contudo, colocam em xeque esta narrativa. Não há um consenso por que os documentos conhecidos são poucos e não explicam com clareza. Mas o que a grande maioria concorda é que Cabral ao menos sabia que encontraria alguma coisa indo por ali — não necessariamente um território tão grande. Fim do Matérias recomendadas E que parte de sua missão, além de consolidar a nova rota para a Índia, selando o sucesso empreendido anteriormente por Vasco da Gama (1469-1524), era estabelecer a conquista daquilo que havia sido garantido à coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas, firmado seis anos antes com a Espanha. Por que então foi criado o mito da descoberta por acaso? Quais eram os interesses dessa historiografia que foi tratada como verdadeira sobretudo do início do século 19 até a década de 1980? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato explica à BBC News Brasil que essa versão “foi construída principalmente no século 19”. “O Brasil e o mundo passavam por um contexto de formação dos nacionalismos modernos, com o desenvolvimento de histórias teleológicas, com começo, meio e fim, muito lineares”, comenta ele. “Essa ideia de descobrimento é muito fortificada no século 19 pela monarquia brasileira e tem a intenção clara de criar um caminho reto, progressista, entre uma determinada ideia de descobrimento de um povo que está em busca de algo, juntamente com uma terra que necessita ser descoberta”, diz Missiato. Durante o período colonial, Portugal parece não ter feito questão de acentuar se a conquista do território brasileiro havia se dado de propósito ou não — a intencionalidade do feito não estava no centro das preocupações, a julgar pelos registros produzidos. “Se a descoberta foi acidental ou não, na época não havia problemas com isto”, afirma à BBC News Brasil o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor da Unesp. “O que realmente interessava a Portugal era efetivar a posse do território que lhe pertencia pelo direito atribuído pelo Tratado de Tordesilhas.” Como enfatiza Rodrigues, “o importante foi a posse, mesmo que nosso processo de povoamento fosse tardio, uma vez que o interesse português naquela época estava no Oriente, por causa das riquezas proporcionadas pelo comércio das especiarias.” “A notícia do achamento de novas terras, a [então chamada de] Terra de Santa Cruz, pela expedição de Cabral ganhou a Europa rapidamente por cartas de mercadores radicados em Lisboa e pelo próprio rei, que espalhavam aos quatro cantos a descoberta de terra firme que lhe pertenciam no além-mar”, conta Rodrigues. “Se foi por acaso ou não, essa questão não interessava. O que valia era efetivar o direito de posse.” Para a historiadora Clarissa Sanfelice Rahmeier, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), “toda a história do descobrimento ou achamento do Brasil deve ser entendida à luz de, no mínimo, dois elementos que caracterizavam o contexto em que se deu a vinda dos europeus para cá”. São eles os tratados de limites estabelecidos entre Portugal e Espanha “e a situação socioeconômica vivenciada pelos países ibéricos à época da chegada de Cabral”. “A narrativa que apresenta a versão da chegada por acaso deriva do primeiro elemento, referente à disputa, por Portugal e Espanha, das terras achadas ou por achar no processo de expansão marítima impulsionado pelos dois países”, pontua ela. Isso porque, como a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas não era precisa, tanto o planejamento quanto a comunicação das viagens exploratórias eram impactados. “Havia várias interpretações a seu respeito e a falta de uma exata localização, bem como o desconhecimento do que seria encontrado nas terras do além-mar”, afirma Rahmeier. A historiadora ressalta que foi por conta disso que a coroa portuguesa financiou a viagem do explorador Duarte Pacheco Pereira (1460-1533) em 1498. Muitos acreditam que ele — e não Cabral — tenha sido o primeiro português a pisar nas terras que hoje são o Brasil. “A viagem foi mantida em segredo e os relatos advindos dela também”, destaca Rahmeier. “Se considerarmos a expansão marítima uma corrida por territórios, e pelas potenciais riquezas que eles teriam, entendemos melhor a não divulgação da viagem de Pacheco Pereira. Manter os planos da viagem em segredo não chamaria a atenção dos espanhóis para a região a que Portugal se destinava. Além disso, argumenta-se que Pacheco Perreira aportou em terras onde os limites do Tratado de Tordesilhas não eram claros, no norte do que hoje é o Brasil, na região onde [atualmente] se localizam os estados do Maranhão e do Pará.” Segundo ela, “a divulgação da viagem poderia despertar o interesse dos espanhóis para essa região fronteiriça”. Daí veio a viagem empreendida por Cabral. “A opção do rei Dom Manoel 1º, então rei de Portugal, foi organizar uma nova expedição com o intuito de tomar posse de uma área que seria certamente de domínio português de acordo com o Tratado de Tordesilhas”, explica ela. “Assim, a expedição de Cabral foi montada com o intuito de chegar a terras que com certeza pertencessem a Portugal e, assim, tomar posse do que fosse encontrado. Foi o que ocorreu.” Rahmeier acrescenta que como os documentos da viagem de Pacheco Pereira foram mantidos em sigilo, a expedição oficial de Cabral, “realizada em 1500 e com o intuito de tomar posse do que era português antes mesmo do achamento se tornou o centro das narrativas do descobrimento”. “O tamanho da expedição de Cabral e o fato de sua frota seguir para as Índias após a tomada de posse das terras além-mar acabaram por reforçar a versão da descoberta acidental do Brasil”, salienta. “Essa narrativa se perpetuou mesmo após os documentos relativos à viagem de Pereira serem divulgados, no século 19.” No caso, é o documento ‘Esmeraldo de Situ Orbis’, um manuscrito de autoria do próprio Pacheco Pereira, escrito no início do século 16 — mas que foi mantido como secreto por Portugal até ser reencontrado e publicado no fim do século 19. No documento, o explorador faz uma descrição que possibilita interpretar que ele esteve no território. Escreveu ele que, em 1498, “vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passando além da grandeza do mar Oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela e é grandemente povoada”. “Tanto se dilata sua grandeza e corre com muita lonjura, que de uma parte nem da outra não foi visto nem sabido o fim e cabo dela”, relatou. “É achado nela muito e fino brasil com outras muitas cousas de que os navios nestes reinos vêm grandemente povoados.” De acordo com a historiadora Rahmeier, este documento costuma ser interpretado como registro da viagem de Pacheco Pereira ao Brasil — e confirmaria que a sua viagem teria fornecido as bases para a expedição de Cabral. “[Este documento vem à tona no fim do século 19] quando a narrativa do descobrimento acidental por Cabral já era amplamente consolidada na historiografia oficial, em currículos escolares e na imaginação sobre o descobrimento”, diz a professora. Para o historiador Victor Missiato, não há dúvidas de que quem consolidou essa ideia de “descobrimento por acaso” foi o império brasileiro, no contexto da pós-independência. É do período a construção do imaginário a respeito do episódio da chegada dos portugueses. “Se a gente pegar aquela obra do [pintor Victor] Meirelles [(1832-1903)], ‘Primeira Missa no Brasil’ [feita entre 1869 e 1861], há toda uma referência de um destino manifesto por parte da Igreja e de Portugal, no sentido de trazer a palavra, a verdade, o sentido de colonização para essas terras”, comenta ele. Foram assim erguidas as bases da narrativa. Segundo Missiato, “o descobrimento de um povo que vai construir sua história a partir das ideias do catolicismo e do nacionalismo”. “Essa versão [da descoberta ‘sem querer’] durou muito tempo porque primeiro ela se constituiu como uma história oficial no século 19 e essa ideia de história oficial que se utiliza apenas de fontes oficiais, durante muito tempo, foi considerada a história científica da modernidade”, aponta Missiato. Durante décadas, “toda a sociedade brasileira foi formada a partir dessa ideia oficial de descobrimento do Brasil”, ressalta o pesquisador. A partir dos anos 1930, ideias diferentes começaram a surgir no âmbito acadêmico. Mas ainda levaria muito tempo para serem adotadas essas versões pelos livros e apostilas escolares. “Havia interesses claros no sentido de perpetuar uma perspectiva redentora, salvadora e ao mesmo tempo uma perspectiva centralizadora da história do Brasil”, comenta ele. Afinal, uma chegada por acaso tira o peso da “conquista planejada”, que pode ser interpretada como nociva e dominadora. Uma descoberta acidental, fortuita, parece evocar um capricho do destino, facilitando a conexão mítica com ideias de salvação e redenção. O historiador André Figueiredo Rodrigues, contudo, recomenda cuidado antes de defender este ou aquele ponto de vista interpretativo. Ele enfatiza que “a documentação contemporânea da viagem de Cabral não permite estabelecer com precisão se a chegada portuguesa em terras nas Américas foi acaso ou intencionalidade”. Ele ressalta que o relato mais importante, a carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500), foi reconhecido como “o documento do descobrimento” apenas em 1817. “E somente após o fim da década de 1980, mais ou menos, é que outros 13 documentos coevos se juntaram ao rol do que chamamos de ‘documentos do descobrimento’”, comenta. “Dados constantes nesses novos documentos permitem acreditar que o território que mais tarde será chamado de Brasil foi pelo menos visitado por outros viajantes antes da chegada da esquadra de Cabral.” Rodrigues situa “a dúvida acerca do acaso ou intencionalidade do descobrimento” por conta da expedição realizada por Vasco da Gama à Índia em 1498. “Para formalizar acordos ali estabelecidos, o rei de Portugal armou a expedição de Cabral para atender aos requisitos do samarim, o senhor da cidade de Calicute, e de outros senhores do Oriente para trazer para a Europa as especiarias do Oriente”, contextualiza Rodrigues. “A expedição de Cabral tinha como objetivo retornar às Índias e estabelecer acordos comerciais locais. No trajeto e com receio de perder seus territórios nas Américas, a esquadra desembarca no Brasil, tomando posse oficial das terras nas Américas pertencentes a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas.” “Nessa história, um dado se soma: esse tomar posse das terras pertencentes a Portugal nas Américas ocorreu por acaso. É isso que se acreditava, pois os fatos narrados acima não eram de conhecimento, e a carta de Caminha vislumbra-se pelo acaso e não pela intencionalidade”, aponta ele. Até 1817, quando o texto de Caminha foi descoberto e tornado público, nem a data era sabida. Acreditava-se que o Brasil havia sido descoberto pelos portugueses em 3 de maio de 1500, e não 22 de abril — daí o nome dado de Terra de Santa Cruz, já que celebra-se esse dia em tal data. E se a questão surgiu em 1817, isso acabou sendo incorporado como narrativa pelo Império Brasileiro, logo após a Independência de 1822 — e com os interesses em se criar uma identidade nacional. “O fato de inicialmente conhecermos apenas uma versão dos fatos levou-nos a acreditar na proposta do acaso, baseada apenas na versão dos documentos divulgadas pelos cronistas”, acrescenta Rodrigues. “Mas com a divulgação esporádica de documentos ao longo do século 19, questionamentos passaram a suscitar dúvidas sobre o achamento das terras do Brasil”, comenta. Possivelmente o primeiro a levantar essa lebre foi o historiador Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891). Em 1852, ele publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um artigo chamado ‘O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral foi devido a um mero acaso ou teve ele alguns indícios para isto?”. “[Ali, ele] defendia a intencionalidade da descoberta efetuada por Cabral. É a partir de então que se inicia o debate, que se arrasta até hoje”, diz Rodrigues. “Joaquim Norberto de Sousa e Silva é quem revoluciona a interpretação [da chegada por acaso], trazendo à luz novos questionamentos como o que contesta o desembarque involuntário da esquadra de Cabral no litoral da Bahia, ocasionado pela corrente marítima equatoriana”, explica o historiador. “Se os ventos fossem os responsáveis pelo desvio da rota, a armada de Cabral deveria ter chegado ao litoral brasileiro mais ao norte e não na altura de [onde hoje fica] Porto Seguro.” O poeta Gonçalves Dias (1823-1864) usa a mesma revista para publicar um texto refutando Sousa e Silva. “[Ele indica] que o encontro do Brasil foi por acaso e que o ato da intencionalidade retiraria de Cabral o seu grandioso feito de nosso descobrimento”, analisa Rodrigues. De qualquer forma, esta não parecia ser uma questão que importava, naquele momento. A partir de 1861, o livro Lições de História do Brasil, do escritor, médico e professor Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) acabou se tornando um material didático amplamente difundido no Brasil. E suas ideias, conforme ressalta Rodrigues, “circulavam pelas escolas como reprodutora de nossa história nacional e promulgadora do patriotismo estimulado aos jovens”. “Foi o grande livro da época… Em suas páginas, quando se lê sobre o descobrimento, nada existe sobre a polêmica intencionalidade ou acaso”, frisa o historiador. “O que ele fez foi valorizar a presença portuguesa em terras americanas, nada mais.”
2023-04-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c04me811jmmo
brasil
Lula viaja a Portugal em busca de acordos e sob críticas por declarações sobre guerra na Ucrânia
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chega nesta sexta-feira (21/4) a Portugal para uma visita oficial em meio a críticas de partidos de oposição em relação a suas declarações sobre a guerra na Ucrânia e com uma manifestação contra a sua presença convocada pela maior força de extrema-direita do país. O petista decidiu antecipar seu embarque para Lisboa para a noite de quinta-feira (20/4) — inicialmente a previsão era que ele partiria de Brasília na manhã desta sexta-feira (21/4). Com a mudança, ele aterrissou na capital portuguesa ainda nesta manhã. Ele fica em Portugal até a próxima terça-feira (25/4), quando viaja à Espanha. Em Madri, Lula deve permanecer por apenas um dia. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26/4). Em Portugal, Lula participa da cúpula bilateral Portugal-Brasil, reunião conjunta dos dois governos, e tem encontros marcados com o primeiro-ministro português, António Costa, e com o presidente, Marcelo Rebelo de Souza. Também deve entregar o prêmio Luiz de Camões, a principal premiação de literatura em língua portuguesa, ao cantor, compositor e escritor Chico Buarque, que o venceu em 2019, mas até agora não o recebeu, entre outras razões, pela recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em assinar o diploma de concessão e, posteriormente, pelo confinamento imposto pela pandemia de covid-19. Além disso, Lula deve participar de uma sessão solene de boas-vindas no Parlamento português (Assembleia da República) na próxima terça-feira (25/4), dia da celebração da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura militar em Portugal — inicialmente, Lula faria um discurso por ocasião da data comemorativa, mas o convite gerou polêmica, e partidos de oposição se manifestaram contra a iniciativa (ler mais abaixo). Ele seria o primeiro chefe de Estado estrangeiro a discursar na cerimônia. Segundo o Itamaraty, a expectativa é que os representantes dos dois países assinem dez acordos e termos de cooperação. Entre eles, estão o que concede equivalência aos Ensinos Fundamental e Médio do Brasil ao de Portugal e o que permite que a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) tenha validade permanente em Portugal, e vice-versa. Na sequência, Lula viaja à Espanha, onde deve se encontrar com empresários, com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, e com o rei Filipe 6º. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A visita de Lula a Portugal acontece em meio à repercussão negativa das declarações do brasileiro sobre a guerra na Ucrânia. Membro da União Europeia e da Otan, a aliança militar ocidental, Portugal tem declarado apoio aberto ao país invadido pela Rússia e chegou, inclusive, enviar tanques Leopard a Kiev. As críticas vieram de partidos de oposição e da associação de ucranianos em Portugal. Em visita recente aos Emirados Árabes Unidos, onde fez uma parada depois de sua viagem à China, o petista atribuiu aos EUA e à União Europeia, a responsabilidade pelo prolongamento da guerra na Ucrânia. "O presidente [Vladimir] Putin não toma a iniciativa de parar. [Volodymyr] Zelensky não toma a iniciativa de parar. A Europa e os Estados Unidos continuam contribuindo para a continuação desta guerra", disse. No início do mês, Lula já havia afirmado que a Ucrânia poderia ceder a Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, em nome da paz. Após a polêmica, o petista condenou a invasão russa da Ucrânia. "Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito", disse Lula em encontro com o presidente da Romênia, Klaus Werner Iohannis nesta semana. O vice-presidente do PSD, Paulo Rangel, cobrou do governo "tomar uma posição pública e formal" sobre as falas de Lula. Já Rui Rocha, líder do partido opositor Iniciativa Liberal, afirmou que o Parlamento português "não pode receber um aliado de Putin como Lula no 25 de abril". Ele lembrou que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, discursou por videoconferência no local. "A AR (Assembleia da República, o Parlamento português) que convidou Zelensky para discursar em 21 de Abril de 2022 não pode receber um aliado de Putin como Lula no 25 de Abril. E o Presidente da República que atribuiu a Ordem da Liberdade a Zelensky não pode estar confortável com a presença de um aliado de Putin como Lula na AR no 25 de Abril", escreveu Rocha em sua conta pessoal no Twitter. Por outro lado, Jamila Madeira, vice-presidente da bancada parlamentar do PS, defendeu que Lula tem procurado fomentar "a busca pela paz" na Ucrânia, tal como o presidente da França, Emmanuel Macron. Já o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, disse não estar arrependido de ter convidado Lula para discursar no Parlamento português. Segundo ele, Portugal não teria relações com grande parte do mundo se as cortasse devido a divergências relativas à política externa. "Não me arrependi coisa nenhuma. A posição portuguesa é clara: a Rússia é que invadiu a Ucrânia, não a Ucrânia que invadiu a Rússia. Portugal e a UE estão a apoiar a Ucrânia e vamos continuar. Direi-o ao presidente Lula e ao presidente da Índia, que vem a seguir, e aos presidentes do Senegal e da Argélia, que também virão a Portugal", disse. Rebelo de Sousa acrescentou que os partidos da oposição têm todo o direito de criticar a posição de Lula, uma vez que "vivemos em democracia", mas que se trata de uma "relação entre Estados". "Discordamos, mas não temos nada a ver com isso. Cada país tem a sua política externa, se estivermos de acordo melhor, mas se não estivermos de acordo com a nossa política interna e externa, não teríamos relações com 3/4 do mundo", completou. A Associação dos Ucranianos em Portugal, por sua vez, preparou uma carta para entregar a Lula na noite desta sexta-feira em frente à embaixada do Brasil, segundo disse o presidente da entidade, Pavlo Sadokha, à BBC News Brasil. A oposição mais forte à visita de Lula vem do partido de direita radical Chega, capitaneado pelo deputado André Ventura. A sigla divulgou nas redes sociais uma convocação para um protesto contra o petista no próximo dia 25 do lado de fora do Parlamento português. "Lugar de ladrão é na prisão", diz a chamada para a manifestação, que faz referência à prisão de Lula em 7 de abril de 2018. A convocação do ato foi compartilhada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que descreveu a manifestação como "justa". O perfil do Chega no Twitter respondeu ao post do deputado dizendo que "Lula, não é bem-vindo em Portugal!". Fundado em 2019, o Chega, que se define como um partido "conservador, liberal e nacionalista", tem no discurso anti-imigrante um de seus principais alicerces e é hoje a terceira maior força no Parlamento português, com 12 deputados. O Partido Socialista (PS), que governa o país, ainda tem maioria absoluta, com 120 deputados. Em 13 de janeiro deste ano, em sessão no Parlamento português, Ventura chamou Lula de "bandido". Na ocasião, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva (Partido Socialista), reagiu e afirmou se tratar de "uma expressão ofensiva em relação ao presidente de um país muito amigo de Portugal". Apesar disso, Ventura replicou e disse ser "difícil se referir ao presidente do Brasil de outra forma". Ao fim de sua fala, o líder do Chega condenou, no entanto, "os ataques às instituições e a violência" dias antes, em 8 de janeiro, quando milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos três poderes em Brasília. Mais recentemente, em vídeo enviado às redações em Portugal, Ventura reafirmou a promessa de que o partido vai "mesmo organizar a maior manifestação de sempre contra um dignatário estrangeiro em Portugal", mobilizando "portugueses e brasileiros, todos os que se quiserem juntar, para mostrar que o centro-direita e a direita portuguesa não são o PSD, não são este PSD". O PSD é o principal partido de oposição em Portugal e a segunda maior bancada no Parlamento, com 77 deputados. Segundo Ventura, Lula deve ser condenado pela "proximidade com a Rússia", pela "incapacidade de ver o sofrimento do povo ucraniano", pela "sua proximidade à China", pela "hesitação em condenar as ditaduras sul-americanas" e "acima de tudo e sobretudo, pelo nível de corrupção que representa". Para o líder do Chega, o PSD está enfraquecendo a direita e ajudando a esquerda a crescer. "É ultrajante ver um partido que deve liderar a centro-direita dize que saúda a presença de Lula no dia 25 de abril em Portugal no dia da conquista democrática, no dia da nossa celebração democrática", disse Ventura em referência ao PSD. "É muito triste ver a direita e a centro-direita em Portugal assim. É esta atitude medrosa, hesitante, mariquinhas que leva a que tenhamos a esquerda a crescer a nível mundial e sempre a apontar o dedo à direita, incapaz de resistir", acrescentou. Em maio, Ventura deve receber Bolsonaro e o vice-primeiro-ministro da Itália, Matteo Salvini, além de outros nomes da extrema-direita para uma cúpula mundial organizada pelo Chega em Lisboa. O objetivo, segundo Ventura, é transformar Portugal num dos "centros mundiais da ultradireita contra o socialismo". De fato, não foi apenas em Portugal que as falas de Lula sobre a guerra na Ucrânia foram mal recebidas. John Kirby, coordenador de comunicação estratégica do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, nos Estados Unidos, chamou a postura do presidente brasileiro de "repetição automática da propaganda russa e chinesa" e "profundamente problemática". "É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra", disse ele em conversa com jornalistas. "Francamente, neste caso, o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos", acrescentou. Para Kirby, "os comentários mais recentes do Brasil de que a Ucrânia deveria considerar ceder formalmente a Crimeia como uma concessão pela paz são simplesmente equivocados, especialmente para um país como o Brasil que votou para defender os princípios de soberania e integridade territorial na Assembleia-Geral da ONU". O porta-voz para Assuntos Externos da União Europeia, Peter Stano, também rebateu as falas de Lula sobre a guerra, destacando que a Rússia é a "única responsável" pelo conflito. "O fato número um é que a Rússia — e apenas a Rússia — é responsável pela agressão ilegítima e não provocada contra a Ucrânia. Então não há dúvidas sobre quem é o agressor e quem é a vítima", disse Stano, lembrando que o Brasil condenou a invasão da Ucrânia na ONU (Organização das Nações Unidas). Stano acrescentou que EUA e EU não estão contribuindo para prolongar a guerra, mas ajudando Kiev em sua legítima defesa. "Caso contrário, a Ucrânia enfrentaria a destruição. A nação ucraniana e a Ucrânia como país seriam destruídos porque estes são os objetivos declarados da guerra de Putin", afirmou. O mal-estar se agravou ainda mais com a viagem oficial do ministro das Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov, a Brasília no início desta semana. Uma das propostas do governo Lula é a criação de um "clube da paz", fórum de países que Brasília considera como não alinhados a nenhum dos lados do conflito para mediar as negociações entre Kiev e Moscou. Na terça-feira (18/4), o governo da Ucrânia, por meio do porta-voz de sua chancelaria, Oleg Nikolenko, voltou a convidar Lula a visitar Kiev. Em postagem no Facebook, Nikolenko afirmou que deseja que o brasileiro compreenda "as verdadeiras causas da agressão russa e suas consequências para a segurança global". Lula já havia sido convidado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no mês passado, quando os dois falaram por videoconferência pela primeira vez. Na ocasião, o petista afirmou que aceitaria o convite em momento oportuno. Lula seria o primeiro chefe de Estado estrangeiro a discursar no Parlamento português por ocasião da comemoração da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura militar em Portugal. A participação do petista chegou a ser anunciada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho, em visita ao Brasil. "É a 1ª vez que um chefe de Estado estrangeiro faz um discurso nesta data", disse Cravinho em entrevista a jornalistas em Brasília. Mas partidos de oposição, como PSD, IL e Chega, se manifestaram contra o convite e, após uma reunião entre lideranças políticas, chegou-se a um consenso de que Lula discursaria, mas numa sessão solene de boas-vindas, à parte das comemorações da Revolução dos Cravos. Em entrevista concedida recentemente à Folha de S.Paulo, o assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim, esclareceu que a posição do governo brasileiro é a de que a Rússia errou mas defendem que russos e ucranianos conversem. "A guerra não é uma solução nem para a Rússia nem para a Ucrânia. Essa é a questão do Brasil", disse ele.
2023-04-21
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brasil
Os riscos da CPI do 8 de janeiro para governo e oposição
A revelação de imagens do circuito interno de segurança do Palácio do Planalto mostrando que integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) podem ter sido negligentes, ou até mesmo colaborativos, com bolsonaristas radicais que invadiram o Palácio do Planalto em 8 de janeiro deram novo fôlego para a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para "apurar a responsabilidade pelos atos antidemocráticos e terroristas" na invasão das sedes dos Três Poderes. A previsão é que a comissão seja instalada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, na próxima quarta-feira (26/04), pois já há assinaturas suficientes de deputados e senadores para sua realização. O primeiro impacto das imagens reveladas pela CNN Brasil foi a demissão do ministro-chefe do GSI, general Gonçalves Dias, na quarta-feira (19/04) — primeiro ministro a cair, menos de quatro meses depois da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Agora, a esperada instalação da CPI, que vinha sendo defendida pela oposição, traz o risco de desviar o foco do Congresso de pautas importantes para o Palácio do Planalto, como a aprovação do novo arcabouço fiscal e da reforma tributária. Justamente por isso o governo vinha tentado adiar seu início, mas após a queda do ministro há uma percepção de que a comissão será necessária para combater a narrativa de parlamentares bolsonaristas de que o governo não teria protegido adequadamente o Palácio do Planalto para, supostamente, facilitar a atuação dos invasores. Fim do Matérias recomendadas O governo argumenta que o ataque aconteceu quando a nova gestão ainda tinha poucos dias, de modo que muitos integrantes do GSI ainda eram remanescentes da gestão Bolsonaro. Dias, porém, havia sido nomeado por Lula no dia 1º de janeiro para comandar o órgão. "Essa CPI vai engolir as pautas prioritárias e urgentes do governo. Que situação: precisam fazê-la mas não poderiam fazê-la", notou a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora sênior no Núcleo de Estudos sobre o Congresso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em um post no Twitter. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por outro lado, o cientista político Antonio Lavareda também vê riscos para a oposição. Na sua visão, é difícil a base bolsonarista conseguir usar a CPI para comprovar sua narrativa de que os ataques aos Três Poderes não partiram de apoiadores radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), mas de infiltrados da esquerda. Os vândalos que invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso, e o Supremo Tribunal Federal (STF) vieram de diferentes partes do país e, antes dos ataques, se concentraram no acampamento de apoiadores de Bolsonaro que ficava em frente ao Quartel-General do Exército, a cerca de quatro quilômetros da Praça dos Três Poderes. "CPIs, na maioria das vezes, são palco para a oposição e não costumam ser boas para o governo. Mas, nesse caso, é um procedimento arriscado para a oposição. O que foi uma tentativa de golpe de setores de radicais de direita dificilmente poderá ser debitado ao governo ou às forças que apoiam o governo. É uma narrativa demasiadamente fantasiosa", afirma. "A base governista pode aproveitar a CPI para mostrar, mais uma vez, o comprometimento de segmentos radicais da direita, que apoiaram, participaram e instigaram (os ataques). Pode ser um excelente momento para discutir a autoria intelectual do 8 de janeiro, que até agora ainda não foi suficientemente iluminada", acrescentou. Para Lavareda, porém, governo e parlamentares da base terão o grande desafio de evitar que a CPI drague suas energias e seu foco no Congresso. Isso porque, segundo ele, será inevitável que deputados e senadores aliados do Planalto gastem tempo participando da comissão e respondendo à oposição, ao invés de priorizarem apenas as propostas da administração Lula que vão à votação. O professor ressalta que, embora a apuração dos ataques aos Três Poderes seja muito importante para a democracia brasileira, não é um assunto que está no topo das prioridades da população. Uma pesquisa realizada em fevereiro pelo Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe), do qual é presidente do conselho científico, indicou saúde como a área que mais deveria receber atenção do governo, segundo 23% dos entrevistados. O tópico emprego e renda veio em seguida, com 20%, e educação logo depois, com 18%. Já o item "combate a atos golpistas" teve apoio de apenas 2% dos que responderam ao levantamento. Os atos de 8 de janeiro já vêm sendo investigados pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República. Alguns processos criminais, inclusive, já foram abertos no STF. Em viagem oficial a Londres, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD) defendeu nesta quinta-feira (20/04) a legitimidade da apuração de responsabilidades também no Congresso. "O governo devia ter tido essa postura (de defender a CPI) desde o início. Eu disse desde o início que era legítimo o Parlamento fazer as investigações. O governo se colocou contra em um primeiro momento", disse, após fazer uma palestra para empresários do Lide Brazil Conference. Como já há assinaturas suficientes de deputados e senadores apoiando a CPI mista, seu início só depende de um ato formal de Pacheco, a leitura do requerimento da comissão. "Nós queremos a leitura desse requerimento. Vamos para essa investigação e vamos com força", afirmou o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), no plenário do Senado, após a divulgação das imagens pela CNN Brasil. "Queremos (a instalação da CPI) porque no 8 de janeiro tivemos três vítimas nesse país: a República, a democracia e o atual governo. Não fomos os algozes do 8 de janeiro, nós somos as vítimas", acrescentou. Já o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que chefiou a Casa Civil no governo Bolsonaro, disse que as explicações do Palácio do Planalto sobre o que ocorreu no 8 de janeiro são "desculpas esfarrapadas". "A realidade é uma só: se um presidente não pode governar o palácio em que despacha, poderá governar um país? Claro que não. Então, é óbvio que se não houve cuidado para evitar a invasão foi algo deliberado e o governo é o responsável pelo que governa. E mais ninguém", acusou. Segundo a reportagem da CNN Brasil, imagens inéditas de câmeras de segurança do Palácio do Planalto mostram o general Gonçalves Dias tendo uma postura amigável com os invasores no terceiro andar do palácio, onde fica o gabinete presidencial. As imagens ainda mostram um dos funcionários do GSI dando água mineral para os invasores. "Inicialmente, ele caminha sozinho no terceiro andar do palácio, na antessala do gabinete do presidente da República. Gonçalves Dias tenta abrir duas portas e depois entra no gabinete", relata reportagem da emissora. "Após alguns minutos, o ministro aparece caminhando pelo mesmo corredor com alguns invasores. As imagens sugerem que ele indica a saída de emergência ao grupo de criminosos. Em seguida, surgem nas imagens outros integrantes do GSI, que parecem indicar também o caminho de saída para os invasores que estavam no terceiro andar do Palácio do Planalto", relatou ainda a CNN Brasil. O terceiro andar é onde fica o gabinete de Lula, que não estava no local no momento da invasão, realizada em um domingo. Dias se defendeu em entrevista ao canal GloboNews dizendo que colocou seu "cargo à disposição do presidente da República para que toda a investigação seja feita". Ele alegou que suas ações e da equipe tiveram o objetivo de tirar os invasores de locais sensíveis e levá-los ao segundo andar para serem presos. "Eu entrei no palácio depois que o palácio foi invadido e estava retirando as pessoas do terceiro piso e do quarto piso para que houvesse a prisão no segundo", afirmou. "Na sala ao lado do presidente, eu retirei três pessoas que estavam lá dentro e mandei descer para o segundo. Eu fui verificar se as portas estavam fechadas e se não houve nenhuma depredação lá dentro", disse ainda. Ricardo Cappelli, que foi interventor na segurança pública do Distrito Federal em janeiro e até o momento ocupava o cargo de secretário-executivo do Ministério da Justiça, assumirá interinamente o comando do GSI. Dias foi escolhido para comandar o GSI porque contava com a confiança de Lula. Ele chefiou a segurança do petista em seus dois primeiros mandatos (2003-2010), quando recebeu o apelido de "sombra", por sua proximidade constante com o presidente. Apesar de Dias ter sido nomeado por Lula, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) destacou em nota divulgada na quarta-feira (19/04) a presença de oficiais remanescentes do governo Bolsonaro na equipe do GSI, quando houve a invasão. "A violência terrorista que se instalou no dia 8 de janeiro contra os Três Poderes da República alcançou um governo recém-empossado, portanto, com muitas equipes ainda remanescentes da gestão anterior, inclusive no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que foram afastados nos dias subsequentes ao episódio", disse o comunicado. A Secom ressaltou ainda que a PF tem as imagens da invasão e está "investigado e realizado prisões de acordo com ordens judiciais (do STF)". "Dessa forma, todos os militares envolvidos no dia 8 de janeiro já estão sendo identificados e investigados no âmbito do referido inquérito. Já foram ouvidos 81 militares, inclusive do GSI", acrescenta a nota.
2023-04-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84rl08jljgo
brasil
Gonçalves Dias: 3 perguntas ainda sem resposta sobre vídeo que derrubou ministro de Lula
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve sua primeira baixa nesta semana quando o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, entregou seu cargo, em meio ao vazamento de imagens de câmeras de segurança onde ele aparece interagindo com pessoas que invadiram o Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro. As imagens reveladas pela CNN Brasil mostram Dias caminhando no terceiro andar do Palácio do Planalto e conversando com invasores. Aparentemente ele está mostrando a saída de emergência aos invasores. Outros funcionários do GSI aparecem dando água para alguns dos invasores. O dia 8 de janeiro foi marcado pela invasão violenta e quebradeira das sedes do Três Poderes em Brasília. As imagens levantam dúvidas sobre a atuação de Gonçalves Dias e do GSI no dia. O ministro entregou seu cargo alegando que isso facilitaria investigações sobre as imagens. O ministério, sob novo comando, já determinou a investigação. Fim do Matérias recomendadas Existe também a possibilidade de instauração de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar os atos violentos do dia 8 de janeiro em Brasília. Inicialmente a CPMI era uma reivindicação da oposição, mas há sinais de que o próprio governo pode apoiar a iniciativa agora. Em entrevista à BBC News Brasil em Londres nesta quinta-feira (20/4), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse que o pedido de criação da CPMI será lido no Congresso em 26 de abril e que a polêmica envolvendo o GSI "é um fato que tem que ser esclarecido". Após sua saída, ele concedeu entrevistas — mas ainda há diversas dúvidas que ainda não foram esclarecidas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essa é a questão mais importante na queda do ministro — e segundo interlocutores do governo foi a que mais irritou o presidente. Ela foi determinante na queda do ministro. As imagens mostram que os invasores não eram pacíficos. Eles aparecem destruindo vidros e um relógio histórico. As imagens revelam uma série de evidências de um comportamento cordial por parte dos funcionários e seguranças do GSI — alguns deles militares: As investigações precisarão esclarecer porque não houve prisão imediata dos invasores — e porque os funcionários e o ex-ministro não parecem estar tentando evitar as invasões ou chamar reforços. Dias se defendeu afirmando que suas ações e da equipe naquele dia tiveram o objetivo de tirar os invasores de locais sensíveis e levá-los ao segundo andar para serem presos. "Eu entrei no palácio depois que o palácio foi invadido e estava retirando as pessoas do terceiro piso e do quarto piso para que houvesse a prisão no segundo", disse o agora ex-ministro à Globonews. "Na sala ao lado (da sala) do presidente, eu retirei três pessoas que estavam lá dentro e mandei descer pro segundo (andar). Eu fui verificar se as portas estavam fechadas e se não houve nenhuma depredação lá dentro." "Prendemos mais 250 pessoas pessoas aqui dentro, que invadiram, que depredaram tudo. Minha amiga, ninguém fala, mas nós preservamos praticamente o terceiro piso todinho — o coração do Planalto, que é a sala do presidente, ela foi preservada." O ex-ministro defendeu também que condutas como a do funcionário que foi filmado distribuindo água aos invasores sejam punidas. "Aquilo é um desvio de atitude", disse, referindo-se à cena. Ainda assim, Dias defendeu que a escolha de imagens como essa, de um funcionário distribuindo água, foi seletiva demais. "O major distribuindo águas a manifestantes, fizeram um corte específico na produção dos vídeos que vocês olharem (sic). Aquilo é um absurdo para minha imagem. " Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Lula teria pedido diversas vezes ao general as imagens do sistema de segurança daquele dia. Uma das explicações dadas anteriormente era de que uma das câmeras tinha sido quebrada. De acordo com o jornal, o presidente teria sido surpreendido pelo vazamento das imagens nesta semana. Oficialmente, o governo diz que a Polícia Federal está investigando todas as imagens do dia. Dias depois do ataque, o governo chegou a divulgar imagens da invasão do Palácio do Planalto — como as que mostram um invasor derrubando o relógio histórico — mas os trechos eram editados. Gonçalves Dias nega que tenha impedido acesso do presidente às imagens, e disse que tudo foi distribuído aos órgãos competentes que investigam as invasões. Ainda não está claro porque o ministro estava no gabinete no dia dos ataques. As imagens mostram que ele anda sem escolta em meio aos invasores. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o ex-comandante militar do Palácio do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, enviou reforços do Batalhão da Guarda Presidencial para o Palácio do Planalto dois dias antes dos ataques para Brasília. Mas a presença do efetivo foi dispensada pelo GSI no dia 7 de janeiro — um dia antes da invasão. Não se sabe porque esse efetivo foi dispensado, justamente na véspera dos atos violentos.
2023-04-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n7lzm6md6o
brasil
Rodrigo Pacheco diz que legalizar jogos de azar e apostas esportivas é 'caminho para arrecadação sustentável'
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse nesta quinta-feira (20), em Londres, que legalizar e regulamentar jogos de azar e apostas esportivas pode ser um "caminho para uma arrecadação sustentável" no Brasil. Uma lei do final de 2018 passou a permitir sites de apostas esportivas, que passaram a viver um boom e patrocinar quase todos os principais times de futebol masculino e feminino. Mas a regulamentação do mercado ainda não saiu do papel. Sem regras claras, empresas têm operado esses sites de fora do Brasil, livres de impostos locais. Enquanto isso, outros tipos de jogos de azar, como bingos e cassinos, continuam proibidos no Brasil. A decisão do governo Lula de regulamentar a taxação de apostas esportivas estimulou o retorno da discussão sobre a legalização e regulamentação de jogos de azar em geral, como jogo do bicho, bingos e cassinos. O argumento de empresários que querem investir no setor é o de que essas atividades continuam a proliferar pelo país, ainda que ilegalmente, mas sem gerar receitas para os cofres públicos. Fim do Matérias recomendadas Ao discursar sobre novas fontes de recursos para o Brasil, Pacheco mencionou a legalização de jogos como uma alternativa. "Há projetos de marcos legais em debate, como a legalização de jogos e apostas esportivas, que podem ser caminho de uma arrecadação sustentável", disse. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um projeto que legaliza jogos de azar já foi aprovado pela Câmara em 2022 e aguarda votação no Senado. Ou seja, cabe a Pacheco colocar a proposta em votação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é um forte defensor da legalização. "Os jogos, uma fonte extraordinária de empregos, uma fonte extraordinária de receita. Existe em todos os lugares do país, em todas as cidades do Brasil e nós não regulamentamos", disse ele, em março. Pacheco disse à BBC News Brasil que o projeto que legaliza jogos de azar vai ser colocada na pauta de votações nos próximos dois meses, entre maio e junho. “Queremos acelerar a votação se todos esses projetos que geram arrecadação e um desses projetos é o que legaliza jogos se azar, que já passou na Câmara”, disse. Mas a legalização de jogos de azar também enfrenta forte oposição em setores do Congresso, principalmente da bancada evangélica, que querem manter a proibição. Pacheco participa em Londres de conferência sobre o Brasil organizada pela Lide, organização criada pelo ex-prefeito de São Paulo João Doria Júnior. O mercado de jogos de azar foi proibido no Brasil em 1946, no governo de Eurico Gaspar Dutra, sob o argumento de que seria algo nocivo à moral e aos bons costumes. Até então, cassinos operavam no Brasil e eram locais populares de entretenimento, com oferta de shows e restaurantes. Isso não impediu, porém, a existência de práticas ilegais no país, como o Jogo do Bicho e as máquinas caça-níqueis, muitas vezes controladas por grupos criminosos violentos. Já os bingos não são permitidos hoje, mas houve momentos em que foram liberados, nos anos 90. Uma exceção à proibição criada por Dutra que perdura há décadas são os jogos lotéricos, que eram operados com exclusividade pela Caixa Econômica Federal desde 1961. A partir de 2020, porém, passaram a ser oferecidos por governos estaduais e municipais, após o Supremo Tribunal Federal acabar com o monopólio da União. Já uma lei aprovada em 2018, no governo de Michel Temer, permitiu a operação dos sites de apostas esportivas, abrindo uma fatia do mercado para empresas privadas. No entanto, a regulamentação dessa indústria emperrou no governo Jair Bolsonaro, embora a própria lei previsse que ela deveria ter sido adotada até 2022. O setor atribui o atraso na regulamentação à oposição de grupos conservadores, em especial o segmento evangélico, que era bastante ouvido pelo ex-presidente. O tema voltou a andar no novo governo, ansioso por novas fontes de arrecadação para bancar o aumento de gastos sociais e obras, prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Ministério da Fazenda ainda está finalizando uma medida provisória que vai regulamentar a taxação de sites de apostas. Mas alguns detalhes já foram divulgados. A ideia é que apostadores sejam taxados em 30% sobre os valores dos prêmios recebidos. Vai haver uma isenção para ganhos que fiquem dentro do valor da primeira faixa de Imposto de Renda, de cerca de R$ 1,9 mil. Já as empresas teriam que pagar R$ 30 milhões para o governo federal por uma licença de cinco anos e 15% de imposto sobre o lucro. Enquanto isso, a legalização de cassinos e bingos aguarda aprovação de projeto no Senado.
2023-04-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxrd99q9zd1o
brasil
Por que carros ficaram tão caros no Brasil?
Um trabalhador brasileiro que ganhe o salário mínimo tem que trabalhar ininterruptamente cerca de 50 meses, ou mais de quatro anos seguidos, sem gastar nada, para comprar o carro zero quilômetro mais barato no Brasil atualmente. Os modelos em questão são o Renault Kwid e Fiat Mobi, ambos com motor 1.0, cujos preços giram em torno de R$ 70 mil. Para se ter uma ideia, o valor médio de um carro novo no Brasil está hoje em torno de R$ 130 mil, quase o dobro do cobrado em 2017, segundo dados da consultoria Jato Dynamics. Nesse contexto, algumas montadoras iniciaram conversas com o governo federal no início do ano para lançar um "carro popular", mais barato. O objetivo é turbinar as vendas do setor automotivo, importante gerador de emprego e renda e que responde por uma parcela significativa do PIB (Produto Interno Bruto) da indústria, em torno de 22% — e 4% do PIB total. O PIB é a soma de bens e serviços produzidos por um país em seu território nacional. Fim do Matérias recomendadas Nesta quinta-feira (25/5), data que celebra o Dia da Indústria, o plano foi anunciado pelo governo federal durante reunião com empresários do setor industrial. No Palácio do Planalto, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), disse que a principal medida será a redução de tributos para veículos de até R$ 120 mil, com corte do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e do PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social). O impacto no preço dos carros novos vai variar de 1,5% até 10,79% — carros mais baratos terão maiores descontos, combinados com outros dois fatores: a produção nacional e eficiência energética. Apesar disso, o valor continua inacessível para o bolso da imensa maioria dos brasileiros, principalmente em meio ao contexto pós-pandemia, de maior inflação, crédito mais caro com altas taxas de juros e perda de renda generalizada. Na contramão do Brasil, motoristas de mercados desenvolvidos, como Estados Unidos e União Europeia, e até de países emergentes, como México, acabam pagando bem menos por um modelo zero quilômetro, sobre a mesma base de comparação que abre esta reportagem. Mas por que os carros no Brasil são tão caros? Uma combinação de fatores, entre eles o chamado Custo Brasil (conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, fiscais e econômicas do país), está por trás desses valores considerados astronômicos por muitos brasileiros. Não se trata, porém, de uma realidade nova — alguns deles sempre foram constantes no mercado automotivo brasileiro, mas há outros circunstanciais, como a pressão inflacionária e a escassez de semicondutores no mercado internacional, resultado da recente pandemia de covid-19. A lista é longa. Confira alguns deles. O complexo sistema tributário do Brasil é considerado um dos principais culpados pelo preço alto dos carros. Há diversos impostos que incidem sobre a venda de automóveis, como ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social). Para se ter uma ideia, o peso dos tributos varia de 30% a 50% do valor final dos carros nacionais. Se o veículo for importado, essa taxa é maior e pode oscilar entre 60% a 80%. Um carro que custa US$ 20 mil nos Estados Unidos pode, assim, custar até US$ 35 mil no Brasil. Carros importados custam mais caros do que os nacionais porque sobre eles incidem mais impostos. Se por um lado, a política protecionista visa a promover a produção local e o emprego, por outro, limita a concorrência. O resultado são preços mais altos para os consumidores. Apesar disso, o número de montadoras hoje presentes no Brasil em nada se compara ao de décadas atrás, quando o mercado era praticamente dominado por quatro grandes fabricantes de veículos (Volskwagen, Fiat, Ford e Chevrolet). Para tanto, marcas reconhecidas internacionalmente, como Toyota, Honda e Hyundai, tiveram que produzir no Brasil para baratear custos. Os encargos trabalhistas do Brasil estão entre os mais altos do mundo. Outros países com maior índice de custo de mão-de-obra são: Argentina, Ucrânia, Uruguai, Turquia, Rússia, África do Sul, Romênia, Egito e Vietnã, segundo a empresa de análise e consultoria de dados GlobalData, sediada em Londres, na Inglaterra. Isso aumenta o custo de produção de carros e dificulta a competição dos fabricantes com outros países com custos de mão-de-obra mais baixos. Estima-se que no país as empresas gastem duas vezes e meia o que pagam ao trabalhador. Apesar de ser um país de dimensões continentais, o Brasil padece com a infraestrutura precária, com muitas estradas e rodovias em más condições. Um estudo da Confederação Nacional do Transporte (CNT) realizado em 2022 calculou em 35% o acréscimo nos custos operacionais decorrentes das más condições de conservação nos 73% das rodovias sob administração pública. Isso acaba representando um desafio para o transporte de automóveis e peças, encarecendo seu custo, que é repassado ao consumidor. Foi-se o tempo do carro "pelado" da década de 90, época em que o então presidente Fernando Collor de Mello, disse que os carros produzidos no Brasil eram "verdadeiras carroças" em alusão à má qualidade do produto final se comparado a um veículo importado. Além dos sistemas de segurança exigidos por lei, o consumidor também está mais exigente quanto ao pacote de equipamentos do veículo. Desde 2013, todos os carros novos têm que ser equipados com airbag e freios ABS (do inglês Anti-lock braking system, ou freios antitravamento). A incorporação de novas tecnologias, sejam elas de sistema de segurança, de conforto ou conectividade fez com que os preços subissem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Houve flutuações cambiais significativas nos últimos anos, e o real brasileiro perdeu valor em relação ao dólar americano. Isso tornou mais caro para os fabricantes importar peças e equipamentos, o que contribuiu para o aumento geral dos preços dos automóveis. "Grande parte das peças dos automóveis é importada. Se o real perde valor e compramos em dólar, pagamos mais caro. Esse custo é repassado para o consumidor", diz Igor Torres, economista e analista da Tendências Consultoria. Mais recentemente, a pandemia de covid-19 encareceu matérias-primas, como aço, minério de ferro e borracha, e desestabilizou as cadeias de suprimento das indústrias, gerando desafios logísticos que encareceram o valor dos carros ao redor do mundo. Muitos componentes usados na fabricação dos veículos no Brasil não têm produção local. Nesse contexto, destaca-se a escassez global de semicondutores, que estão presentes por todo o carro, desde o câmbio, passando por painel, sistema multimídia, retrovisores, sistema de freio e até motor. Há um fator cultural em jogo, também: a paixão do brasileiro por carros. "O brasileiro sempre foi apaixonado por carro e sente-se diferenciado ao tê-lo. O carro é símbolo de status. É uma questão de oferta e demanda. Se as pessoas continuam comprando carros e eles estão mais caros, por que vou baixar meu preço?", indaga Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato Dynamics. "Evidentemente, não podemos esquecer que o transporte público continua deficiente e isso acaba incentivando as pessoas a comprar carros, também, mesmo que tenham que pagá-lo em diversas prestações", acrescenta. Por uma questão estratégica, as montadoras não divulgam suas margens de lucro. Mas, segundo Kalume Neto, "as margens de lucro no Brasil são, em média, maiores do que vemos nos mercados americano e europeu". De fato, com exceção de 2020, ano da pandemia, o faturamento da indústria automotiva no Brasil vem crescendo — o valor médio de um carro novo passou de R$ 71 mil em 2017 para R$ 131 mil no ano passado, um aumento de 85% — no mesmo período, a inflação acumulada oficial, medida pelo IPCA, foi de 36%. Vale lembrar, no entanto, que o mercado mudou nos últimos anos — em 2022, pela primeira vez, a maior parte das vendas (52,9%) foi para Pessoa Jurídica (CNPJs, vendas diretas para locadoras, pessoas com deficiência, frotistas, entre outras). Ou seja, menos brasileiros estão comprando carro novo. Em 2018, as vendas para Pessoa Física representavam 64,4% do total vendido. No ano passado, essa proporção caiu para 47,1%, segundo dados da Jato Dynamics. Mas o carro "popular" proposto pelo governo em nada se assemelha ao "carro pelado" da década de 90, ou seja, veículos sem encosto de cabeça ou até retrovisor direito como itens de série. Kalume Neto nota que a indústria evoluiu, focando em veículos de maior valor agregado, e o consumidor se tornou também mais exigente. "Estamos com vendas estagnadas em torno de 2 milhões há três anos. E temos uma capacidade produtiva acima de 4,5 milhões. O setor precisa vender mais. Mas não compartilho com a ideia de "carro popular". Prefiro "carro de entrada", em função dos preços praticados aqui no Brasil. Além disso, esse termo, "carro popular", remete àquele carro "pelado" da década de 90, e isso já não faz mais parte da nossa realidade, até por uma questão da legislação", explica. Falando sobre o plano anunciado pelo governo, o economista André Perfeito, assinala, no entanto, que "corte de tributos, medidas regulatórias e mesmo queda de juros não fazem milagre algum se não houver demanda". "A expectativa é que alguma demanda surja, afinal as projeções de crescimento estão melhorando e a renda real melhorou com a queda da inflação em 12 meses para citar alguns fatores". Segundo Perfeito, como "os juros altos estão em relação à renda disponível, não há demanda possível para o setor." "A impressão que fico é que o governo resolveu fazer na "marra" algo poderia e deveria ser feito pela queda de juros", conclui.
2023-05-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceq57lpydydo
brasil
Ataques a escolas: ameaças e boatos diminuem, mas pais continuam com medo
Diversas instâncias governamentais anunciaram ações de combate à violência e também afirmam que o número de ameaças caiu. Mas pais e mães continuam com medo e com dúvidas sobre enviar seus filhos à escola nesta quinta (20/4), data que havia sido citada nos boatos e ameaças por ser o dia em que aconteceu a tragédia em Columbine em 1999 - um dos primeiros e mais fatais ataques a escolas dos EUA. Há crianças e adolescentes pedindo para ficar em casa na data, assustadas com os boatos nas redes sociais. Cada escola tem lidado com a questão de um jeito diferente. Não é uma escolha fácil para os pais. Nesta semana, a filha de 11 anos da brasiliense Maria Lídia chegou em casa dizendo que não queria ir à escola na quinta, porque ouviu de colegas que poderia haver ataques à escola no dia. Fim do Matérias recomendadas Maria Lídia diz que ficou com dor uma no coração ao ouvir sobre o medo da menina. Ela conta à BBC que explicou à filha que “havia muitos boatos, que o receio de que aconteça algo tem a ver com o simbolismo da data, mas que a escola é um local seguro e a chance de acontecer algo é baixa”. Mas ela mesma ainda não decidiu se vai levar ou não a menina para a escola nesta quinta. “Por um lado eu não quero ser exagerada, ceder ao medo, alarmar demais minha filha. Por outro, a gente tem medo sim - por mais que racionalmente eu saiba que a probabilidade de algo acontecer é mínima”, diz à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela conta que está discutindo a questão com o pai da filha, de quem é separada, e conversando com outras mães. “As coleguinhas dela vão e a escola mandou um comunicado avisando que amanhã haverá um evento em que cada aluno pode levar um símbolo de amizade, solidariedade e cuidado com o outro para a escola”, conta ela. “Estamos alinhando. Eu ainda não bati o martelo.” O Ministério da Justiça monitora ameaças e mensagens que falam sobre supostas ameaças de ataques no dia 20/4 desde o início do mês, quando o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), falou que sua pasta estava trabalhando para evitar qualquer ocorrência na data. No dia 10, diversas ações de combate à violência foram anunciadas. Nesta quarta-feira (19), o ministério anunciou que, desde o início do monitoramento: Segundo o ministro, a demanda pelo canal de denúncias do Ministério da Justiça voltado para ameaças de ataques em escolas caiu bastante nos últimos dias. Logo após o ataque em Blumenau (SC), no início do mês, havia uma média de 400 denúncias por dia. O número chegou a 1700 por dia. Nos últimos dois dias, a média foi de 170 denúncias diárias. Pesquisadores que acompanham o tema nas redes sociais também afirmam que o pânico estava maior nas semanas que se seguiram aos ataques nas cidades de São Paulo e Blumenau. A diminuição da circulação de boatos, apontam, é um sinal positivo, porque o compartilhamento de ameaças de ataques que não são reais pode ter o efeito indesejado de incentivar uma agressão verdadeira. “Da mesma forma, percebe-se que a divulgação de ameaças (muitas das quais não passam de boatos) tem seguido o mesmo comportamento. Quanto mais se noticia, mais casos surgem.” Para os pais, no entanto, a decisão de mandar ou não os filhos para a escola continua sendo difícil. São considerados fatores como a segurança das crianças, o próprio medo, o sentimento das crianças, o clima da escola, a forma como a instituição tem lidado com o tema, entre outros, segundo explica Danielle Admoni, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) especializada em infância e adolescência. O ideal, diz, é que os pais trabalhem para encontrar o ponto certo em que medo é útil - ou seja, quando ele nos faz ficar alerta para perigos e nos prepara para problemas - sem cair no medo paralisante, que atrapalha a vida. “Claro que os pais têm medo. O medo funciona quando nos leva a fazer alguma coisa produtiva, um alerta para ter cautela, ficar mais esperto, checar o que tem acontecido na vida dos nossos filhos”, diz Admoni. “Mas ele vira um problema quando se torna paralisante, começa a limitar demais a vida. Quando a pessoa não consegue dormir, comer, sair de casa.” “Precisamos lembrar as crianças e nos lembrar que, em geral, a escola é um lugar seguro, onde as pessoas estão para cuidar e proteger. A gente viu durante a pandemia os problemas que surgem quando as crianças ficam muito tempo ser ir à escola”, lembra ela. “Estamos vendo que as autoridades estão tomando atitudes. Os casos assustam justamente porque a gente espera que a escola seja um local seguro. Mas são situações pontuais, corremos riscos também fora da escola.” “É como um acidente de avião. Não acontece muito, mas quando acontece a questão fica tão em evidência que gera essa sensação enorme de insegurança. Ainda mais quando envolve os filhos”, diz ela. Conversar sobre o tema com as crianças é essencial, aponta a psiquiatra. “A pior coisa é os pais fingirem que não tem nada acontecendo”, afirma a psiquiatra. “A criança precisa sentir que pode procurar o pai, a mãe ou o responsável quando está com medo ou tem dúvidas. Porque mesmo que ela não veja notícias em casa, algum colega pode falar do assunto, aí a coisa chega sem filtro.” “A criança percebe que tem algo errado, e se você diz que não é nada, está desvalorizando a percepção que ela tem da realidade. Então é preciso explicar, dentro das possibilidades.” A postura da escola dos três filhos de Maria Victória, em Brasília, foi justamente a de trazer o tema para conversa - o que fez a mãe se sentir muito mais segura. A instituição percebeu que havia uma burburinho entre as crianças, com algumas assustadas e chorando, e chamou os alunos do sexto e sétimo ano para conversar e ouvir seus medos e preocupações. “Algumas crianças falaram do medo, outras falaram sobre o que fariam - uma disse que iria na turma da irmã mais nova buscá-la. Então foi muito legal essa troca, essa postura da escola de acolher qualquer tipo de resposta”, diz Maria Victória, que decidiu que vai levar os três filhos para a escola nesta quinta. “Nós temos sorte que é uma escola pequena, com crianças menores. Não tem ensino médio, não tem um clima escola de bullying, de problemas assim”, conta ela à BBC. “Minha filha tem uma amiga cuja mãe é do Corpo de Bombeiros, e ela também vai para a escola, então isso ajuda também a gente a confiar nas instituições e ficar convicta de que devemos mandar.” “Mas eu entendo totalmente os pais que não vão mandar. Porque é um medo mesmo, é algo que atinge um lugar para os pais... É um amor, um afeto muito grande que temos (pelos filhos).” Carla*, que participa do mesmo grupo de mães que Maria Victória no WhatsApp, ainda não decidiu se o filho vai ficar em casa ou se vai à escola amanhã. Ele estuda em uma escola diferente da filha de Maria Victória e Carla ficou com receio após receber o posicionamento da instituição. Embora a escola tenha feito treinamento com policiais e aumentado a segurança, diz ela, o principal problema não tem sido combatido, diz ela. “Infelizmente não estamos vendo muitas escolas adotarem medidas de combate ao bullying, com treinamento de professores sobre identificação, abordagem e intervenção em casos de discriminação, violência ou isolamento social. Essas sim seriam as medidas importantes para combater esse problema de violência nas escolas no médio e longo prazo”, diz Carla à BBC. Ela cita algo que também é apontado por pesquisadores - que a maioria dos ataques é feito por alunos e ex-alunos que têm ódio do ambiente escolar. “A escola do meu filho se considera inclusiva por ter uma metodologia de ensino inovadora, mas não contempla de maneira permanente o tema da inclusão de deficientes, não treina professores e só trabalha combate ao racismo na semana da consciência negra. De combate à homofobia não vi nada até hoje. Então, estou bem preocupada com o rumo que essas violências extremistas vão tomar no Brasil”, diz Carla. Danila Di Pietro, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e parte de um grupo liderado pela professora Telma Vinha, que mapeou ataques a escolas nas últimas décadas, afirma que transformar os prédios das escolas em algo parecido com prisões não é a resposta. “É um problema complexo e duradouro”, diz ela. “Que esses dias sejam usados para fomentar debates sobre esses ocorridos, problematizar de fato, dar espaço para as pessoas expressarem seus sentimentos e serem acolhidas em suas angústias, além de pactuarem propostas para uma convivência cada vez mais ética e inclusiva.” Cada escola particular tem lidado com a questão do dia 20 de um jeito - algumas chamaram para a conversa, outras criaram eventos e atos com temas positivos, chamaram os pais para participar do dia, aumentaram a segurança e até mesmo cancelaram as aulas. Mesmo na rede pública, a postura varia muito. Em São Paulo, por exemplo, muitas escolas estaduais não terão aulas porque reuniões chamadas conselhos de classe já estava programadas para essa semana desde o início do ano. Para as escolas municipais, a prefeitura anunciou uma série de medidas de proteção e segurança, e unidades têm escolhido diferentes ações. Uma escola municipal no bairro de Higienópolis, por exemplo, convidou os pais para participarem de um evento em celebração da solidariedade e amizade. “Não existe uma resposta única sobre o dia 20, cada escola precisa avaliar o perfil dos pais e alunos e decidir como proceder”, diz Danielle Admoni. No entanto, diz ela, algo que todas as instituições precisam fazer, sem exceção, é o combate ao bullying e à discriminação. “Os casos de ataque são sempre de alunos e ex-alunos que recorrem à violência para se vingar. Claro que tem outros fatores, como disfunção familiar, questões de saúde mental não tratadas. Mas essa raiva do ambiente e das pessoas da escola é algo comum entre os agressores”, afirma. “Claro que isso não torna a instituição culpada, mas trabalhar esse tema do bullying, da agressão é algo que todas as escolas precisam fazer.” Entre as medidas adotadas pelo Ministério da Justiça para coibir a propagação do discurso de ódio que possa incitar ataques estão a exigência de fiscalização mais profunda das redes sociais — onde foram encontradas várias publicações de incentivo a massacres em escolas e até mesmo idolatria aos responsáveis por esse tipo de crime. A pasta também anunciou diversas investigações por meio das polícias civis de diferentes Estados e da Polícia Federal. Na terça-feira (18), o ministro Flávio Dino afirmou que 225 pessoas foram presas ou apreendidas (menores de 18 anos) na operação relacionada a planos ou ações de violência no ambiente escolar. “Dá uma média de mais de 20 por dia”, disse Dino. "Preocupante é que olhamos, do governo Fernando Henrique até o governo pretérito, uma ampliação ano a ano desses números, uma trajetória ascendente. E por isso estamos aqui, para cortar essa ascensão perigosa da violência e do ódio”, declarou Dino. Ao todo, diz Dino, foram feitas mais de 7,4 mil denúncias desde que o Ministério da Justiça iniciou a operação em todo o Brasil. Além disso, foram encaminhados mais de 100 pedidos às redes sociais para preservação de conteúdos nas plataformas para investigações policiais. Em nota, o TikTok afirma que "relatos de ameaças potenciais de violência nas escolas são abomináveis e tristes, e o conteúdo que estimula o pânico sobre isso não tem absolutamente nenhum lugar em nossa plataforma”. “Estamos trabalhando agressivamente para identificar e remover conteúdo que possa causar pânico ou validar farsas, incluindo a restrição de hashtags relacionadas. Onde encontramos ameaças iminentes de violência, trabalhamos com as autoridades policiais, de acordo com nossas políticas de relacionamento com as autoridades locais”, acrescenta o comunicado da plataforma. O Twitter não respondeu ao pedido de informações encaminhado pela reportagem. Mas segundo o colunista Guilherme Amado, do Metrópoles, a plataforma informou ao Ministério da Justiça em 11 de abril que derrubou 546 perfis com conteúdos ameaçadores ligados a ataques a escolas. O Instagram e o Facebook, ambos da Meta, informaram à reportagem que proíbem conteúdos que incitem ou promovam a violência. “E isso inclui contas ou conteúdos elogiando atos violentos e seus autores. Além disso, não permitimos a presença de pessoas ou organizações que anunciem uma missão violenta ou estejam envolvidas em atos de violência nas plataformas da Meta. Isso inclui atividade terrorista, atos organizados de ódio, assassinato em massa (incluindo tentativas) ou chacinas, tráfico humano e violência organizada ou atividade criminosa”, diz comunicado da empresa. “Removemos, ainda, conteúdo que expresse apoio ou exalte grupos, líderes ou pessoas envolvidas nessas atividades. Adicionalmente, colaboramos com autoridades respondendo prontamente às suas demandas”, acrescenta a nota do Instagram e do Facebook. O WhatsApp, também da Meta, reforçou em nota que "coopera ativamente com as autoridades locais" e fornece dados disponíveis em respostas às autoridades locais para ajudar em investigações policiais, "em conformidade com a legislação aplicável". “O WhatsApp encoraja que as pessoas reportem condutas inapropriadas diretamente nas conversas, por meio da opção “denunciar” disponível no menu do aplicativo (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar. As pessoas também podem enviar denúncias para o e-mail [email protected], detalhando o ocorrido com o máximo de informações possível e até anexando uma captura de tela”, diz a empresa. “O usuário ou grupo denunciado não recebe nenhuma notificação sobre essa ação. É importante ressaltar que conteúdos ilícitos também devem ser denunciados para as autoridades policiais competentes”, acrescenta a nota do WhatsApp. *A BBC News Brasil decidiu omitir sobrenomes ou alterar nomes de entrevistadas para preservar a privacidade das crianças
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx0n2154jp3o
brasil
A crise que derrubou 1° ministro do governo Lula
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou nesta quarta-feira (19/04) a saída do ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, primeiro integrante do primeiro escalão a cair, com menos de quatro meses de mandato. Ricardo Cappelli, que foi interventor na segurança pública do Distrito Federal em janeiro e até o momento ocupava o cargo de secretário-executivo do Ministério da Justiça, assumirá interinamente o comando do GSI. Gonçalves Dias apresentou o pedido de demissão ao presidente após o vazamento de imagens do circuito interno de câmeras de segurança do Palácio do Planalto mostrar que o ministro e sua equipe foram negligentes ou até mesmo colaborativos com bolsonaristas radicais que invadiram o Palácio do Planalto em 8 de janeiro. As imagens foram reveladas pelo canal CNN Brasil. "Inicialmente, ele caminha sozinho no terceiro andar do palácio, na antessala do gabinete do presidente da República. Gonçalves Dias tenta abrir duas portas e depois entra no gabinete", relata reportagem da emissora. Fim do Matérias recomendadas "Após alguns minutos, o ministro aparece caminhando pelo mesmo corredor com alguns invasores. As imagens sugerem que ele indica a saída de emergência ao grupo de criminosos. Em seguida, surgem nas imagens outros integrantes do GSI, que parecem indicar também o caminho de saída para os invasores que estavam no terceiro andar do Palácio do Planalto", relatou ainda a CNN Brasil. O terceiro andar é onde fica o gabinete de Lula, que não estava no local no momento da invasão, realizada em um domingo. As imagens mostram até mesmo um dos funcionários do GSI dando água mineral para os invasores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em entrevista ao canal de TV Globo News após a demissão, Gonçalves Dias disse que colocou seu "cargo à disposição do presidente da República para que toda a investigação seja feita". Dias se defendeu afirmando que suas ações e da equipe naquele dia tiveram o objetivo de tirar os invasores de locais sensíveis e levá-los ao segundo andar para serem presos. "Eu entrei no palácio depois que o palácio foi invadido e estava retirando as pessoas do terceiro piso e do quarto piso para que houvesse a prisão no segundo", afirmou. "Na sala ao lado (da sala) do presidente, eu retirei três pessoas que estavam lá dentro e mandei descer pro segundo (andar). Eu fui verificar se as portas estavam fechadas e se não houve nenhuma depredação lá dentro." "Prendemos mais 250 pessoas pessoas aqui dentro, que invadiram, que depredaram tudo. Minha amiga, ninguém fala, mas nós preservamos praticamente o terceiro piso todinho — o coração do Planalto, que é a sala do presidente, ela foi preservada." O ex-ministro defendeu também que condutas como a do funcionário que foi filmado distribuindo água aos invasores sejam punidas. "Aquilo é um desvio de atitude", disse, referindo-se à cena. Ainda assim, Dias defendeu que a escolha de imagens como essa, de um funcionário distribuindo água, foi seletiva demais. "O major distribuindo águas a manifestantes, fizeram um corte específico na produção dos vídeos que vocês olharem (sic). Aquilo é um absurdo para minha imagem. Veja o seguinte, minha querida, eu tenho 44 anos de profissão no Exército Brasileiro. Sempre pautei a minha vida em cima dos valores éticos e morais", argumentou. "Eu não sei (de) onde vazou", disse, acrescentando que outros órgãos tinham as imagens por conta de processos, como a Polícia Federal, a Polícia Militar, o Ministério Público e o Comando Militar do Planalto. As gravações deram fôlego para o discurso de parlamentares bolsonaristas, que acusam o governo Lula de não ter protegido adequadamente o Palácio do Planalto para, supostamente, facilitar a atuação dos invasores. Eles já têm assinaturas suficientes para a abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar os ataques às sedes do Três Poderes, em 8 de janeiro, mas a instalação órgão depende de um ato oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), aliado do Palácio do Planalto. Logo após os ataques, algumas imagens da atuação dos radicais dentro do palácio chegaram a ser divulgadas pelo governo, mas o GSI determinou sigilo de cinco anos sobre e totalidade das gravações. Segundo reportagem do portal G1, a situação do agora ex-ministro foi agravada porque o próprio Lula teria solicitado a Dias imagens da atuação dos vândalos em frente ao gabinete presidencial, mas ele teria respondido que as imagens estavam indisponíveis. Dias foi escolhido para comandar o GSI porque contava com a confiança de Lula. Ele chefiou a segurança do petista em seus dois primeiros mandatos (2003-2010), quando recebeu o apelido de "sombra", por sua proximidade constante com o presidente. Apesar de Dias ter sido nomeado por Lula, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) destacou em nota divulgada nesta quarta-feira a presença de oficiais remanescentes do governo Bolsonaro na equipe do GSI, quando houve a invasão. “A violência terrorista que se instalou no dia 8 de janeiro contra os Três Poderes da República alcançou um governo recém-empossado, portanto, com muitas equipes ainda remanescentes da gestão anterior, inclusive no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que foram afastados nos dias subsequentes ao episódio”, disse o comunicado. A Secom ressaltou ainda que a PF tem as imagens da invasão e está “investigado e realizado prisões de acordo com ordens judiciais (do STF)”. “Dessa forma, todos os militares envolvidos no dia 8 de janeiro já estão sendo identificados e investigados no âmbito do referido inquérito. Já foram ouvidos 81 militares, inclusive do GSI”, acrescenta a nota. Antes da demissão do ministro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, defendeu a punição de qualquer agente leniente no 8 de janeiro. "Se houve algum tipo de leniência, se houve algum tipo de tolerância, com essas invasões que não eram manifestações, o tratamento deveria ser de atos criminosos", afirmou durante viagem oficial a Londres. Já o GSI anunciou em uma nota que as condutas dos agentes envolvidos "estão sendo apuradas em sede de sindicância investigativa instaurada no âmbito deste ministério". O comunicado diz ainda que, "se condutas irregulares forem comprovadas, os respectivos autores serão responsabilizados". Por outro lado, o órgão tentou justificar a atuação dos oficiais. "O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República esclarece que as imagens mostram a atuação dos agentes de segurança que foi, em um primeiro momento, no sentido de evacuar os quarto e terceiro pisos do Palácio do Planalto, concentrando os manifestantes no segundo andar, onde, após aguardar o reforço do pelotão de choque da PM/DF, foi possível realizar a prisão dos mesmos", informou em nota.
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5zxl1p7zgo
brasil
STF suspende julgamento de reajuste bilionário do FGTS: quem pode ter direito?
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu novamente nesta quinta-feira (27/4) o julgamento que pode alterar a taxa de correção monetária do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). O julgamento já havia sido interrompido na semana passada, com dois votos a favor da mudança. Nesta quinta, o tema foi suspenso novamente porque o ministro Kássio Nunes pediu vista, ou seja, mais tempo para analisar o assunto antes de dar seu voto. O ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, votou a favor da mudança de modelo para a correção que hoje é baseada na Taxa Referencial (TR) com acréscimo de 3% de juros ao ano. Segundo ele, embora não haja um direito constitucional à correção monetária para repor a inflação, a remuneração do FGTS não pode ser inferior à da caderneta de poupança. Ele disse que o critério atual do FGTS "não é razoável" e que a remuneração deve ser a mesma da poupaça, que hoje é de 6,17% ao ano mais TR. Barroso defendeu, porém, que a mudança não seja retroativa e seja aplicada apenas a partir do julgamento do Supremo e que perdas do passado devem ser resolvidas pelo Legislativo ou por negociação coletiva com o Executivo. Fim do Matérias recomendadas O ministro André Mendonça acompanhou o voto do relator e acrescentou em sua manifestação que considera ser inconstitucional a utilização da TR para fins de correção monetária. O julgamento foi suspenso, na semana passada pela ministra Rosa Weber, presidente do STF, que nesta quinta votou a colocá-lo em pauta. O placar continua 2 a 0 a favor da mudança. Após o pedido de vista de Nunes Marques, não há previsão de quando o julgamento será retomado. Kássio Nunes tem 90 dias para fazer uma análise do caso. A expectativa dos especialistas é de decisão favorável à mudança do FGTS. Mas, segundo eles, o STF pode limitar o alcance da decisão para evitar despesa bilionária à União. Esta é a quarta vez que a ação entra na pauta de julgamentos do plenário do Supremo – as outras vezes foram em 2019, 2020 e 2021, ocasiões em que a tomada de decisão foi adiada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Aguardado há nove anos – a ação movida pelo partido Solidariedade tramita no Supremo desde 2014 –, o julgamento deve definir se o atual modelo de correção do FGTS é constitucional. Pelo modelo atual, o Fundo de Garantia é corrigido pela TR (Taxa Referencial), mais juros de 3%. A ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5.090 pede a substituição da TR por um índice de inflação, como o IPCA-E (índice Nacional de preços ao Consumidor Amplo Especial) ou o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). "O julgamento é de suma importância, pois, desde janeiro de 1999 [quando a TR passou a ser usada como índice de correção do FGTS], todo mês o governo tira parte do rendimento do Fundo de Garantia dos trabalhadores através da Taxa Referencial", argumenta Marco Avelino, presidente do Instituto Fundo de Garantia do Trabalhador, grupo que busca evitar perdas no FGTS para seus associados. "Isso já prejudicou, nesses 24 anos, 100 milhões de trabalhadores. E, de acordo com nossos cálculos, são mais de R$ 700 bilhões que deixaram de ser creditados", afirma. A Advocacia-Geral da União discorda da tese e pediu ao STF em 19 de abril a extinção da ação. O órgão sustenta que as leis 13.446, de 2017, e 13.932, de 2019, já mudaram a remuneração das contas do FGTS ao estabelecer a distribuição de uma parte dos seus lucros aos cotistas. A remuneração teria assim passado a ser determinada não só pela correção monetária baseada na TR, mas também pela capitalização de juros de 3% ao ano e pela distribuição dos lucros. Para a AGU, isso invalida o principal argumento da ação de que a correção não acompanharia a inflação, prejudicando os trabalhadores. "A alteração legislativa mencionada atinge o núcleo do objeto, porque já não é mais possível afirmar, a partir dela, que a remuneração do correntista seja aquela indicada na petição inicial, que o autor entende inadequada", disse o órgão. A AGU diz, ainda, que o FGTS não é um simples bem que pertence ao trabalhador, uma vez que também é um instrumento de financiamento de projetos de interesse social nas áreas de habitação, saneamento básico, infraestrutura e saúde. “Para tornar viável a destinação social do fundo, optou-se pela adoção de um sistema de remuneração baseado na TR, tornando possível a concessão de crédito pelo FGTS a custos mais módicos. O equilíbrio do fundo depende do pagamento dos saldos de FGTS aos trabalhadores pela mesma Taxa Referencial, sob pena de se inviabilizar a realização dos programas sociais referidos", disse o órgão. Em seu voto, Barroso negou o pedido de extinção da ação e reconheceu ser relevante o uso de recursos do FGTS para fins sociais, mas argumentou que isso não pode ser um entrave para uma atualização correta. "Não se pode impor os custos de uma política pública de interesse geral da sociedade exclusivamente aos trabalhadores, grupo composto pelos estratos mais vulneráveis e hipossuficientes da população, sem violar o direito à igualdade", disse o ministro. Avelino aponta que são três os desdobramentos possíveis para o julgamento. O primeiro deles seria o Supremo considerar o uso da TR constitucional. Essa possibilidade é considerada improvável, por conta do histórico recente de decisões da Corte. "O Supremo julgou a TR como inconstitucional para corrigir precatórios, justamente por não refletir a inflação. E julgou inconstitucional para corrigir débitos trabalhistas por esse mesmo motivo. Então, esperamos que a mesma linha de raciocínio seja adotada", diz o advogado Franco Brugioni, do escritório Raeffray e Brugioni Advogados. A decisão sobre precatórios – dívidas da União com pessoas, empresas, Estados e municípios que a Justiça já determinou o pagamento em decisões definitivas – é de 2014, e a que julgou a aplicação da TR para correção monetária de débitos trabalhistas é de 2020. Um segundo resultado possível seria o STF dar vitória ao trabalhador com repercussão geral, beneficiando todos os contribuintes do Fundo de Garantia. "Eu descarto essa possibilidade, pois estamos falando de 100 milhões de trabalhadores e um 'confisco' de R$ 700 bilhões. É uma conta impagável", diz Avelino, do Instituto Fundo de Garantia. Assim, os dois especialistas avaliam que o desdobramento mais provável é o Supremo dar vitória ao trabalhador, mas modular a decisão, limitando quem poderá se beneficiar da correção de valores passados – embora, à frente, todos seriam beneficiados pela troca da TR por um índice de inflação. Tudo vai depender dessa provável modulação pelo STF. Em caso de uma decisão favorável aos trabalhadores, o Supremo terá que definir se serão beneficiados trabalhadores com carteira assinada entre 1999 e 2013, que é o período citado na ação; de 1999 em diante; ou depósitos feitos a partir da data da decisão do STF – nos três cenários, são incluídas tanto as contas ativas quanto as inativas do FGTS. O STF terá que definir também se a decisão será válida para todos os trabalhadores, ou somente para quem entrou com ação individual ou coletiva até a data do julgamento – portanto, até 20 de abril. A Corte decide ainda se uma eventual mudança no reajuste vale para quem sacou ou não os valores do FGTS. E se a correção será referente aos últimos cinco ou 30 anos. Para Avelino, o cenário mais provável é de que o STF aprove a decisão com validade de 1999 em diante, mas somente para quem entrou com ação até a data do julgamento. Assim, ele aconselha quem ainda não entrou com ação a buscar seu sindicato ou associação de funcionários para se informar sobre a existência ou não de uma ação coletiva de sua categoria. O trabalhador pode ainda constituir advogado para entrar com ação individual (mas, para isso, o prazo está muito apertado), ou dar entrada sem advogado em ação no tribunal regional de Justiça, usando algum modelo de ação pronta, disponível na internet. Brugioni diz que é improvável que o julgamento seja concluído já nesta quinta-feira e afirma que sempre há a possibilidade de ele ser novamente adiado, ou interrompido por um pedido de vistas. O FGTS foi criado em 1966 como uma espécie de poupança do trabalhador com carteira assinada. Antes facultativa, a adesão ao fundo se tornou obrigatória a partir da Constituição de 1988. Pelas regras atuais, todos os empregadores são obrigados a depositar 8% do salário de seus funcionários no fundo. Isso se aplica aos empregados urbanos, rurais e, desde 2015, também aos domésticos. O dinheiro é depositado em uma conta gerida pela Caixa Econômica Federal e somente pode ser sacado pelo trabalhador em situações como demissão sem justa causa e para a compra de imóveis. O governo utiliza os recursos do fundo para financiar políticas públicas, principalmente de habitação. A TR foi criada nos anos 1990, durante o governo de Fernando Collor, com um papel similar ao da Selic, com o objetivo de conter a indexação dos preços e salários e combater a alta inflação no país. Atualmente, perdeu relevância para o cálculo dos juros, mas manteve seu papel como indexador de alguns investimentos, como a poupança. O índice, no entanto, passou muitos anos abaixo do IPCA, índice de inflação oficial do país, ficando igual ou próximo de zero. Já o IPCA-E é o acumulado trimestral do IPCA-15, índice que mede a inflação do dia 16 do mês anterior ao 15 do mês de referência, e é considerado uma espécie de "prévia" do IPCA. Enquanto o INPC é o índice oficial que mede a inflação para as famílias com renda entre 1 e 5 salários mínimos e é usado pelo governo para corrigir anualmente o salário mínimo. Por conta disso, ele é considerado pelos especialistas como o substituto mais provável para a TR no FGTS.
2023-04-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1rgwzjyn87o
brasil
Como batalha do século 17 acabou ressignificada como fundação do Exército brasileiro
A história é cheia de invenções. Não de fatos, assim se espera. Mas de significados. Assim, uma importantíssima batalha travada no século 17 acabaria, dois séculos mais tarde, tratada como elemento de formação da nação brasileira. E, ressignificada, há menos de 30 anos passou a ser encarada como a data da fundação do Exército brasileiro. Estamos falando da Batalha dos Guararapes, confronto militar ocorrido em 18 e 19 de abril de 1648 — com novo episódio em 19 de fevereiro do ano seguinte. O conflito ocorreu no Morro dos Guararapes, atual Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife, Pernambuco. Na época, era ali a Capitania de Pernambuco — o Brasil se resumia ao status de colônia de Portugal. Lutaram as tropas da colônia portuguesa contra o exército holandês — no contexto da União Ibérica, em que Portugal havia ficado sob o domínio espanhol, a Holanda acabou ocupando e assumindo o controle de regiões do nordeste da colônia. A Batalha dos Guararapes, portanto, já ocorria no contexto da Guerra da Restauração, um conjunto de confrontos entre Portugal e Espanha que consolidaria a independência portuguesa. Somados os dois confrontos, lutaram nos Guararapes 4850 homens do lado português frente a mais de 12 mil holandeses. No primeiro confronto, há 375 anos, foram 84 mortos e 400 feridos das tropas lusitanas contra 2 mil mortos e 700 feridos do oponente. No ano seguinte, 47 mortos e 200 feridos portugueses; 2 mil mortos e 90 feridos holandeses. Fim do Matérias recomendadas Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez avalia que o conflito "foi um dos episódios decisivos na reinserção de Portugal na geopolítica europeia e colonial, após a restauração da autonomia portuguesa da Coroa espanhola, em 1640". "O controle político da região Nordeste e das rotas de comércio e de navegação no Atlântico Sul era uma necessidade da nova monarquia em Portugal", afirma ele à BBC News Brasil. Martinez acrescenta que isso envolvia, "além da posse territorial na América, a produção açucareira, o comércio africano e a soberania nas relações internacionais". OK, é inegável que o conflito foi de suma importância para Portugal. E que tenha sido também, a incontestável vitória lusitana, o marco inicial da expulsão definitiva dos holandeses do Brasil colonial. Mas quando e como surgiu o mito nacionalista de Guararapes? E de onde veio a ideia de considerar o episódio a certidão de nascimento do Exército? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Então comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes disse, na ordem do dia publicada em 19 de abril de 2022, que "a Insurreição Pernambucana, ao ser considerada o 'berço da nacionalidade', nos remete de imediato a Guararapes, cujos feitos marcaram a gênese do Exército brasileiro". "Ali, surgiram nossos primeiros heróis, em uma espontânea fusão de raças. Brancos, negros e índios, conjurados livremente, sob o inédito brado de 'pátria', lutaram bravamente contra o invasor estrangeiro", prosseguiu ele. "Com inteligência, coragem, espírito aguerrido e vigor, souberam concretizar o anseio de liberdade e o amor incondicional à terra." "Nascia, de forma inequívoca, o sentimento de soberania nacional, nosso maior legado e do qual jamais abriremos mão, custe o que custar" disse o general. "Hoje, uma vez mais, reverenciamos esse glorioso processo histórico de consolidação da identidade nacional". Gomes ainda enfatizou que o Exército brasileiro, na ocasião, completava "374 anos de uma existência alicerçada em valores e tradições". Ocorre que aquela luta não foi travada pelo Exército brasileiro. Porque o Exército brasileiro não existia. Oficialmente, o Exército brasileiro surgiu a partir da independência do Brasil — ou seja, ao mesmo tempo em que o Brasil surgiu como país. As forças do Exército português que atuavam na colônia acabaram se fragmentando no processo. Parte desses militares acabaram formando as primeiras tropas do que viria a ser o Exército brasileiro. Mas o século 19 foi um século de afirmação de identidades. Era preciso construir os mitos que dariam unidade à nação. E Guararapes foi recuperada com toda a potência de sua narrativa. "Ao longo do século [19], a batalha de Guararapes foi revisitada como o momento em que brancos, negros e indígenas teriam se juntado para expulsar um invasor", explica à BBC News Brasil o historiador Marcelo Cheche Galves, professor na Universidade Estadual do Maranhão (Uema). "Aí se forma a ideia da Batalha de Guararapes como a batalha da nação, que dá origem à nação brasileira." Em entrevista à reportagem, o historiador Paulo César Garcez Marins, professor no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que um ponto-chave nessa percepção é o fato de que para "as elites políticas da capitania de Pernambuco" havia sido importante desde sempre a instituição de um Exército autônomo. Nesse sentido, não havia uma dependência de tropas portuguesas que precisariam vir de longe. "Era um Exército feito por topas locais, que envolviam brancos, negros e indígenas", ressalta ele. Claro que todos lutando em prol de Portugal, uma vez que o Brasil tinha status de colônia. Mas foi essa amálgama racial e essa condição sui generis que fez com que o discurso de formação nacional se azeitasse. "[A batalha] foi a base inclusive da constituição de um nativismo muito importante para Pernambuco. E uma narrativa de que a expulsão dos holandeses era um feito brasileiro, dos pernambucanos", diz o historiador. De forma épica, é isso que acaba sendo eternizado no projeto de construção de um imaginário nacional. Entre 1875 e 1879, o artista plástico Victor Meirelles (1832-1903) pintou a gigantesca tela Batalha dos Guararapes, com 5 metros de altura por 9,25 de largura. A obra integra o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Ao longo das décadas, o Exército brasileiro vai incorporando a narrativa de que aquela batalha havia sido a sua gênese. "Esse Exército brasileiro criado no século 19, à procura de uma origem, de uma trajetória, de alguma maneira incorpora gradativamente a batalha de Guararapes como esse lugar de nascimento das forças brasileiras contra um invasor", contextualiza Galves. No livro A Invenção do Exército Brasileiro, o sociólogo e antropólogo Celso Castro, professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV) aborda essa questão. Ele parte do princípio de que "desde o fim do regime militar, os militares perderam significativa força política no Brasil" e que a partir dos anos 1990, "as relações entre Forças Armadas, sociedade e Estado no Brasil alteraram-se em favor do enquadramento militar à nascente democracia brasileira". Nesse contexto, ele pontua que celebrações militares que eram intensas durante a ditadura, como a vitória sobre a Intentona Comunista, em 1935, e a efetivação do golpe militar — que costuma ser chamado por eles de "revolução" — em 1964, estavam entrando "em declínio, tendendo a desaparecer". É quando outra celebração "estava por nascer", diz o autor. "Em 1994, por iniciativa do ministro do Exército, general Zenildo, foi criado o Dia do Exército, na data de realização da 1a. Batalha dos Guararapes (19 de abril de 1648)", escreve ele, no livro. "A Batalha dos Guararapes foi um evento muito importante no processo de expulsão das tropas holandesas que ocuparam a região de Pernambuco entre 1630 e 1654. Mesmo inferiorizadas numericamente, as tropas locais, compostas por unidades de brancos, negros e índios, e recorrendo a táticas de guerra irregular (ou de guerrilhas), derrotaram um inimigo superior em número e mais bem equipado." Castro prossegue explicando que "a ideia central da nova comemoração" era marcar que "em Guararapes teriam nascido ao mesmo tempo a nacionalidade e o Exército brasileiros". "A força simbólica do evento é reforçada pela presença conjunta das três raças vistas como constitutivas do povo brasileiro — o branco, o negro e o índio. Além disso, ao contrário das comemorações da Intentona e de 1964, não se trata aqui de um 'inimigo interno' a ser enfrentado, mas de invasores estrangeiros”. Mas a problematização vem em seguida: havia um país Brasil há 375 anos? A resposta é: não. "Na época da batalha, o Brasil ainda não era uma nação independente: esteve sob o domínio espanhol entre 1580 e 1640, retornando em seguida à condição de colônia portuguesa", lembra ele. O senão é o fato de que, como bem frisa Castro, "a metrópole pouco se envolveu na luta, ficando a tarefa de expulsar os holandeses por conta quase que exclusivamente da 'gente da terra'". E foi isso que "alimentou por mais de dois séculos o imaginário do nativismo pernambucano". O historiador Martinez define o que foi Guararapes com a grandeza histórica devida. "Foi um conflito crucial em que houve intensa mobilização nos esforços militares, políticos e diplomáticos e grandes contingentes populacionais, com o deslocamento de suprimentos, armas, combatentes e equipamentos de diferentes localidades das possessões portuguesas na América", afirma. "Este 'esforço de guerra' foi, posteriormente, apropriado pela política e pela memória histórica na criação de um imaginário de lutas e de unidade social pela liberdade e autonomia no Brasil, comumente denominado como 'revoltas nativistas' e 'sentimentos nativistas'", prossegue o historiador. "Daí a sua apropriação também pelo Exército em busca de afirmação da unidade do Estado nacional e da nação brasileira, principalmente, da centralidade social e política da corporação militar na história do Brasil." O professor prefere analisar a importância de Guararapes como uma batalha "em meio a muitas outras ações e movimentos nas disputas entre os impérios coloniais". "Estas só podem ser compreendidas dentro de um amplo arco que envolve as diferentes monarquias europeias e distintos espaços extra-europeus", comenta ele. Já a ressignificação, acredita Martinez, "inegavelmente" deve ser atribuída ao "imaginário político da construção do Estado nacional e da nação brasileira, sobretudo, no século 19". Segundo o professor, durante a ditadura, um grupo de militares contrários à democracia chegou a criar uma entidade secreta chamada Guararapes. "Decerto tinha a intenção de expressar um chamamento para um novo esforço total de guerra, agora contra a ‘subversão’, os comunistas e a democracia a ser adotada", diz Martinez. "A pertinência da lembrança deste episódio e de seus ressignificados reside na necessidade inadiável e incontornável de revisão do ensino de história nas escolas e academias militares. Esta ação educativa deve estar inserida e em conformidade com as diretrizes nacionais para o ensino de História, geral e do Brasil", analisa o historiador. "Uma memória democrática sobre a presença das forças armadas contribuiria para o fortalecimento da cidadania, das instituições democráticas e o desenvolvimento social e econômico com justiça social e distribuição efetiva da riqueza, da terra, da cultura e do poder nacional." Por outro lado, Martinez diz que "a memória da beligerância e da crueldade contra o inimigo oculto, traiçoeiro e ameaçador" e da "violência indiscriminada contra combatentes e não combatentes, acima de tudo e acima de todos, precisa ser revista urgentemente e substituída por outra, em sintonia com uma sociedade mundial regida pela paz, a cooperação, a solidariedade e equidade entre povos e nações".
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84mjm9488no
brasil
Por que 19 de abril virou 'Dia dos Povos Indígenas'
O dia 19 de abril ficou conhecido no Brasil todo como o "Dia dos Povos Indígenas". Até o ano passado, a data era conhecida como "Dia do Índio", mas o nome foi mudado por uma lei em julho de 2022. A origem da data remete a um protesto dos povos indígenas do continente americano ainda na década de 1940, quando um congresso organizado no México se propôs a debater medidas para proteger os índios no território. O Congresso Indigenista Interamericano, realizado em Patzcuaro, aconteceu entre os dias 14 e 24 de abril de 1940. Em princípio, os representantes indígenas haviam se negado a participar do evento, achando que não teriam voz ou vez nas reuniões - que seriam comandadas por líderes políticos dos países participantes. Os indígenas, então, fizeram um boicote nos primeiros dias, mas, justamente no dia 19 de abril, decidiram aparecer no congresso para tomar parte nas discussões. Foi por conta disso que a data acabou sendo escolhida. Fim do Matérias recomendadas Eram 55 delegações oficiais no México. Das Américas, somente Paraguai, Haiti e Canadá ficaram de fora. Entre os índios, eram 47 representantes dos povos de todo o continente - no caso do Brasil, o delegado enviado foi Edgar Roquette-Pinto, que não era índio, mas foi antropólogo, etnólogo e estudioso de povos indígenas da Serra do Norte, na Amazônia. Com o fim do Congresso, foram definidas algumas medidas genéricas a serem tomadas em favor da defesa dos povos indígenas. Entre elas, estavam o "respeito à igualdade de direitos e oportunidades para todos os grupos da população da América", "respeito por valores positivos de sua identidade histórica e cultural a fim de melhorar situação econômica", "adoção do indigenismo como política de Estado", e, por último, estabelecer "o Dia do Aborígene Americano em 19 de abril". Não foram todos os países que adotaram a data como dia de celebração da cultura indígena - e no Brasil ele também levou tempo a ser oficializado, já que o país não aderiu às deliberações do congresso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Somente em 1943 foi instituído decreto-lei instituído pelo presidente Getúlio Vargas, que finalmente estabeleceu a data comemorativa. O responsável por convencê-lo foi o general Marechal Rondon - que tinha origem indígena por seus bisavós e chegou a criar, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio - que depois viria a se tornar a atual Funai (Fundação Nacional do Índio). "O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, e tendo em vista que o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, reunido no México, em 1940, propôs aos países da América a adoção da data de 19 de abril para o 'Dia do Índio', decreta: Art. 1º - considerado - 'Dia do Índio' - a data de 19 de abril. Art. 2º- Revogam-se as disposições em contrário", dizia o decreto. Além do Brasil, Costa Rica e Argentina também adotaram a data. Do Congresso, saiu também a criação do Instituto Indigenista Interamericano, que se tornou um órgão vinculado à OEA (Organização dos Estados Americanos) em 1953. Depois dele, aconteceram mais 11 edições, sendo a última em 1999, na Cidade do México. Até o ano passado, oficialmente a data era conhecida como Dia do Índio. Por isso, "quando a gente comemora o Dia do Índio, estamos comemorando uma ficção", fala Munduruku, a respeito do 19 de abril. Reflexo disso são celebrações da data feitas por escolas, com uma "figura com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo". "É uma ideia folclórica e preconceituosa." "A palavra 'indígena' diz muito mais a nosso respeito do que a palavra 'índio'. Indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros", defende Munduruku, que pertence ao povo indígena de mesmo nome, hoje situado em regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso. "Talvez o 19 de abril devesse ser chamado de Dia da Diversidade Indígena. As pessoas acham que é só uma questão de ser politicamente correto. Mas, para quem lida com palavra, sabe a força que a palavra tem", continua o escritor, autor de mais de 50 livros para crianças, jovens e educadores. Em julho de 2022, o nome foi oficialmente mudado de Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas pela Lei 14.402/22. A autora do projeto de lei, a então deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), disse que a intenção era "ressaltar, de forma simbólica, não o valor do indivíduo estigmatizado 'índio' mas o valor dos povos indígenas para a sociedade brasileira". O presidente na época, Jair Bolsonaro, chegou a vetar a lei, alegando que não haveria interesse público na mudança, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43831319
brasil
STF aprova extradição de colombiano achado no Brasil por pai da namorada assassinada há 30 anos
A Segunda Turma do STF decidiu por maioria de votos pela extradição de Jaime Enrique Saade Cormane. Na conclusão do julgamento, o ministro Nunes Marques apresentou voto de desempate, e o ministro Edson Fachin mudou seu voto, que era originalmente contra a extradição. Ambos acompanharam o relator, ministro Gilmar Mendes, para aceitar a solicitação apresentada pelo governo colombiano. Em 2020, a Corte havia negado a extradição e soltado da cadeia Jaime Saade, condenado a 27 anos de prisão na Colômbia pela morte e estupro de Nancy Mestre, que tinha apenas 18 anos quando foi morta em 1994. O caso chocou a Colômbia e envolveu uma busca de 26 anos do pai da jovem pelo assassino da filha. Fim do Matérias recomendadas Após o assassinato, Jaime fugiu da cidade de Barranquilla para o Brasil, onde se fixou com nome e documentos falsos. Em Belo Horizonte, passou a viver uma vida confortável sob o nome de Henrique dos Santos Abdala. Ele se casou com uma brasileira e teve dois filhos no Brasil. Mas a busca incansável de Martín Mestre, pai de Nancy, pelo assassino da filha interrompeu os planos de Jaime. Após investigar o paradeiro do ex-genro por mais de duas décadas, anos, ele o localizou no Brasil e deu as coordenadas à Interpol, que prendeu Jaime Saade em 2020. Naquele mesmo ano, o Supremo soltou o colombiano e negou a extradição com o argumento de que o crime de homicídio havia prescrito no Brasil. Na ocasião, o placar foi de empate — um dos ministros, Celso de Mello, estava ausente à sessão em licença médica. Em vez de aguardar o voto de Celso de Mello, os ministros decidiram aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu. Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem punição pela morte de Nancy Mestre. O governo da Colômbia, que havia pedido a extradição, não recorreu, considerando que não haveria mais chances de trazer Jaime para o país. Com isso, a decisão transitou em julgado. Mas o pai da jovem não desistiu. Entrou ele próprio com uma ação rescisória, apelando para o tribunal rever a decisão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Havia a possibilidade de o recurso ser inadmitido sem que os ministros analisassem o pedido, porque Martín não era parte no processo de extradição, mas sim o governo da Colômbia. No entanto, numa reviravolta, o relator, ministro Alexandre de Moraes, considerou que o pai da jovem tinha, sim, o direito de entrar com a ação rescisória e votou a favor de rever a decisão que impediu a extradição. Para ele, diante do empate, a Corte deveria ter aguardado o voto do ministro que estava ausente à sessão, em vez de ter optado por negar a extradição. Outros seis ministros acompanharam o voto de Moraes: André Mendonça, Edson Faquin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Rosa Weber. Outros três ministros — Nunes Marques, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — discordaram e votaram por manter a decisão de negar a extradição. Em 26 de julho deste ano, a ação penal por homicídio contra Jaime vai prescrever na Colômbia. Se ele não for extraditado até esta data, não poderá mais ser preso. Mas quais os detalhes desse crime que chocou a Colômbia e que foi parar na Justiça brasileira? E como Jaime Saade conseguiu ficar tanto tempo no Brasil sem ser descoberto? Nancy, filha mais nova de Mestre, queria ser diplomata e se mudar da Colômbia para os Estados Unidos para cursar a faculdade. "Era uma menina alegre, muito estudiosa. Vivia lendo. Queria estudar Direito Internacional e diplomacia", conta Martín. Mas todos os planos da jovem de 18 anos foram interrompidos na madrugada do dia 1° de janeiro de 1994. Nancy, o pai, a mãe e o irmão brindaram o novo ano em casa. Pouco depois da meia-noite, Martín se despediu da filha, que pediu para continuar a comemoração de Ano Novo com o namorado, Jaime Saade. O rapaz havia ido buscá-la em casa. "Volte antes das 3h da manhã", pediu Martín à filha. "Cuide bem dela", pediu ele a Jaime. Às 6h, Martín acordou sobressaltado. "Assim que acordei já pressenti algo", conta. Ele foi procurar Nancy pela casa e encontrou o quarto dela vazio. Saiu pelas ruas da cidade, entrando em discotecas para ver se o casal de jovens estava lá, mas não os encontrou. A ansiedade foi aumentando e, enquanto perguntava pela filha a quem via pela rua, rezava em silêncio para que ela aparecesse sã e salva. Por fim, decidiu ir até a casa dos pais de Jaime, onde o rapaz também morava. Lá, se deparou com a mãe dele limpando o chão. "Estava escuro e não me dei conta, naquele momento, que eu estava pisando no sangue da minha própria filha. E que a mãe do assassino estava violando a cena de um crime." "A sua filha sofreu um acidente e está na Clínica del Caribe", disse a mulher. Martín correu para o hospital e lá encontrou o pai de Jaime. "Sua filha tentou se suicidar e está na sala de cirurgia." Na sala de atendimento de emergência, médicos tentavam estabilizar o quadro de saúde de Nancy, que estava em coma. A jovem havia sido levada ao hospital por Jaime, o pai dele e uma mulher que também morava na casa da família. Eles enrolaram Nancy, que estava nua, num lençol e a colocaram na caçamba de uma caminhonete. "Foi aos poucos que eu comecei a organizar na minha cabeça o que tinha acontecido. Ela foi violentada, maltratada e foi jogada na caçamba de uma caminhonete. Eu disse: 'Meu Deus, o que fizeram com a minha filha!'", lembra Martín. Oito dias de agonia no hospital se seguiriam. A jovem nunca mais recobrou a consciência. "Os médicos me avisaram que ela iria partir. Eu, a mãe de Nancy e nosso outro filho, Martín, nos reunimos no quarto do hospital e ficamos orando e cantando músicas que ela gostava de ouvir quando criança", conta. De repente, o coração dela parou de bater. Enquanto os pais de Nancy sofriam no hospital e a polícia investigava o que havia acontecido com a jovem naquele dia 1° de janeiro, o principal suspeito do crime, Jaime Saade, fugia da Colômbia. "Jaime iniciou a fuga no mesmo dia do assassinato e nunca mais foi visto no país", diz Martín. A polícia descartou a tese de suicídio. Nancy morreu com um tiro na cabeça, que entrou pela têmpora direita. Resquícios de pólvora foram encontrados na mão esquerda dela, um indicativo, segundo as autoridades colombianas, de que ela tentou se defender. A jovem era destra e precisaria ter feito um movimento muito improvável, segundo a polícia, para acertar a têmpora direita carregando a arma com a mão esquerda. A investigação concluiu que Nancy havia sido violentada. Ela tinha ferimentos pelo corpo e, nas unhas quebradas, havia restos de pele - outro sinal de que tentou se defender. Em 1996, dois anos depois da morte da jovem, um tribunal da Colômbia condenou Jaime Saade a 27 anos de prisão por homicídio e estupro. Segundo a decisão da justiça colombiana, após violentar e atirar na cabeça de Nancy, Jaime teria se desesperado e pedido ajuda ao pai. Eles enrolaram o corpo nu da jovem num lençol e a levaram para o hospital. O pai de Jaime ficou na clínica, enquanto o filho se escondia. Daquele momento em diante, o foco da vida de Martín se tornou encontrar Jaime, uma caçada que duraria 26 anos. "Eu sabia que poderia demorar, mas sempre soube que encontraria o assassino da minha filha." Desde a condenação de Jaime Saad, Martín passou a cobrar mensalmente das autoridades respostas sobre as investigações e estabeleceu contatos com a Interpol para compartilhar informações que ele próprio encontrava. A morte de Nancy mudou para sempre o destino da família. Martín e a esposa se separaram. O único filho vivo do casal se mudou para os Estados Unidos. E Martín, que é arquiteto e professor, concentrou quase todo o seu tempo e energia na busca por Jaime. Ele ingressou em cursos de inteligência e resgatou conhecimentos que aprendera quando era oficial da Marinha para usar nos seus esforços de investigação. "Eu criei quatro personagens fictícios, dois homens e duas mulheres, e passei a estabelecer contato nas redes sociais com familiares de Jaime para ganhar confiança e obter informações que pudessem me levar a ele", contou à BBC News Brasil. Martín repassava para a polícia colombiana e a Interpol cada detalhe que conseguia obter. Ao longo dos 26 anos de busca, vários delegados diferentes assumiram o caso. "Cada vez que o responsável pela investigação mudava, eu ia até lá com todos os documentos para colocar a pessoa a par de tudo." Das conversas que estabeleceu com familiares de Jaime, usando os perfis fictícios, Martin encontrou duas pistas que o levaram a crer que Jaime poderia estar em território brasileiro. Primeiro, descobriu que um irmão de Jaime mora no Brasil. Depois, desconfiou da menção frequente da família do rapaz à localidade de Santa Marta. Santa Marta é uma cidade costeira da Colômbia, com uma praia chamada Bello Horizonte. A investigação dele chegou, por fim, à conclusão de que Jaime poderia estar na cidade brasileira de Belo Horizonte, não em Santa Marta, na Colômbia. De posse dessas informações, a Polícia Federal brasileira e a Interpol localizaram uma pessoa com perfil similar ao de Jaime Saade. Os policiais seguiram o suspeito até um café e, depois que ele saiu do estabelecimento, coletaram o copo que ele usou para beber. Queriam verificar se as digitais batiam com as do colombiano condenado pelo assassinato de Nancy. Eram idênticas. Ao abordarem Jaime, ele apresentou documentos falsos e disse se chamar Henrique dos Santos Abdala. Vivia uma vida tranquila em Belo Horizonte, com a esposa brasileira e dois filhos crescidos. Foi preso pela PF e passou a responder no Brasil por crime de falsidade ideológica. Pouco depois, o governo da Colômbia entrou com pedido de extradição para que Jaime pudesse cumprir a pena de 27 anos no país. "Quando o diretor da Interpol me ligou para contar da prisão, eu me ajoelhei no chão e comecei a agradecer a Deus. Meu Deus! Depois de quase 27 anos vai haver justiça", conta. "Telefonei ao meu outro filho, Martín, que vive nos Estados Unidos, e à mãe dele, que hoje mora na Espanha, e todos começamos a chorar." Para Martín, seria questão de meses até Jaime começar a cumprir a pena na Colômbia. Só faltava a autorização do Supremo para a extradição. Mas algo muito diferente do que ele esperava aconteceu. No dia 28 de setembro de 2020, Martín recebeu um telefonema de um advogado. O Supremo havia decidido não extraditar Jaime porque o crime que ele cometeu havia prescrito no Brasil - o prazo para prescrição da pretensão punitiva naquele caso, um assassinato, era de 20 anos. Jaime fora encontrado 26 anos depois da morte de Nancy. Mas o julgamento no STF não foi por maioria, foi um empate. Duas interpretações dividiram os ministros presentes. A lei brasileira veda a extradição se o crime tiver prescrito no Brasil. Mas a legislação também diz que, se a pessoa cometer outro crime posteriormente, o prazo de prescrição do primeiro se interrompe. Jaime havia cometido crime de falsidade ideológica e falsificação de documentos, já que para viabilizar a fuga, adotou nome e documentos falsos. Os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia entenderam que ele poderia ser extraditado, porque a suspensão da prescrição vale, na visão deles, a partir do cometimento do segundo crime. Já Edson Fachin e Ricardo Lewandowski votaram por não extraditar Jaime, com o argumento de que a suspensão da prescrição só ocorre após condenação e trânsito em julgado do segundo crime. "Meu cliente, o Jaime, não tinha nem sido denunciado pelo Ministério Público na época que o Supremo estava julgando o caso. A prescrição (da punição para o crime de homicídio) ocorreu no Brasil em 2016 e ele só foi denunciado por crime de falsidade em 2021, portanto seis anos depois da prescrição", disse à BBC News Brasil o advogado de Jaime, Fernando Gomes de Oliveira. O ministro Celso de Mello, que poderia desempatar o julgamento, não estava presente no dia. O tribunal, então, decidiu aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu. Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem qualquer punição pela morte de Nancy Mestre. Para Martín, após 26 anos de busca incessante por Jaime Saade, tudo se resolveu "como se fosse uma partida de futebol". "Como é que permitem que uma decisão importante como essa, onde se está discutindo justiça ou impunidade, seja decidida por empate, como se fosse um jogo de futebol?", questiona. A decisão foi revertida nesta terça-feira e os ministros brasileiros decidiram que o colombiano será extraditado.
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce9080yr414o
brasil
Os erros e acertos da estratégia de Lula na guerra da Ucrânia
Declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que as potências ocidentais estariam incentivando a guerra na Ucrânia — nação invadida pela Rússia — provocaram fortes reações negativas por parte de Estados Unidos e União Europeia. Por um lado, analistas de política externa e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil consideram que a estratégia do governo de manter a neutralidade e tentar contribuir para a paz no conflito é correta e segue a tradição brasileira de valorizar o multilateralismo. O país busca, assim, um equilíbrio entre as grandes potências, já que, de um lado, EUA e União Europeia têm apoiado a Ucrânia, enquanto a Rússia tem mantido boa relação com a China. "O Brasil é uma potência média. Não temos força militar nem econômica particularmente relevante. Então, precisamos de um mundo, na medida do possível, multipolar, em que haja mais de uma potência forte, para equilibrar", disse à reportagem uma fonte do Itamaraty, ao explicar a decisão do Brasil de não se alinhar a qualquer lado do conflito. "Não interessa ao Brasil um mundo unipolar, em que o país fique à mercê do que os Estados Unidos mandem, nem de que ninguém mais mande. Não é uma questão contra os Estados Unidos. É uma questão sistêmica de evitar que só um país no mundo mande nas coisas", acrescentou. Por outro lado, os especialistas criticam o tom das recentes falas de Lula, consideradas pouco diplomáticas. Parte deles, como o embaixador aposentado Rubens Barbosa, também questiona se o presidente deveria colocar tanta energia em um tema complexo e distante do Brasil, em vez de concentrar esforços em assuntos que o Brasil tem maior potencial de liderança, como a agenda ambiental e da segurança alimentar. Fim do Matérias recomendadas O estremecimento com as potências ocidentais, porém, é visto como "superável" pelos entrevistados. Uma visita de Lula ou do assessor especial do presidente, Celso Amorim, a Kiev, seria um gesto interessante nesse sentido, segundo essa avaliação. O líder brasileiro já foi oficialmente convidado pelo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Questionado pela BBC News Brasil, o Itamaraty disse que "o melhor momento para atender o convite está sendo avaliado". Um porta-voz do governo americano chegou a dizer na segunda-feira (17/04) que a posição brasileira “é profundamente problemática” e que o país estaria "papagueando (repetindo automaticamente) propaganda russa e chinesa" sobre a guerra. Após as reações negativas, Celso Amorim afirmou que é "totalmente absurdo" dizer que o Brasil papagueia a posição russa, em entrevista ao canal Globo News nesta terça-feira (18/04). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lula, porém, parece ter recalibrado o tom. Depois de encontrar em Brasília com o presidente da Romênia, Klaus Werner Iohannis, cujo país faz fronteira com a Ucrânia, voltou a criticar a invasão russa, sem afirmar que o governo ucraniano também teria responsabilidade no conflito, como fez em algumas falas nas últimas semanas. "Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito", disse o presidente. O presidente também voltou a defender a criação de "um grupo de países que tente sentar-se à mesa tanto com a Ucrânia como com a Rússia para encontrar a paz". O cientista político Hussein Kalout, pesquisador em Harvard e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), não vê falas recentes de Lula "como um alinhamento automático à China e à Rússia". "O Brasil não é um país que admite subordinação objetiva de interesses. Nem o Itamaraty admite isso, e nem o governo atual admite isso", disse à reportagem. No entanto, Kalout considera que algumas declarações podem afetar a "credibilidade e a confiabilidade" das potências ocidentais no Brasil. "Acho que talvez o Brasil deveria apresentar uma abordagem mais propositiva no sentido de conclamar os parceiros históricos e amigos do Brasil, como europeus e Estados Unidos, a trabalharem juntos pela paz, e não inferir ou aludir a quem está alimentando ou não o conflito", afirmou ainda. A invasão russa à Ucrânia começou em 24 de fevereiro de 2022. Um dos argumentos usados pelo lado russo para tentar justificar o ataque seria impedir o que classifica de cerco à sua fronteira com a possível adesão da Ucrânia à Otan — aliança militar de 30 países liderada por potências ocidentais, que se expandiu pelo Leste Europeu, incluindo hoje 14 países do ex-bloco comunista. Putin acusa ainda, sem provas, o governo ucraniano de genocídio contra ucranianos de origem étnica russa que vivem nas regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. Ele alega que a invasão tenta "desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia. Por outro lado, a Ucrânia e outros observadores veem na guerra uma tentativa da Rússia restabelecer a zona de controle e influência da antiga União Soviética, algo visto como desrespeito à soberania da Ucrânia, que deveria ter o direito de decidir seu destino e suas alianças. Em meio a esse delicado conflito, que divide grandes potências, o Itamaraty tem mantido equilíbrio em suas posições na ONU. O Brasil apoiou, por exemplo, duas resoluções das Nações Unidas contra a ação russa. A mais recente, de fevereiro, condenava a invasão territorial ucraniana e exigia a imediata retirada das tropas russas. Essa resolução obteve 141 votos a favor, sete contra e 32 abstenções entre os 193 Estados-membros da ONU. Os países que votaram contra o texto foram Rússia, Belarus, Síria, Coreia do Norte, Eritreia, Mali e Nicarágua. Entre os que se abstiveram estavam China, Índia, Moçambique, Angola e Cuba. Segundo os especialistas ouvidos, a posição brasileira foi coerente com sua tradição de seguir os princípios previstos na Carta da ONU, de respeito à integridade territorial dos países, de promoção à paz e de evitar agressões entre as nações. O documento, assinado pelo Brasil em 1945, é o tratado que estabeleceu as Nações Unidas. Por outro lado, o respeito à Carta também explica a decisão do Brasil de não apoiar as sanções impostas pelas potências ocidentais à Rússia. Segundo a interpretação do Itamaraty sobre esse documento, sanções internacionais só são legais se aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU. Países desenvolvidos, porém, discordam dessa interpretação e lembram que não seria possível aprovar sanções no Conselho de Segurança contra a Rússia porque o país é membro permanente e tem poder de veto. "Ao Brasil interessa que sanções sejam limitadas ao mecanismo de segurança coletiva porque não tem capacidade de aplicar sanções unilaterais e teme ser alvo desse tipo de medida. Já os países poderosos não temem ser alvos e são capazes de aplicar sanções dolorosas aos demais", nota um diplomata ouvido pela reportagem. Para o diplomata aposentado Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e Washington, "a posição de equidistância (no conflito) é a única possível para o Brasil". "Levando em conta que o Brasil é um país ocidental, com relação muito estreita com os Estados Unidos, mas que hoje tem grande interesse na Ásia. Levando em conta também a dependência que nós temos de importação de fertilizantes da Rússia, a exportação de produtos agrícolas para a China", ressaltou. Na sua visão, o problema de algumas falas de Lula é que elas estão destoando da neutralidade oficial brasileira. "Quer dizer, você tem uma posição do Itamaraty, que define a posição do governo brasileiro na votação da ONU condenando a Rússia por causa da invasão, e agora você tem umas frases do presidente que estão sendo interpretadas como uma mudança de posição, como fazia (o ex-presidente Jair) Bolsonaro", comparou. "Ele (Bolsonaro) falava uma coisa e o Itamaraty fazia outra. No meio ambiente, na (relação com a) Rússia, na (relação com) China. Então o Lula está repetindo o Bolsonaro", disse ainda. Apesar de considerar as falas negativas, Rubens Barbosa não acredita que as declarações feitas até o momento sejam suficientes para causar algum dano relevante na relação com Estados Unidos e União Europeia, tendo em vista a boa relação histórica do Brasil com esses países e o fato de a posição oficial do país na ONU não ter mudado. Outro fator que pode contribuir para superar o episódio é o desejo das potências ocidentais de reforçar essa boa relação histórica com o Brasil, após algumas tensões durante o governo de Jair Bolsonaro, nota Hussein Kalout. Na sua visão, Lula tem a seu favor o fato de ser visto internacionalmente como um democrata, em contraste com seu antecessor. "Esse momento de aparente estremecimento é absolutamente superável porque há uma convergência maior de agenda e complementaridade mais aguda de interesses entre Lula e Europa e o governo (americano de Joe) Biden", disse.
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpvq3y2v3g0o
brasil
Lygia Fagundes Telles: um século de histórias da dama da literatura brasileira
Lygia Fagundes Telles adorava viajar. Mas, aparente contradição, detestava aviões. "Por que estou sempre metida em algum deles?", queixou-se à escritora Clarice Lispector, durante voo para a Colômbia, em 1974. As duas eram convidadas de um congresso de literatura hispano-americana, em Cali. Para disfarçar o nervosismo, abriu um jornal e fingiu ler algumas notícias. Não adiantou. Sentada na poltrona ao lado, Clarice esboçou um sorriso e tranquilizou a amiga. "Lyginha, minha cartomante já avisou que não vou morrer em nenhum desastre!" Em terra firme, as duas logo se entediaram com o evento literário. "Essa gente fala demais!", reclamou Clarice, ucraniana naturalizada brasileira. Fim do Matérias recomendadas Terminada a apresentação, foram às compras. Na volta, passaram pelo bar do hotel. Lygia pediu vinho e Clarice, champanhe. "Na saída, precisávamos mascar chiclete porque nossos bafos estavam péssimos!", recordou Lygia, aos risos, em entrevista ao jornal O Globo, de 15 de outubro de 2011. O medo de voar não a impediu de conhecer dezenas de países. Com o segundo marido, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, visitou o Irã, em 1968. Convidada do Festival Internacional de Cinema, descobriu, durante visita ao túmulo do rei Ciro, da Pérsia, que a Pasárgada do poeta Manuel Bandeira não era uma invenção poética. "Sou um horror em geografia", admitiu, em 2013. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com os escritores Ivan Ângelo e Ignácio de Loyola Brandão, viajou para Nova York em 1982. Foram divulgar As Meninas, Zero e A Festa, recém-traduzidos para o inglês. Entre um compromisso e outro, gravaram reportagem para a TV brasileira no Rockefeller Center. Na hora em que Ivan Ângelo concedia entrevista, alguém da multidão quis saber quem era. "Paul Newman!", improvisou Lygia, moleca. A notícia logo se espalhou. "Faziam fila para autógrafos", relatou o suposto sósia do galã ao Cadernos de Literatura Brasileira. "E ela ria, ria…" "Em Berlim, ao ver que João Ubaldo Ribeiro tinha comprado caixas de uma 'vitamina milagrosa', exigiu que ele a levasse à farmácia para comprar um lote. 'Preciso estar pronta para envelhecer', dizia. Se alguém do grupo fizesse uma compra, ficava enciumada. Era preciso levá-la ao mesmo lugar. Grandes pessoas têm pequenas idiossincrasias", afirma o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão. "A grande dama da literatura era uma mulher simples, low-profile, sem pose. Talvez soubesse que era grande. E ponto." Lygia Fagundes Telles ainda se chamava Lygia de Azevedo Fagundes — só se casou com o advogado Goffredo da Silva Telles Júnior, em 1950 — quando prometeu a si mesma escrever no mínimo dez obras, entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e ter um busto na Praça da República, ao lado da escultura de Álvares de Azevedo. Dos três sonhos de infância, realizou dois: publicou mais de 20 obras e, por 32 votos a sete, foi eleita para a cadeira 16 da ABL em 24 de outubro de 1985. Foi mais ou menos nesta época que Lygia tomou ranço de aniversário. Quando tinha 10 anos, sua mãe, a pianista Maria do Rosário Silva Jardim de Moura, a Zazita, preparou uma festa linda. Ninguém apareceu. Também, pudera. A aniversariante esqueceu de entregar os convites... "Aniversário é uma data boa quando se é jovem. Depois da velhice brutal, não quero mais!", desabafou ao Globo, em 12 de abril de 2013. Depois de sua morte, descobriu-se que Lygia Fagundes Telles não nasceu em 19 de abril de 1923. Nasceu cinco anos antes: em 19 de abril de 1918. "Quando Lygia nasceu, todas as fadas se debruçaram sobre seu berço. Era uma mulher linda, inteligente, excelente escritora e um senso de humor formidável. Tinha o coração do lado certo. Sempre defendeu as boas causas. Era um orgulho ter o mesmo passaporte dela", exalta a escritora e acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira que, no dia 31 de outubro, vai fazer uma palestra na ABL em homenagem ao centenário da amiga. "Sua maior contribuição à literatura brasileira foi ela mesma. Nunca foi uma militante. Mas influenciou as mulheres que a leram. Lygia não criava personagens. Criava pessoas. Sou muito grata a Lygia por todas as reflexões que despertou em mim." O número de livros publicados só não é maior porque ela rejeitava os três primeiros, de contos: Porão e Sobrado, de 1938; Praia Viva, de 1944; e O Cacto Vermelho, de 1949, que classifica como "imaturos" e "precipitados". Lygia começou a escrever muito cedo, quando cursava o antigo ginásio no Instituto Caetano de Campos, em São Paulo. Seu primeiro livro foi publicado com recursos do pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes. "Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros. Não quero que percam tempo com eles!", afirmou, em 1998. Do pai, Lygia dizia ter herdado "o vício do risco". Com uma diferença: ele jogava com fichas; ela, com palavras. "Hoje, perdemos, mas amanhã a gente ganha", costumava repetir. Certo dia, Durval perdeu tudo na roleta. Por essa razão, Lygia criou verdadeiro pavor da instabilidade econômica. Conclusão: concluiu duas faculdades: a de Educação Física, em 1941, e de Direito, em 1946, ambas na Universidade de São Paulo (USP). Para o crítico Antonio Candido, a fase “madura” de sua obra teve início em 1954, com Ciranda de Pedra. É o primeiro de seus quatro romances. Os outros são Verão no Aquário, de 1964; As Meninas, de 1973; e As Horas Nuas, de 1989. Ciranda de Pedra ganhou duas adaptações para a TV: em 1981, adaptado por Teixeira Filho, e em 2008, por Alcides Nogueira. "No livro, não há um só casamento; na novela, arrumaram dez! Eu via aquilo e falava: 'Oh, meu Deus, outro casamento!?'", espanta-se, referindo-se à primeira versão. Quem também gostou de seu romance de estreia foi Simone de Beauvoir. As duas se conheceram em São Paulo em almoço oferecido pelo editor Barros Martins em 1960. Às vésperas de regressar a Paris, a francesa marcou um encontro em uma livraria. Queria presentear a brasileira com um exemplar de Todos os Homens São Mortais, de 1946. Em retribuição, Lygia ofereceu uma cópia — datilografada e em francês — de Ciranda de Pedra. Dias depois, Lygia recebeu uma carta que a deixou "em estado de graça". "Não só lera o livro como se apressara em alegrar o coração de uma escritora brasileira que passou esse dia levitando", derrete-se em crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 8 de janeiro de 1978. "Lygia trabalhou muito, durante toda sua vida, até os últimos anos. Posso dizer que o grande amor de sua vida foi seu trabalho", garante sua neta, Lúcia Telles, filha de Goffredo da Silva Telles Neto. "Quando meu pai morreu, escreveu Conspiração de Nuvens para afastar a depressão." "Minhas primeiras memórias com ela são em seu apartamento: os gatos, a máquina de escrever, recortes de jornais com os crimes que a interessavam... Quando eu era pequena, contava histórias de terror e mistério. Lia Edgar Allan Poe para mim e eu adorava. Adoro até hoje. Sinto uma falta enorme dela." Quando colocou o ponto final em As Meninas, Lygia caiu no choro. Chegava ao fim uma "convivência encantadora". Uma das protagonistas chegou a "suplicar para que não a matasse". "Ainda tenho muito o que dizer”, protestava Ana Clara. “Não posso morrer agora". Lygia não conseguiu salvá-la: morreu por overdose. Em 1976, Lygia foi a Brasília, acompanhada por outros intelectuais, como a escritora Nélida Piñon, entregar ao ministro da Justiça, Armando Falcão, um manifesto contra a censura. Passado algum tempo, Paulo Emílio chegou em casa rindo. Soube que o censor encarregado de ler As Meninas não conseguiu passar da página 40. "Achou tudo muito chato", explicou a autora, em 2009. Sorte a dela. Nas páginas 148 e 149, reproduz um doloroso relato de tortura. O romance ganhou quatro versões: três para o teatro e uma para o cinema. No filme de Emiliano Ribeiro, Lorena, Lia e Ana Clara foram interpretadas por Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz. "Uma série de autoras contemporâneas que dedicaram obras ao período da ditadura militar poderiam ser netas da Lygia. Não posso afirmar que todas a leram, mas, de todo modo, se juntam a Lygia nessas páginas de nossa história literária como um alerta do que não pode ser esquecido por todos nós, como coletividade, mas sem apagar os caminhos mais interiores, mas ressaltá-los", afirma a pesquisadora Luciana Araújo Marques que, no próximo dia 19, vai mediar, às 20h, na livraria Gato sem Rabo (SP), um bate-papo com as escritoras Andréa del Fuego e Aline Bei sobre o legado da aniversariante do dia. "Para mim, essas escritoras agem como guerrilheiras da negação da morte. Talvez menos em um sentido de eternidade e da monumentalização do que é tido como 'o que fica' e é 'canonizado', e mais como uma exaltação da vida contra tudo o que mata antes da hora de morrer." Além da francesa Simone de Beauvoir, Lygia conheceu outros gigantes da literatura universal: o americano William Faulkner e o argentino Jorge Luís Borges. Faulkner, Nobel de Literatura, esteve em São Paulo entre os dias 8 e 14 de agosto de 1954 para participar do I Congresso Internacional de Escritores. Durante sua estadia, experimentou camarão à baiana, espantou-se com uma sucuri de oito metros e deitou-se no chão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) para aliviar as dores nas costas. "Chegou meio fora de órbita", contou Lygia ao jornal Folha de S.Paulo, de 14 de setembro de 1997. "Estava sempre com o cabelo molhado. Creio que para ficar desperto, devido ao excesso de álcool." Hospedado no Esplanada, Faulkner conheceu Lygia no Butantan. Os dois foram apresentados pelo crítico Mário da Silva Brito. "Se os seus contos forem tão belos quanto seus olhos, a senhora, certamente, é uma grande escritora", elogiou. Nessa hora, Brito cochichou para Lígia: "Não se esqueça de colocar esse comentário na orelha do seu próximo livro. É o único que Faulkner conseguiu fazer a respeito da literatura brasileira". Ao se despedir, já na fila de embarque do Congonhas, o visitante perguntou: "O que diabos eu vim fazer mesmo em Chicago?" Trinta anos depois, reencontrou um velho amigo, Jorge Luís Borges, que conheceu em 1960. Em um jantar, o escritor argentino falou da importância do sonho. "Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar", advertiu. "No exato momento em que mencionou seu nome, alguém deixou cair uma taça e não consegui ouvir", recordou Lygia, em 2009. Anos depois, a escritora leu o conto Uma Estação de Amor e decifrou o mistério: o tal amigo suicida era o uruguaio Horacio Quiroga. "Gravemente doente e sem esperança, suicidou-se com cianureto", conta no livro Durante Aquele Estranho Chá, de 2002. Na entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, Lygia lembra da ocasião em que, na década de 1970, recebeu o telefonema de um rapaz dizendo que, por causa de seus livros, não queria mais tirar a própria vida. Lá pelas tantas, emocionada, a escritora perguntou: "O que eu posso fazer por você?". O leitor respondeu: "A senhora já fez". E desligou. "Fico relendo meus textos, procurando, procurando, qual a palavra, meu Deus, qual a palavra que foi capaz daquilo? Nunca vou saber", divagou, em 1998. "No fundo, a literatura é uma forma de amor", concluiu. "Era uma mulher à frente de seu tempo. Tinha forte preocupação com o papel social da mulher. Debater sua contribuição à literatura é tarefa dos acadêmicos. Queremos enfatizar sua contribuição humanista. Às vezes, nos preocupamos tanto em estudar uma obra que esquecemos da pessoa incrível que criou aquela obra", afirma a jornalista Rachel Valença, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) que, desde 2002, guarda o acervo da escritora, composto de cartas, originais, fotografias e até da Olivetti que ganhou de Paulo Emílio na Itália. No dia 11 de maio, o IMS organiza uma mesa de debates, com participação da acadêmica Ana Maria Machado, a agente literária Lúcia Riff e a pesquisadora Elizama Almeida, na ABL Avessa a autobiografias, Lygia lançou três livros de memórias: Invenção e Memória, de 2000; Durante Aquele Estranho Chá, de 2002, e Conspiração de Nuvens, de 2007. No segundo volume, esmiúça, entre outras histórias, a visita que fez a Monteiro Lobato no presídio Tiradentes em 1941 — o criador do Sítio do Picapau Amarelo fora preso por criticar o Estado Novo — e o encontro com o poeta modernista Mário de Andrade na confeitaria Vienense, na rua Barão de Itapetininga, em 1944. "Se eu tivesse pernas tão lindas, ia lá pensar em literatura?", foi obrigada a ouvir em uma das vezes em que esbarrou com Monteiro Lobato. No estranho chá com o autor de Macunaíma, a jovem estudante de Direito com aspiração literária saiu da confeitaria com uma carta. O que Mário de Andrade teria achado de seus escritos? Nunca saberemos... "No dia seguinte, na maior emoção, levei a carta para exibi-la a dois colegas da Faculdade. Mas, acabei por perdê-la numa das salas de aula e nunca mais", lamentou na crônica que dá título ao livro. Dos 16 livros publicados pela Companhia das Letras, onze são de contos. Apenas um, Passaporte para a China, é de crônicas — a pedido de Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, escreveu impressões sobre uma viagem de 20 dias a Pequim e Shanghai em 1960. "Tentei fazer poesia quando estava na Faculdade de Direito. Mas logo percebi que era apenas um apelo de juventude", reconheceu ao Cadernos de Literatura Brasileira. Só Jabuti, o mais importante prêmio literário brasileiro, foram quatro: O Jardim Selvagem, de 1966; As Meninas, de 1973; A Noite Escura e Mais Eu, de 1996, e Invenção e Memória, de 2001. Em 2005, levou para casa o Camões, o "Nobel" da Língua Portuguesa. Em 2016, teve seu nome indicado ao Nobel de Literatura. Perdeu a honraria para o cantor e compositor americano Bob Dylan. "Era minha vizinha no Jardins. Quando caminhávamos pelo bairro, abraçava as árvores, brincava com os animais... Também íamos ao cinema. Comentava o filme em voz alta. Às vezes, isso gerava um 'psiu' dos outros espectadores", relata o escritor e acadêmico José Renato Nalini. "Também gostava de conversar ao telefone. Lia seus contos e pedia minha opinião. O que me desvanecia. Tínhamos em casa uma poodle que era avessa a humanos. Mas, quando Lygia chegava, pulava no seu colo. Ficava extasiada. Sinto imensa falta de Lygia, a amiga, mais do que a imortal."
2023-04-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg626dr67p9o
brasil
Por que tantos brasileiros estão se mudando para o Paraguai
Quando tinha 17 anos, Felipe Monteiro soube na sua terra natal, a cidade de Mazagão, no Amapá, que um conterrâneo havia estudado Medicina no Paraguai e, hoje, exerce a profissão no Brasil. Agora, aos 24 anos, Monteiro cursa o quinto ano da faculdade de Medicina no país vizinho. Ele é um dos milhares de brasileiros que hoje se preparam para essa carreira no Paraguai. Os brasileiros são quase a totalidade entre os universitários de Medicina, de acordo com estimativas oficiais. “Na minha sala, somos 80 alunos e só 2 são paraguaios. Tem aluno de Santa Catarina, do Rio de Janeiro, de Rondônia, do Acre, do Amazonas”, conta Monteiro à reportagem. A carreira universitária é um dos vários exemplos da forte presença brasileira no Paraguai, onde os principais motores da economia - do agronegócio ao setor têxtil e de autopeças, entre outros - têm participação decisiva de investidores brasileiros, de acordo com autoridades do governo, empresários e analistas ouvidos pela BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas E o que tem motivado essas mudanças? Estudantes relatam custos de estudo mais interessantes no Paraguai e empresários e investidores são atraídos pelo sistema de impostos, facilidades para exportação ao Brasil, oferta de energia elétrica e de mão de obra (leia mais relatos abaixo). A ampla presença brasileira hoje no Paraguai já não está restrita aos chamados “brasiguaios”, termo usado para se referir a brasileiros que se estabeleceram no país, principalmente, no setor da soja, explica o economista Fernando Masi, diretor do Centro de Análise e Difusão da Economia Paraguaia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2021, segundo os dados mais recentes do Itamaraty, o Paraguai é o primeiro destino dos imigrantes brasileiros na América Latina, com cerca de 246 mil pessoas. O número representa quase 30 mil brasileiros a mais vivendo no país vizinho do que em 2016. Mas estimativas locais apontam que o número pode ser na realidade muito maior que o oficial, já que nem todos se registram nos consulados, que são a base para o levantamento do Itamaraty. A presença brasileira no Paraguai representa quase a metade do total de 596 mil brasileiros que moram em outros países da América do Sul. Com uma população de 6,7 milhões de habitantes, o Paraguai tem, por exemplo, praticamente o triplo de cidadãos do Brasil do que a Argentina, que tem quase 46 milhões de habitantes e, oficialmente, 90 mil brasileiros. No mundo, Paraguai é o terceiro país, depois dos Estados Unidos (1,9 milhão) e de Portugal (275 mil), com a maior comunidade brasileira. A maior concentração fica em Ciudad del Este, onde vivem 98 mil brasileiros, mais do que os 80 mil de Buenos Aires, segundo dados oficiais. O universitário Felipe Monteiro vive em Ciudad del Este, onde frequenta uma igreja evangélica fundada por brasileiros. Ele diz que se sente praticamente em casa. “Moro a dois quilômetros da Ponte da Amizade (que liga Ciudad del Este a Foz de Iguaçu, no Brasil), e, aqui, os paraguaios falam português”, afirma Monteiro, que pretende ser o primeiro médico da família. O preço da universidade e o custo de vida no Paraguai foram os motivos que o levaram a viver no país. “Tenho uma prima que estuda Medicina em uma universidade particular em Belém e paga mensalidade de R$ 8 mil reais. Aqui, comecei pagando R$ 1,2 mil e, agora, são R$ 1,9 mil, porque há um aumento anual à medida que passamos de ano. Mas é acessível”, diz. Seu colega no quinto ano de faculdade, o cearense Pedro Nogueira, de 38 anos, era formado e trabalhava como administrador de empresas quando vendeu o que tinha para estudar Medicina em outro país vizinho, a Argentina. Mas ele conta que a escalada inflacionária argentina o levou a pedir transferência para a na Universidade Integración de las Américas, no Paraguai. “Na Argentina, era inadmissível não falar espanhol na sala e nas provas orais. No Paraguai, é diferente. Todo mundo fala português. Hoje, agradeço a metodologia argentina. Mas ficou caro e pedi transferência para cá. Mesmo assim, está valendo muito a pena”, diz Nogueira. Ele calcula que, entre a mensalidade e os gastos cotidianos, incluindo aluguel, suas despesas giram em torno de R$ 3,5 mil. “Já vi gente no Brasil não disfarçar o preconceito quando contei que estudo Medicina no Paraguai. Mas meu plano é ser um médico como os outros que estudaram no Brasil ou em qualquer lugar. Tenho parentes médicos que estudaram na Bolívia, revalidaram o diploma e, hoje, exercem a profissão no Brasil”, afirma. O Conselho Nacional de Educação Superior (Cones), responsável pela educação universitária no Paraguai, estima que 30 mil estudantes cursem Medicina nas universidades públicas e privadas paraguaias, “dos quais 95% a 97% seriam de origem brasileira”. A maioria dos universitários brasileiros está concentrada, principalmente, nas universidades privadas, segundo a assessoria de imprensa do Cones. De acordo com o órgão paraguaio, houve um boom de novas instituições privadas de ensino superior no país entre 2006 e 2010, com a abertura de 28 universidades e 23 institutos superiores, a maioria na área da saúde. No âmbito empresarial e de investimentos, o Paraguai é visto como um “eldorado”, como define o diretor da Câmara de Comércio Paraguai Brasil, Junio Dantas, à BBC News Brasil. “É um país que oferece muitas oportunidades, principalmente para os Estados vizinhos, como o Paraná, Mato Grosso do Sul e também Santa Catarina. O Paraguai é um país que dá uma vantagem competitiva muito grande na parte fiscal.” Dantas, que tem uma empresa de tecnologia no país, diz que há brasileiros em todas as áreas, principalmente no agronegócio. “A mão de obra aqui é abundante. É muito bom trabalhar com os paraguaios. A energia elétrica é muito barata, porque é abundante. A proximidade com o Brasil ajuda bastante e o sistema de impostos torna o país atraente e competitivo para investimentos”, diz. O Paraguai compartilha a hidrelétrica de Itaipu com o Brasil e a de Yacyretá com a Argentina. O país possui leis de incentivo fiscal e de geração das chamadas maquilas, que fazem parte da cadeia produtiva entre os dois países, como explica à BBC News Brasil o vice-ministro de Indústria do Ministério da Indústria e Comércio, Francisco Ruiz Díaz. As maquilas paraguaias foram criadas para atrair investimentos e gerar empregos, diz Ruiz Díaz. Nesse regime, as empresas importam insumos que são usados em uma fábrica no Paraguai e os exportam transformados no produto final, sem pagar impostos e pagando apenas 1% como seguro da operação realizada, explica o vice-ministro. A inspiração para este modelo veio do sistema mexicano em sua aliança comercial com os Estados Unidos. “Setenta por cento das exportações do Paraguai para o Brasil são resultado da maquila. Um exemplo é o setor têxtil. As empresas brasileiras trazem a linha do Brasil, fabricam o tecido aqui e o enviam para as confecções no Brasil”, afirma. Os brasileiros, diz o vice-ministro, estão presentes nas áreas de bioetanol, de grãos e de carnes, por exemplo. “No caso da carne bovina, temos aqui frigoríficos brasileiros que exportam o produto para o Brasil e outros países”, afirma. Dantas, da Câmara de Comércio Paraguai Brasil, diz que a entidade estima que cerca de 400 mil brasileiros estejam presentes no Paraguai, principalmente na região da fronteira – número bem maior do que o contabilizado pelo Itamaraty. Mas por que esta forte presença brasileira no país vizinho? Ruiz Díaz diz que isso é resultado de um processo que se acelerou a partir de 2003-2004, com o boom das commodities. Ele lembra que, até os anos 1940, o Paraguai era um país dependente das exportações para a Argentina. Mas, nas décadas seguintes, sucessivos governos passaram a buscar maior aproximação com o Brasil, com a estratégia de aumentar a população na região de fronteira, com o estímulo da distribuição de terras. No entanto, com as dificuldades geradas pela falta de infraestrutura, muitos desistiram desses terrenos ou os venderam por preços baixos. Com o passar dos anos, esta região passou a prosperar, e leis criadas nos anos 1990, diz o vice-ministro, como as de incentivos fiscais e de maquila, passaram a ser aproveitadas nos anos 2000 – principalmente pelos investidores brasileiros, quando começaram a precisar de máquinas para desenvolver seus empreendimentos no território paraguaio. Ruiz Díaz acrescenta que as sucessivas crises econômicas argentinas acabaram complicando a aproximação e o intercâmbio com esse outro país vizinho. “Quando a gente olha para a história do Brasil e da Argentina, o Paraguai é, entre todos os países do Mercosul, o que mais demorou em se desenvolver”, diz. Para ele, seu país passou a ser atraente não só pela simplificação fiscal, mas pelas oportunidades que existem no país. “Quando olhamos os números...Em 2003, na área de maquila, as exportações eram de US$ 5 milhões (anuais) e, agora, superam US$ 1 bilhão. Vinte vezes mais”, disse. Para Ruiz Díaz, no caso das maquilas, ou maquiladoras, a guinada ocorreu a partir de 2013, com a instalação de empresas de autopeças no Paraguai que exportam o produto às montadoras no Brasil. “O Paraguai tem energia abundante e a mais barata da região, mão de obra farta, um sistema de impostos amigável, vantajoso. Isso permitiu que o Brasil se abastecesse de matéria-prima em condições muito competitivas.” O país conta hoje com a presença de empresas de vários países além do Brasil, como Japão, Alemanha e Estados Unidos. Além da maquila e do sistema de impostos, Ruiz Díaz aponta que as reformas econômicas, que incluíram metas inflacionárias e fiscais, foram realizadas nos anos 2000 e mantidas ao longo deste tempo, contribuindo para gerar confiança entre investidores estrangeiros. Fernando Masi, do Cadep, diz, porém, que o próximo governo, que será eleito no dia 30 de abril, deverá buscar alternativas para ampliar a arrecadação de impostos para os investimentos necessários em infraestrutura e na área social. “A arrecadação tributária é muito baixa no Paraguai. Mas seja quem for, o eleito manterá a mesma política de equilibro macroeconômico que vem sendo aplicada no país”, afirma. Segundo Masi, a expectativa é que a economia paraguaia cresça entre 4,5% e 5% em 2023, bem acima da previsão de 1,4% para o Brasil, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Um dos principais desafios do Paraguai, disse o analista, é combater a pobreza, que atinge 27% da população, e a desigualdade social. Masi acrescenta que a presença brasileira é hoje “muito mais visível” e diversificada do que até recentemente. “Antes, eram os chamados brasiguaios, que se dedicavam ao cultivo da soja. Hoje, são investidores em frigoríficos, em maquila, que está concentrada principalmente em autopeças, têxtil e plástico e gera muitos empregos no Paraguai. E, agora, estão também os estudantes, com uma forte presença em diferentes áreas, nos últimos dez anos”, diz o analista. Dantas, da Câmara de Comércio Paraguai Brasil, que já morou em países da África e em Portugal e se estabeleceu no país vizinho há 25 anos, observa que a presença brasileira está sendo decisiva para a industrialização do Paraguai. “São mais de 200 maquiladoras operando no país. Entre 70% e 80% são de origem brasileira, o que demonstra a força do empresariado brasileiro no Paraguai.”
2023-04-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5181je4plvo
brasil
'Justiça culpou quem morreu': a reação de familiar de vítima do voo AF447 após absolvição de Air France e Airbus
"A Justiça francesa culpou quem morreu e não as empresas envolvidas na tragédia do voo Rio Paris". É dessa forma que o diretor e co-fundador da Associação dos Familiares das Vítimas do Voo 447 (AFVV447), Marteen Van Sluys, avaliou, em entrevista à BBC News Brasil, a decisão do Tribunal Penal de Paris que considerou que a Airbus e a Air France não são culpadas pela catástrofe que matou 228 pessoas em 2009, a maior da história da aviação civil francesa. Van Sluys, que perdeu sua irmã, Adriana, na tragédia, diz: "Começaram a julgar o erro a partir da atuação dos pilotos. Mas o que provocou toda a pane da aeronave foi minimizado no processo. A decisão reconhece que houve falhas técnicas, porém sugere que a culpa teria sido dos pilotos que poderiam ter agido de outra forma. Mas eles nem tinham treinamento para lidar com a situação que ocorreu". A aguardada decisão da Justiça francesa, quase 14 anos após o acidente, é decorrente do julgamento penal realizado entre outubro e dezembro de 2022, em que a Airbus e a Air France respondiam por homicídio culposo. Os familiares das vítimas esperavam que esse julgamento, que teve inúmeras audiências com especialistas técnicos, revelasse que a catástrofe poderia ter sido evitada se as duas companhias tivessem sido mais rigorosas em relação à segurança. A Justiça francesa, no entanto, considerou que, embora as duas empresas tenham cometido "falhas", não foi possível demonstrar "nenhuma relação de causalidade certa" com o acidente. Fim do Matérias recomendadas "Ser responsável, mas não culpado é ridículo, é um escárnio", ressalta Van Sluys. Na avaliação dos familiares das vítimas, a decisão aponta a responsabilidade das empresas, mas não a culpa pela sucessão de eventos que provocou a queda do avião. Isso porque, segundo o tribunal, a Airbus “cometeu quatro imprudências ou negligências”, sobretudo a não substituição dos modelos de sensores de velocidade (as sondas Pitot) fabricados pela francesa Thalès. O equipamento já havia congelado outras vezes em alta altitude, exatamente o que ocorreu com o voo AF447 e foi considerado o ponto de partida da catástrofe. A Justiça também apontou que a Airbus falhou em "reter informações". A Air France cometeu, segundo a Justiça, duas "imprudências" relativas às modalidades de divulgação de uma nota informativa destinada aos pilotos sobre o congelamento das sondas de velocidade. Mas na esfera penal, segundo o tribunal, uma relação de causalidade provável não é suficiente para tipificar um delito. "Por se tratar de falhas, não foi possível demonstrar uma relação de causalidade com o acidente", avaliou a Justiça. "Se partirmos desse princípio, nunca vai ter um culpado em acidentes aéreos. Vai ter sempre a possibilidade de corrigir algo que poderia evitar o acidente", afirma. "Eu tinha esperanças de que o veredito apontaria a culpa das empresas. Teria me sentido menos ultrajado", afirma Van Sluys. Ele afirma ter ficado "muito decepcionado" com a decisão, que considera "revoltante". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diretor da AFVV447 afirma que o "baque só não foi maior" porque durante o julgamento em Paris, que levou nove semanas, os parentes das vítimas tiveram a percepção de que as duas empresas poderiam ser inocentadas. O Ministério Público francês não solicitou a condenação das companhias. Mesmo assim, havia, por parte dos familiares, a expectativa de uma decisão favorável às suas demandas. "Sabíamos que seria muito difícil a Justiça ficar do nosso lado. Somos a parte mais fraca da história." Para Van Sluys, houve um "interesse explícito" da Justiça francesa em inocentar duas grandes corporações do país, com um “forte lobby". "Uma sentença determinando a culpa seria algo muito pior para a imagem dessas empresas", completa. A Airbus é um consórcio europeu com sede na França. "Nós esperávamos um julgamento imparcial, mas não foi o caso. Estamos enojados”, declarou Danièle Lamy, presidente da associação francesa Ajuda Mútua e Solidariedade, que representa os parentes de vítimas francesas. "Restam desses 14 anos de espera apenas desespero, consternação e raiva" disse. Van Sluys afirma que se for possível, em termos jurídicos, ele e outros familiares, também de outros países, irão recorrer da decisão. "A ideia é levar isso até a última instância possível e mostrar que o caso não acabou. Estamos dispostos a esgotar todas as possibilidades. É uma questão de honra", destaca. "Vou até o fim. Não é por insistência. Perdemos vidas. Minha irmã era jornalista, atuava na área de direitos humanos, e faria o mesmo por mim", destaca. O acidente com o voo AF447 levou a mudanças na aviação. Pouco após a catástrofe, o modelo de sonda de velocidade da Thalès que equipava o avião da Air France passou a ser proibido pela Agência Europeia da Aviação Civil, que passou a exigir a utilização de pelo menos duas sondas da marca americana Goodrich entre as três que os aviões possuem. A formação dos pilotos também foi aperfeiçoada após a tragédia do voo Rio-Paris, além de melhorias nos sistemas dos aviões da Airbus.
2023-04-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgqgjed6mjo
brasil
A acusação contra Gilmar Mendes que fez PGR pedir prisão de Moro
O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu nesta segunda-feira (17) uma denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o senador e ex-juiz Sergio Moro por um vídeo em que este aparece falando da possibilidade de se "comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes (ministro do STF)". A vice-procuradora-geral da República, Lindôra Maria Araujo, pediu que Moro seja condenado pelo crime de calúnia e depois preso — em caso de pena de prisão maior do que quatro anos, ela indica também a perda do mandato de senador, segundo os termos do Código Penal. Lindôra pediu ainda "a fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração". A denúncia da PGR foi provocada por uma representação apresentada por Gilmar Mendes. Não se sabe de quando é o vídeo de Moro e nem as circunstâncias de sua filmagem, mas ele veio a público no último dia 14, quando foi noticiado pela coluna Radar, da revista Veja. Fim do Matérias recomendadas Nele, o senador aparece em uma área externa e estendendo a mão para pegar um copo entregue por outra pessoa. Neste momento, ele diz, sorrindo: "Não, isso é fiança, instituto... pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes". A BBC News Brasil pediu um posicionamento do senador por meio de seu gabinete, mas não recebeu retorno. A denúncia da PGR diz que Moro "emitiu a declaração em público, na presença de várias pessoas, com o conhecimento de que estava sendo gravado por terceiro, o que facilitou a divulgação da afirmação caluniosa [...]". "Ao atribuir falsamente a prática do crime de corrupção passiva ao Ministro do Supremo Tribunal Federal GILMAR FERREIRA MENDES, o denunciando SERGIO FERNANDO MORO agiu com a nítida intenção de macular a imagem e a honra objetiva do ofendido, tentando descredibilizar a sua atuação como magistrado da mais alta Corte do País", diz outro trecho da denúncia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pena pelo crime de calúnia prevista no Código Penal é de detenção de seis meses a dois anos, além de multa. Mas, na denúncia, é destacado que o alvo da fala de Moro, Gilmar Mendes, é um "agente público maior de 60 anos de idade". O advogado João Paulo Martinelli, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP), explica que esse fator pode aumentar o tempo de prisão, em caso de condenação. "Quando o crime contra a honra é praticado contra uma vítima maior de 60 anos, a pena é aumentada em um terço. Então, isso acaba sendo prejudicial para o réu se ele for condenado", explica Martinelli. Mas muito, antes da condenação, o primeiro passo é a denúncia da PGR ser acatada ou rejeitada pelo relator — que, no caso, será a ministra Cármen Lúcia. Ela é da primeira turma do STF, enquanto Mendes é da segunda. "Se o relator não rejeitar, isso vai dar a oportunidade para apresentação da defesa. Depois, a turma que decide por maioria se vai aceitar definitivamente a denúncia ou não para dar início ao processo." "(Em caso do início do processo) Da mesma forma que correria na primeira instância, vai ter audiência, produção de provas... E depois os ministros da primeira turma julgam se é caso de condenação ou absolvição", diz o advogado, acrescentando ser difícil prever o destino da denúncia contra Moro. Independente dos próximos capítulos na Justiça, o analista político Creomar de Souza, fundador da Consultoria de Análise de Risco Político Dharma, diz que o monitoramento das redes sociais nessas primeiras horas após a denúncia indica que o episódio pode ser benéfico para Moro perante à base dele. "Para aquele eleitor de base que elegeu o Moro para o Senado no Paraná, para aquele eleitor de direita que simpatiza com o Moro, com a Lava-Jato, a decisão reforça essa ideia de que o Moro é um político antissistema", diz Souza. "Então, não gera algo negativo sobre sobre a imagem dele, muito pelo contrário." O analista político diz que muitos comentários favoráveis ao senador nas redes sociais apontam que Moro teria a liberdade de se expressar publicamente como fez ao falar de Mendes e que ele apenas disse o que muitos cidadãos comuns diriam. "Há uma leitura de que o caso dele só deu confusão porque ele tem um histórico de enfrentamento a essas pessoas (poderosas)", diz Souza sobre o contéudo observado nas redes sociais. "É a forma como ele e seus principais militantes sempre tentaram colocá-lo dentro do debate."
2023-04-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c98n8ppywg5o
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'Profundamente problemático': as reações de EUA e Europa à visita de chanceler russo e declarações de Lula
O governo brasileiro recebeu nesta segunda-feira (17/04) o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, considerado uma das figuras mais controversas da política internacional atual. Esta semana, Lavrov está fazendo um giro por Brasil, Venezuela, Nicarágua e Cuba. Os três últimos países são notoriamente críticos aos Estados Unidos — a grande potência rival da Rússia. Lavrov veio ao Brasil em um momento em que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fala em tentar dar início a um diálogo de paz entre Ucrânia e Rússia. Em viagem à China, na semana passada, Lula deu declarações em tom crítico aos EUA. "É preciso que os EUA parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz pra que a gente possa convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois" disse Lula em referência aos presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodymir Zelensky. A fala do presidente se refere ao envio de armas por EUA e países europeus à Ucrânia. Esses países, porém, argumentam que estão apoiando a defesa ucraniana contra a agressão da Rússia, que invadiu o país no início de 2022. Fim do Matérias recomendadas O governo americano reagiu duramente as falas de Lula nesta segunda-feira. O porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, disse que Lula “está reproduzindo propaganda russa e chinesa”. "É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra", afirmou em conversa com jornalistas. Já Peter Stano, porta-voz principal para Assuntos Externos da União Europeia, afirmou que a Rússia é a "única responsável" pela escada de violência no Leste Europeu. "O fato número um é que a Rússia – e somente a Rússia – é responsável. Ela gerou provocações e agressões ilegítimas contra a Ucrânia. Não há questionamentos sobre quem é o agressor e quem é a vítima", afirmou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em sua passagem por Brasília, Lavrov teve uma reunião com o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, no Palácio Itamaraty, e depois um encontro reservado com Lula no Palácio do Alvorada. Em pronunciamento ao lado do chanceler brasileiro, afirmou que Brasil e Rússia têm "abordagens similares" em relação a questões globais. "Falamos sobre várias questões relevantes da agenda internacional e regional, ressaltando que as abordagens de Brasil e Rússia de questões acontecendo hoje no mundo são similares", disse Lavrov. "Os dois países estão unidos pelo desejo de contribuir para uma ordem mundial mais democrática e mais policêntrica, baseada no princípio fundamental da soberania e da igualdade dos Estados", acrescentou. Apesar da fala em prol da democracia, críticos de Putin acusam seu governo de autoritarismo e de perseguir opositores, como Vladimir Kara-Murza, que acaba de ser condenado a 25 anos de prisão, acusa de traição e divulgação de informações falsas relacionadas à guerra na Ucrânia. Mauro Vieira, por sua vez, usou o pronunciamento ao lado de Lavrov para reafirmar o compromisso do Brasil com a proposta de criar um grupo da paz com países não alinhados a qualquer lado do conflito, buscando um acordo entre Ucrânia e Rússia. "Reiterei nossa posição em favor de um cessar-fogo imediato, de respeito ao direito humanitário, de uma solução negociada para uma paz duradoura", disse Vieira. Por quase 20 anos, Sergey Lavrov tem sido o rosto internacional da Rússia. Na arena global, ele é a pessoa que mais aparece defendendo a política externa de Vladimir Putin — inclusive a invasão da Ucrânia por tropas russas. Lavrov é conhecido por seu estilo incisivo e pouco diplomático na defesa dos interesses russos. Nascido em 21 de março de 1950 em Moscou, Lavrov tem 72 anos e é o ministro das Relações Exteriores que está há mais tempo no cargo desde a queda da União Soviética. Ele assumiu o posto em 2004. Formado pelo Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou, ele trabalhou como diplomata soviético no Sri Lanka durante parte da Guerra Fria. Depois de servir como primeiro secretário da embaixada soviética na ONU em Nova York de 1981 a 1988, ele permaneceu no Ministério das Relações Exteriores quando a União Soviética se desfez em 1991. Ele foi nomeado embaixador da Rússia na ONU três anos depois. Além do russo, ele fala três idiomas: cingalês, inglês e francês. Inicialmente, Lavrov era visto como um tecnocrata de boa oratória. No começo de seu mandato como ministro, a Rússia vivia um momento de esfriamento das tensões com o Ocidente. Mas na última década, o perfil internacional da Rússia mudou — com conflitos cada vez mais constantes. Lavrov passou então a ser visto como um defensor contundente da política de Putin. No ano passado, dias após o começo da guerra, ele disse que os Estados Unidos formaram uma coalizão de países europeus para resolver "a questão russa" da mesma forma que Adolf Hitler buscava uma "solução final" para erradicar judeus da Europa. Lavrov disse que os EUA usam a "mesma tática de Napoleão e Hitler" para tentar subjugar a Europa e destruir a Rússia. No mês passado, ele despertou risadas em um plateia de diplomatas do G20 em um encontro na Índia, quando afirmou que a Rússia tenta "impedir uma guerra que foi lançada contra nós pela Ucrânia". Diante das risadas, ele se manteve sério. Por vezes, os comentários de Lavrov têm repercussões para Putin. No ano passado, ele disse em uma entrevista na Itália que "Hitler também tinha sangue judeu", ao ser questionado sobre o que ele queria dizer com "desnazificar a Ucrânia", quando o próprio presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, é judeu. "Posso estar errado, mas Hitler também tinha sangue judeu. [Que Zelensky é judeu] significa absolutamente nada. Judeus sábios dizem que os antissemitas mais ardentes são geralmente judeus", disse ele, na ocasião. Dias depois, Vladimir Putin pediu desculpas a Israel pelos comentários de Lavrov.
2023-04-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxr0r51rpqdo
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Lula entrega arcabouço fiscal ao Congresso: entenda por que votação é crucial para futuro do governo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entregaram nesta terça-feira (18/4) ao Congresso o texto final de sua nova proposta para o controle das despesas públicas, o chamado arcabouço fiscal. Presente no evento de entrega, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), afirmou que o relator do texto deve ser anunciado na quarta-feira (19) e disse esperar que a votação no plenário da casa ocorra até 10 de maio. Depois de tramitar na Câmara, o texto segue para o Senado, em caso de aprovação. Segundo a proposta do governo federal, no lugar do teto de gastos — que hoje limita o crescimento das despesas à inflação do ano anterior —, os gastos públicos passariam a crescer dentro de um intervalo de 0,6% a 2,5% acima da inflação, a depender do ritmo de expansão das receitas. A aprovação da proposta é vista como crucial para o governo por três aspectos: Fim do Matérias recomendadas Parlamentares e analistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil consideram que o governo tem boas chances de aprovar a proposta com poucas mudanças. Os entrevistados avaliam que o Ministério da Fazenda e a área política do governo fizeram um bom trabalho ao procurar previamente as lideranças da Câmara e do Senado para apresentar seu plano e colher sugestões. Além disso, o fato de a não aprovação do arcabouço significar a continuidade do teto de gastos também favorece a proposta, já que a regra atual restringe mais as despesas. O novo arcabouço, por outro lado, permite que as emendas parlamentares (recursos destinados por senadores e deputados a suas bases eleitorais) cresçam acima da média do orçamento, o que agrada aos congressistas. A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, disse na semana passada que o bom funcionamento da máquina pública fica ameaçado com a continuidade do teto. "Estamos falando de despesas como água e luz (que seriam cortadas). Nós temos que cortar de algum lugar para cobrir minimamente as despesas do poder Executivo", destacou, após um evento na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Líder do maior bloco partidário da Câmara, Felipe Carreras (PSB-PE) disse à BBC News Brasil que é natural que o Congresso aprove a proposta inicial com algumas alterações, mas não prevê mudanças profundas. Segundo ele, "o governo não terá dificuldades (em aprovar o arcabouço)". Recém-criado, o bloco liderado por Carreras reúne 173 deputados do PP (partido do presidente da Câmara, Arthur Lira), União Brasil, PDT, PSB, Solidariedade, Avante, Patriota e da federação Cidadania-PSDB. Parlamentares da esquerda, inclusive do PT, devem tentar afrouxar a regra no Congresso, para permitir um aumento maior das despesas. O deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), por exemplo, argumenta que o governo precisa gastar mais para impulsionar a economia, já que o cenário atual é de baixo crescimento. "Estamos muito preocupados com a desaceleração da economia. (O ex-presidente Jair) Bolsonaro deixou uma armadilha. Entregou uma economia ladeira abaixo", disse, em entrevista recente ao jornal Folha de S.Paulo, criticando o governo anterior. Já os congressistas com visão econômica liberal querem consequências mais duras, caso o governo não cumpra regras do novo arcabouço fiscal, como a meta de resultado primário (diferença entre receitas e despesas do governo). A regra básica proposta pelo governo é que o crescimento da despesa fique limitado a 70% da expansão da receita (desde que não ultrapasse o limite de alta de 2,5% acima da inflação). Ou seja, se a arrecadação do governo subir 2%, por exemplo, a despesa poderia crescer até 1,4%. No entanto, se a meta de resultado primário para o ano não for cumprida, o arcabouço prevê que o crescimento máximo do gasto no ano seguinte seria reduzido para 50% da expansão da receita. Críticos desse mecanismo, no entanto, dizem que é preciso ter restrições mais duras caso a meta primária não seja cumprida, para estimular um esforço maior do governo no alcance desse objetivo. Nos últimos anos, o governo federal tem registrado déficits primários, ou seja, tem gastado mais do que arrecada, o que resulta em aumento da dívida pública. Caso o arcabouço seja aprovado, assim como algumas medidas anunciadas para elevar arrecadação, a Fazenda prevê zerar o rombo em 2024. "Nossa expectativa é muito positiva com relação ao envio do arcabouço, mas é preciso aguardar como vem o texto, em particular quais são as consequências do não cumprimento (das metas)", disse à reportagem o senador Alessandro Vieira (PSDB-SE). "Acredito numa votação rápida, numa aprovação. Seguramente com ajustes, mas uma aprovação", reforçou. Apesar das pressões de diferentes lados, o analista político Antônio de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), não acredita que o Congresso realizará mudanças significativas na proposta da Fazenda. Enquanto alguns analistas avaliam que as críticas de petistas à política econômica acabam desgastando o governo, Queiroz considera que isso pode ser positivo na aprovação do arcabouço fiscal. "Se a esquerda ficasse marchando junto com a proposta do governo, e a oposição puxando para limitar mais os gastos, o debate no Congresso ficaria desequilibrado. Tem que ter um equilíbrio de forças e isso ajuda a manter a proposta original", analisa. Para Queiroz, a votação do arcabouço vai levar de dois a três meses e será um teste importante do tamanho da base do governo no Congresso. Além do diálogo com lideranças parlamentares, o Palácio do Planalto também tem usado indicações parlamentares para cargos como forma de atrair apoio. União Brasil, MDB e PSD — partidos grandes da centro-direita — receberam três ministérios cada. Postos em estatais também entram nas negociações. Na última semana, por exemplo, saiu a nomeação do engenheiro agrônomo Marcelo Vaz como superintendente da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) no Piauí. Ele é filho do senador Marcelo Castro (MDB-PI). Já a superintendência de Alagoas está sendo mantida sob comando de João José Pereira Filho (PP), o Joãozinho Pereira, primo do presidente da Câmara. Ele foi nomeado no governo Jair Bolsonaro. Hoje a taxa está em 13,75% ao ano, um patamar considerado elevado, com objetivo de esfriar a economia e, assim, conter a inflação. O governo, porém, argumenta que a atividade econômica já está fraca e, por isso, seria preciso cortar a taxa. Nesse contexto, a aprovação de uma nova regra fiscal que reduza o ritmo de crescimento das despesas do governo é vista pelo Banco Central como fundamental para facilitar a queda da Selic. Isso porque, quando o governo limita a expansão das suas despesas, ele contribui para aquecer menos a atividade econômica, desacelerando a alta dos preços. Na visão do cientista político Rafael Cortez, da consultoria Tendências, esse é mais um fator que deve favorecer a aprovação do arcabouço fiscal. "Minha leitura é que tem uma perspectiva boa para a aprovação. Quando o presidente Lula passou a problematizar quase que diariamente o atual patamar de taxa de juros, criou um senso de urgência para o mundo da política ajudar a trazer uma agenda que facilite a redução da taxa de juros", analisa. "Então, saiu um pouco de um debate que era fiscalista per se e 'linkou' com um tema que é bastante sensível, seja para os grandes agentes econômicos, seja para a opinião pública", reforça. Embora economistas liberais, como Armínio Fraga e Henrique Meirelles, considerem a pressão sobre o BC negativa, pesquisa Datafolha mostrou que há grande apoio popular à atuação de Lula nesse tema. Segundo levantamento do final de março, 80% dos entrevistados avaliaram que o presidente age bem ao pressionar pela redução da taxa de juros. Para 16%, ele age mal.
2023-04-18
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Na China, Lula pede que EUA 'parem de incentivar a guerra' na Ucrânia
Ao final de sua viagem à China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse neste sábado (15, no horário local de Pequim) que é preciso que os Estados Unidos parem de “incentivar” a guerra na Ucrânia. “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz pra que a gente possa convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só tá interessando, por enquanto, aos dois”, disse Lula em referência aos presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodymir Zelensky. A declaração de Lula foi feita na saída do hotel onde a delegação brasileira ficou hospedada, em uma área nobre da capital chinesa, Pequim. Foi a única declaração direta à imprensa de Lula ao longo da viagem à China. Lula disse que, na conversa que teve com o presidente chinês, Xi Jinping, voltou a defender a ideia de criar um grupo de países que possa intermediar a crise na Ucrânia. Lula não disse, contudo, se Xi Jinping aprovou ou não a ideia de criar o grupo proposto pelo brasileiro. “Eu tenho uma tese que eu já defendi com o Macron (Emmanuel Macron, presidente da França), com o Olaf Scholz (chanceler alemão) e com o Biden (Joe Biden, presidente dos Estados Unidos) e ontem, discutimos longamente com o Xi Jinping. É preciso que se constitua um grupo de países dispostos a encontrar um jeito de fazer a paz”, afirmou o presidente brasileiro. Fim do Matérias recomendadas A Ucrânia foi invadida por tropas russas em fevereiro de 2022. Desde então, países europeus e os Estados Unidos vêm fornecendo ajuda financeira e militar para as tropas ucranianas, inclusive como envio de armas, aviões e tanques de guerra. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo Lula, é preciso que os países envolvidos no conflito parem de enviar armas para a guerra. “Somente quem não está defendendo a guerra é que pode criar uma comissão de países e discutir o fim dessa guerra. É preciso ter paciência para conversar com o presidente da Rússia. É preciso ter paciência para conversar com o presidente da Ucrânia. Mas é preciso sobretudo convencer os países que estão fornecendo armas e incentivando a guerra a pararem”, disse o presidente brasileiro. Lula não entrou em detalhes sobre como o presidente chinês recebeu a proposta brasileira, mas afirmou que a China estaria disposta a procurar uma solução para o conflito. O país é um importante parceiro comercial e político da Rússia. Em fevereiro, o governo de Xi Jinping lançou um plano destinado à paz na Ucrânia. “É preciso, agora, paciência. É preciso encontrar no mundo países que estejam dispostos. O Brasil está disposto. A China está disposta. Temos que procurar outros aliados e negociar com as pessoas que podem ajudar esse país (a Ucrânia)”, disse Lula. As declarações de Lula sobre o papel dos Estados Unidos em relação ao conflito acontecem numa sequência de demonstrações de que o Brasil pretende aumentar sua proximidade com o regime de Pequim. E isso ocorre justamente em um momento em que as relações entre China e Estados Unidos estão acirradas. Os americanos vêm fazendo acusações contra os chineses que incluem até espionagem. Em 2022, o secretário de Estado americano, Anthony Blinken, afirmou que a China seria o único país na atualidade capaz de “remodelar” a atual ordem mundial. Na sexta-feira (14/04), Lula já havia dito que contava com a China para “equilibrar” a geopolítica e defendeu uma mudança na “governança mundial”. Ainda na sexta-feira, Lula também comentou sua visita a um centro de pesquisas da Huawei, uma gigante de tecnologia chinesa que foi banida dos Estados Unidos por, segundo o governo americano, representar uma ameaça a sua segurança nacional. Ao falar sobre sua ida à empresa, Lula disse que “ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”. Questionado sobre se teme alguma reação americana por conta dos seus últimos movimentos diplomáticos, Lula negou que esteja preocupado. “Não há nenhuma razão para isso. Quando eu vou conversar com os Estados Unidos, eu não fico preocupado com o que a China vai pensar da minha conversa com os Estados Unidos. Eu estou conversando sobre os interesses soberanos do meu país. Quando eu venho conversar com a China, eu também não fico preocupado com o que os Estados Unidos estão pensando”, disse o presidente antes de embarcar de volta para os Emirados Árabes Unidos, que fica na rota de retorno ao Brasil e onde o presidente fará uma visita de algumas horas.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c728lp7ew1po
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Os recados que Lula deu durante sua viagem à China
A viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à China foi marcada por uma série de mensagens relativamente claras sobre aquilo que deverá ser a sua política externa neste seu terceiro mandato. Tanto por meio de discursos quanto pelas agendas, Lula deu mostras de que vai manter a aposta nas parcerias com o chamado sul-global e suas críticas aos fóruns e organismos tradicionalmente ligados ou controlados por potências como os Estados Unidos. Lula chegou à China para encerrar o que alguns diplomatas vinham classificando como uma espécie de "pontapé inicial" da sua agenda internacional. Esse pontapé contou com visitas aos três principais parceiros do Brasil: Argentina, Estados Unidos e, agora, a China. Recebido com entusiasmo pelos chineses, Lula aproveitou sua passagem pelo país asiático para deixar mais evidente o que esperar da sua agenda internacional. Fim do Matérias recomendadas Se havia alguma dúvida sobre qual era o principal recado que Lula queria dar à comunidade internacional durante essa viagem, ela foi dissipada na sexta-feira (15/04): o presidente diz que quer mudar as regras da governança global, tradicionalmente percebida como uma estrutura de poder que beneficia, historicamente, países como os Estados Unidos e a Europa. "Os nossos interesses na relação com a China não são apenas comerciais [...] Temos interesses políticos e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial dando mais representatividade às Nações Unidas", disse durante encontro com o presidente do Comitê Permanente da Assembleia Nacional Popular da China, o equivalente ao parlamento chinês, Zhao Leji. E para deixar seu ponto claro, Lula defendeu a cooperação com países em desenvolvimento, criticou organismos multilaterais tradicionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), criticou uma suposta falta de força da Organização das Nações Unidas (ONU) e teve até "alfinetada" entendida como recado para os Estados Unidos. Confira quais foram os principais recados de Lula durante sua passagem pela China: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O primeiro recado dado por Lula em sua viagem é de que ele vai continuar a apostar no Brics, grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O grupo se consolidou na segunda metade dos anos 2000 e se tornou uma aposta da diplomacia brasileira para que o país tivesse alternativas de articulação política fora da zona de influência dos Estados Unidos e da União Europeia. Atualmente, o Brics representa aproximadamente 46% da população mundial e estimativas apontam que os países são responsáveis por algo em torno de ¼ do produto interno bruto global. A aposta redobrada de Lula no Brics ficou clara no discurso que ele fez durante a cerimônia de posse da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) como nova presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), conhecido também como o Banco dos BRICS. Dilma foi afastada da presidência do Brasil em 2016, após um processo de impeachment. Ela foi a primeira mulher a ocupar a presidência do banco, criado em 2014, quando ela era presidente do Brasil. A chegada de Dilma ao comando do banco, aliás, só foi possível graças a uma articulação diplomática liderada pelo Brasil já sob o comando de Lula. Em seu discurso na sede do banco, Lula fez uma série de menções a importância do Brics e prometeu se empenhar pelo seu fortalecimento. "Precisamos utilizar de maneira criativa o G-20 (que o Brasil presidirá em 2024) e o Brics (que conduziremos em 2025) com o objetivo de reforçar os temas prioritários para o mundo em desenvolvimento na agenda internacional”, disse Lula. E nesse esforço de mudar as regras da governança global, Lula não poupou críticas ao sistema financeiro internacional. Durante a cerimônia de posse de Dilma Rousseff como presidente do Banco do Brics, Lula defendeu a criação de bancos multilarerais de desenvolvimento nos moldes do banco do Brics como uma espécie e alternativa às instituições semelhantes tradicionais como o FMI e Banco Mundial. Ele disse que essas organizações não deveriam ficar "asfixiando" as economias de países em desenvolvimento. "Os bancos têm de ter paciência. Se for preciso, renovar o acordo e colocar a palavra tolerância em cada renovação porque não cabe ao banco ficar asfixiando as economias dos países, como está fazendo agora com a Argentina o Fundo Monetário Internacional", disse Lula em seu discurso na quinta-feira. Lula também defendeu a redução da dependência dos países desenvolvimento em relação ao dólar como moeda preferencial em suas transações comerciais. "Quem decidiu que é era o dólar a moeda depois que desapareceu o ouro como padrão? Por que não foi yene? Por que não foi o Real? Por que não foi peso? Porque as nossas moedas eram fracas [...] porque hoje um país precisa correr atrás do dólar para poder exportar, quando ele poderia exportar sua própria moeda e os bancos centrais certamente poderiam cuidar disso", disse Lula. "É difícil porque tem gente mal-acostumada porque todo mundo depende de uma única moeda. Eu acho que o século 21 pode mexer com a nossa cabeça e pode nos ajudar, quem sabe, a fazer as coisas diferentes", afirmou o presidente na quinta-feira. O terceiro recado enviado por Lula foi menos sutil e parecia ter um endereço certo: os Estados Unidos. Na quinta-feira, Lula foi ao um centro de pesquisas da Huawei em Xangai. A empresa é uma das maiores do mundo e lidera o mercado em áreas como a tecnologia 5G. Na sexta-feira, Lula deixou claro que sua ida à empresa foi um recado. "Ontem (quinta-feira, 13/4), fizemos uma visita à Huawei numa demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China", disse Lula. As declarações acontecem após uma série de pressões feitas pelo governo dos Estados Unidos para que o Brasil não permitisse que a Huawei participasse das licitações para a construção da rede 5G no país. A pressão foi grande durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas ele permitiu que a empresa pudesse participar da disputa. Nos últimos anos, a Huawei e outras companhias chinesas do setor de alta tecnologia, passaram a ser alvo de críticas do governo americano. Autoridades dos EUA passaram a criticar a empresa e levantar suspeitas de que a companhia poderia usar informações de seus usuários em benefício do governo chinês. A China, por sua vez, rebate as acusações e vem dizendo que elas são uma forma de retaliação. Para especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil, os recados enviados por Lula ao longo da viagem à China foram cuidadosamente pensados para gerar repercussão internacional e posicionar o seu governo diante dos demais atores globais. "A questão do dólar é uma tentativa de o Brasil se colocar como um dos principais pautadores de agenda no sul-global, como um país que busca participar ou moldar a construção de um mundo menos centrado nos EUA", disse o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oliver Stuenkel. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador visitante da Universidade de Oxford Dawisson Belém Lopes, as declarações de Lula mostram que ele continuaria a ser o que o professor chamou de "revisionista suave". "Lula é um revinisiosta suave na medida em que ele atua sem desafiar os seus pilares da ordem mundial, mas reivindicando, a todo tempo, uma rediscussão e uma revisão das regras do jogo de novo para contemplar o Brasil mais generosamente com, por exemplo, um assento como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU ou para ter mais cotas em organismos multilaterais", disse Lopes. Os dois afirmam que a atual postura do presidente pode, dada a conjuntura, gerar reações dos Estados Unidos. "É claro que isso pode causar alguma fricção com os Estados Unidos. Mas acho que a aposta de Lula é que o Brasil seja tratado no Ocidente como a índia, que tem sua política independente, que discorda, mas ao mesmo tempo, tem parceria muito profunda com potencias ocidentais como os EUA", disse Stuenkel. Lopes, por sua vez, avalia que o mundo, atualmente, o acirramento das tensões entre Estados Unidos e China diminui a margem de manobra do Brasil para se manter equidistante em relação aos dois países. "Quando o Brasil se aproxima da China, ele necessariamente se distancia dos Estados Unidos e vice-versa. O sistema internacional ficou menos permissivo com países que pendulam entre Estados Unidos e a China. Mas Brasil deve saber navegar por essas águas", disse.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9w79393dlgo
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De US$ 30 a US$ 800: como outros países isentam compras internacionais de impostos
Com a justificativa de proteger a indústria nacional e aumentar a arrecadação, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva pretende adotar medidas que podem deixar as compras internacionais online, de sites como Shein e Shopee, mais caras. Sem citar sites específicos, o governo alega que esse setor tem cometido fraudes, como empresas usarem nomes de pessoas físicas ou dividirem as compras em pacotes menores, a fim de deixar de pagar o imposto de 60% sobre produtos importados. Outras, como Argentina, cobram por todo e qualquer produto, independentemente do valor ou de se é uma transação entre pessoas físicas ou envolvendo empresas. No Brasil, a cobrança de impostos para produtos importados deve ser implementada por meio de medida provisória e não há, ainda, data ou descrição detalhada de como será feita a mudança. Fim do Matérias recomendadas É esperado que as mercadorias fiquem mais caras, já que a tendência é que os sites repassem os custos dos impostos aos consumidores. Assim como o Brasil, outros países, incluindo Estados Unidos, África do Sul e Índia, também veem nos sites chineses ameaças às suas leis e normas locais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O movimento de compras nesses marketplaces, avalia Alberto Serrentino, consultor especialista em varejo e fundador da Varese Retail, ainda é recente - o que impossibilita saber com precisão os passos que outros países tomarão em relação a taxas de importações. "Durante a pandemia, o Brasil observou uma explosão de vendas nesses marketplaces. No ano passado, somaram o equivalente a 50 bilhões de reais [segundo dados da NielsenIQ Ebit] em compras cross-border (transfronteiriças)", detalha ele. "Em paralelo a isso, no Brasil, a carga tributária que incide no varejo é muito pesada. Então isso cria de fato uma uma concorrência desleal e desequilibrada, já que esse limite de US$ 50 que não foi estabelecido para uso de empresas, mas sim para isentar remessas pessoais." Serrentino vê a mudança anunciada pelo governo brasileiro com bons olhos. "Nivelamos a competição. As empresas brasileiras vão ter que ser capazes de ofertar produtos a preços compatíveis com o que os consumidores vão ter de alternativas. As importações via plataformas também são positivas e não devem ser asfixiadas, mas sim reguladas, mantendo seu espaço de crescimento que, ao meu ver, é algo irreversível. Na América Latina, regras semelhantes às brasileiras são aplicadas em países como Paraguai, Colômbia, Chile e Peru - embora especificações na lei possam variar, assim como os valores sujeitos ao pagamento de impostos. No Peru, por exemplo, a "Pequeña Valoración Aduanera", que se refere à isenção de impostos e taxas alfandegárias para importações de baixo valor, tem um limite de isenção equivalente a US$ 200, por remessa e por destinatário, desde que a importação seja realizada por pessoa física e para uso próprio. Empresas não estão aptas ao benefício e devem pagar alíquotas de imposto que variam de 0% a 20% sobre o valor aduaneiro da mercadoria importada. A Argentina é um dos países vizinhos que não tem isenção de taxa, mesmo para importações de pequeno valor. De acordo com informações do governo, produtos importados para consumidores finais são tributados pelo "Imposto para uma Argentina Inclusiva e Solidária" (PAIS), que é de 30% sobre o valor da mercadoria importada e é usado para financiar políticas sociais e econômicas. Já para produtos importados destinados a empresas, a Argentina aplica o regime de "Direitos de Importação Aduaneira". As alíquotas variam e podem chegar até 35%, dependendo do tipo de mercadoria importada. Entre 85 países, o Chile é a nação com regime de isenção de impostos para importações com o menor valor – abaixo de US$ 30, de acordo com Global Express Association. A regra vale tanto para consumidores finais como para empresas. Ao passar o valor de US$ 30, são aplicados impostos de importação e impostos sobre valor agregado (IVA) sobre o valor total, incluindo o custo de transporte e seguro. Já o maior valor de importação com isenção é dos Estados Unidos, que estabelece que, para que não sejam cobradas taxas, as mercadorias não podem exceder o valor de US$ 800 (para consumidores finais) e US$ 2,5 mil (importações comerciais). O valor mínimo de importação isento de tributo, também conhecido como limite de isenção alfandegária, é o valor máximo da mercadoria que pode ser importado sem a necessidade de pagar impostos ou taxas aduaneiras. Esse valor varia de acordo com o país de destino e com o tipo de mercadoria, e é estabelecido pelas autoridades aduaneiras. Em geral, a isenção é concedida para mercadorias de valor baixo, com o objetivo de facilitar o comércio e reduzir a burocracia para e consumidores finais. Em países que estabelecem um valor máximo, como é o caso do Brasil, se o importador compra algo mais caro, é obrigado a pagar os impostos e taxas correspondentes. "O que se discute hoje é a necessidade de cobrar os tributos de quem os deve, em vez de aumentar a carga tributária. É uma medida necessária, afinal, existem pessoas que são devedoras de um tributo que não está sendo recolhido em razão de uma situação fraudulenta", diz Tathiane Piscitelli, coordenadora do Núcleo de Direito Tributário do mestrado profissional da FGV (Fundação Getúlio Vargas). "Temos containers inteiros que chegam com nomes de pessoas físicas remetendo mercadorias que não são, que não têm origem numa remessa de pessoas físicas." "Essas pessoas precisam ser tributadas, inclusive por uma questão de isonomia, uma questão de isonomia com o mercado interno. A receita tributária é fundamental para o funcionamento do Estado. Sem tributação não temos realização de políticas públicas, não temos educação ou saúde. No fim das contas, um desvio tributário é prejudicial a todos", complementa.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl70rx5p181o
brasil
Por que Brasil e outros países democráticos preferem não apoiar a Ucrânia contra a Rússia
Após mais de um ano de guerra na Ucrânia, os esforços para construir um consenso global contra a Rússia parecem ter estagnado, com muitos países optando pela neutralidade. O número de nações que condenam a Rússia diminuiu, segundo algumas fontes. Botswana, que se posicionou originalmente a favor da Ucrânia, avançou para o lado da Rússia, e a África do Sul, que se mostrava neutra, também está se inclinando para Moscou — enquanto a Colômbia, que inicialmente condenou a invasão russa, adota agora uma posição de neutralidade. Ao mesmo tempo, um grande número de países reluta em apoiar a Ucrânia. Na África, por exemplo, apesar do apelo da União Africana a Moscou por um "cessar-fogo imediato", a maioria dos países permanece neutra. Alguns analistas argumentam que isso é resultado de uma tradição de regimes de esquerda que remonta ao período da Guerra Fria. Outros indicam que a atual relutância dos países africanos tem origem no histórico de intervenção ocidental, ora velada, ora ostensiva, em assuntos internos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A relutância em condenar a Rússia, no entanto, vai além da África. Em fevereiro de 2023, a maioria dos países latino-americanos apoiou uma resolução da ONU para pedir a retirada russa incondicional e imediata. E, ainda assim, apesar do apoio do Brasil a várias resoluções da ONU a favor da Ucrânia, o país não condenou a Rússia diretamente. Dentro da ONU, a posição da Bolívia, Cuba, El Salvador e Venezuela permitiu que a Rússia escapasse de sanções ocidentais. Além disso, Brasil, Argentina e Chile rejeitaram pedidos de envio de equipamento militar para a Ucrânia, e o México questionou a decisão da Alemanha de fornecer tanques à Ucrânia. As mesmas divisões são evidentes na Ásia. Enquanto o Japão e a Coreia do Sul denunciaram abertamente a Rússia, a Associação das Nações do Sudeste Asiático não fez isso coletivamente. A China aborda o conflito por meio de um malabarismo entre sua parceria estratégica com a Rússia e sua crescente influência na ONU. Em seu mandato como membro do Conselho de Segurança da ONU, a Índia se absteve nas votações relacionadas ao conflito. Essa posição cautelosa e neutra foi influenciada pelo movimento de não-alinhamento da Guerra Fria, que era visto como uma forma de os países em desenvolvimento combaterem o conflito "nos termos deles" e assim adquirirem um certo grau de autonomia na política externa, fora da esfera de influência da União Soviética e do ocidente. Estudos de sanções da União Europeia argumentam que a relutância de outros países em apoiar a posição do bloco europeu pode estar relacionada tanto ao desejo de independência da política externa quanto à relutância em antagonizar um vizinho. O não-alinhamento permite que os países evitem se envolver nas crescentes tensões geopolíticas entre o Ocidente e a Rússia. Talvez seja por isso que muitos países democráticos mantêm uma postura de neutralidade, preferindo, como disse o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, "conversar com os dois lados". Existem, no entanto, incentivos econômicos e políticos específicos que exercem influência quando os países decidem não condenar a Rússia. Desde o início do conflito na Ucrânia, o Brasil manteve uma postura pragmática, mas ambivalente. Esta posição tem relação com as necessidades agrícolas e energéticas brasileiras. Como um dos maiores produtores e exportadores agrícolas do mundo, o Brasil requer uma alta taxa de uso de fertilizantes. Em 2021, o valor das importações da Rússia foi de US$ 5,58 bilhões, dos quais 64% foram relativos a fertilizantes. As importações de fertilizantes da Rússia representam 23% do total de 40 milhões de toneladas importadas. Em fevereiro de 2023, foi anunciado que a empresa russa de gás Gazprom vai investir no setor de energia brasileiro como parte da expansão das relações energéticas entre os dois países. Isso poderia levar a uma estreita colaboração na produção e processamento de petróleo e gás e no desenvolvimento de energia nuclear. Tal colaboração pode beneficiar o setor de petróleo brasileiro, que tem a expectativa de estar entre os maiores exportadores do mundo. Em março de 2023, as exportações russas de diesel para o Brasil bateram novos recordes, ao mesmo tempo em que houve um embargo total da União Europeia aos derivados de petróleo russos. Um nível mais alto de suprimento de diesel pode aliviar qualquer possível escassez que possa afetar o setor agrícola brasileiro. Analistas destacam que na era pós-guerra fria, a Rússia e a Índia continuaram a compartilhar pontos de vista estratégicos e políticos semelhantes. No início dos anos 2000, no contexto dessa parceria estratégica, o objetivo da Rússia era construir um sistema global multipolar que apelava à desconfiança da Índia em relação aos Estados Unidos como parceiro. A Rússia também ofereceu apoio à Índia para seu programa de armas nucleares e seus esforços para se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia continua a ser uma peça-chave no comércio de armas da Índia, fornecendo 65% das importações de armas do país entre 1992 e 2021. Desde o início da guerra, se tornou um importante fornecedor de petróleo a preço reduzido. Isso significou um aumento nas compras de cerca de 50 mil barris por dia em 2021 para cerca de 1 milhão de barris por dia em junho de 2022. Na véspera de a guerra completar um ano, a África do Sul realizou um exercício naval conjunto com a Rússia e a China. Para a África do Sul, os benefícios do exercício estão relacionados à segurança por meio da capacitação de sua Marinha subfinanciada e sobrecarregada. De maneira geral, há incentivos comerciais para a postura neutra da África do Sul. A Rússia é o maior exportador de armas para o continente africano. Também fornece energia nuclear e, vale ressaltar, 30% dos suprimentos de grãos do continente, como trigo. E 70% das exportações totais da Rússia para o continente estão concentradas em quatro países, incluindo a África do Sul. Em janeiro de 2023, a Rússia era um dos maiores fornecedores da África do Sul de fertilizantes nitrogenados, um elemento crucial para o cultivo de alimentos e pastagens. Além disso, entre as principais importações da Rússia estão briquetes de carvão usados ​​como combustível em diversas indústrias, incluindo processamento de alimentos. Considerando o nível de insegurança alimentar do país, ambas as importações são fundamentais para sua estabilidade sociopolítica e econômica. A guerra na Ucrânia mostrou que a neutralidade continua a ser uma escolha popular, apesar dos apelos para apoiar outra democracia em apuros. Essa política tem sido há muito tempo um importante aspecto da identidade política de países como a Índia. Em outros casos, como do Brasil, apesar das aparentes mudanças sob a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, o não-intervencionismo continua sendo um aspecto fundamental de sua tradição política. No entanto, é provável que a neutralidade se torne um "malabarismo complicado" à medida que os interesses conflitantes se tornam mais acentuados, particularmente no contexto do fornecimento de investimento direto do ocidente, além de desenvolvimento e ajuda humanitária para muitos dos Estados não-alinhados. * Jose Caballero é economista sênior do World Competitiveness Center, do International Institute for Management Development (IMD).
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw8dzd0025xo
brasil
Lula na China: por que o Brasil resiste à expansão do Brics
A viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China está marcada por uma série de acordos, apertos de mãos amigáveis com autoridades chinesas e a transmissão de uma imagem de concordância entre os dois países. Apesar disso, há um ponto no qual os dois países vêm divergindo e que poderá ser abordado durante a passagem de Lula pelo país: a ampliação do Brics, o grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Há alguns anos, a China vem tentando ampliar o grupo para agregar mais países, mas os outros membros veem esse movimento com ressalvas, incluindo o Brasil. O funcionamento do Brics é um dos temas discutidos durante o encontro entre Lula e o presidente chinês, Xi Jinping, e a possível expansão do grupo deverá ser abordada na próxima reunião de cúpula do Brics, prevista para agosto deste ano, em Durban, na África do Sul. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e diplomatas com quem a reportagem conversou em caráter reservado explicaram o que vem levando a China a buscar a ampliação do Brics e o que vem fazendo com que o Brasil e outros países resistam a essa ideia. Fim do Matérias recomendadas O termo "Brics" surgiu em 2001 e foi cunhado pelo economista inglês Jim O’Neil para designar um grupo de países inicialmente formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China em função das perspectivas de crescimento acentuado de suas economias. Em 2006, os quatro países começaram a se reunir de forma conjunta e, em 2011, a África do Sul passou a fazer parte formalmente do grupo. Atualmente, o países do Brics têm uma população somada de quase 3,7 bilhões, o equivalente a 46% do total global. Estimativas indicam que, juntas, as economias dos países do grupo chegam a praticamente um terço do produto interno bruto do planeta. Desde então, os cinco países realizam diversas reuniões multilaterais para debater temas econômicos e políticos. O grupo passou, então, a ser visto como um fórum multilateral alternativo àqueles considerados mais tradicionais como o G7 (grupo dos sete países mais desenvolvidos do mundo) e o G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2014, o grupo criou o Banco de Desenvolvimento (NDB), conhecido como o "Banco do Brics". Atualmente, a instituição é presidida pela ex-presidente brasileira Dilma Rousseff. O banco é considerado a principal estrutura executiva do grupo. Nos últimos anos, a ideia de ampliação do Brics passou a ser defendida abertamente por lideranças chinesas. "A China propõe iniciar o processo de expansão do Brics, explorar um critério e procedimentos para a expansão e, gradualmente, formar um consenso", disse o ministro de Relações Exteriores da China, Wang Yi, em maio de 2022. Apesar de a proposta ainda não ter sido implementada no âmbito político do grupo, a China conseguiu liderar um processo de expansão do número de integrantes do NDB. Além dos membros iniciais do grupo, agora fazem parte do banco os Emirados Árabes Unidos, o Egito e Bangladesh. A adesão do Uruguai ainda está em análise. Especialistas avaliam que a China quer ampliar a composição do Brics para aumentar sua esfera de influência sobre países e regiões onde Estados Unidos e União Europeia estão menos presentes. "A expansão do Brics aumenta a possibilidade de influência da China e coordenação de países e isso interessa muito ao país. A China está preocupada em ampliar o Brics para manter um espaço onde ela consegue ter voz. Quanto mais países houver no grupo, maior a zona de influência da China", disse a diretora do think-tank BRICS Policy Center, Ana Garcia Saggioro. O movimento chinês coincide com o momento em que as relações entre a China e os Estados Unidos estão estremecidas. Nos últimos anos, as autoridades norte-americanas vêm tratando a China como um adversário no cenário global e os dois países vêm trocando acusações mútuas. Pablo Ibanez, professor de Geopolítica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador visitante da Universidade Fudan, na China, o país liderado por Xi Jinping vem pressionando os demais membros para aumentar o grupo. "A China está centralizando essa ação e os outros países estão sendo menos consultados e isso vem gerando alguns ruídos no grupo", disse o professor. Entre os países que vêm sendo cogitados para integrar uma versão ampliada do grupo estão países como a Argentina, Irã e Arábia Saudita. Em 2022, o governo argentinou chegou a anunciar que tinha o apoio formal da China para ingressar no grupo. Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado dizem ver com ressalvas as propostas de ampliação do Brics. Um diplomata afirmou à reportagem que o aumento no número de países poderia resultar em uma diluição da influência do Brasil sobre o grupo que ele mesmo ajudou a fundar. Segundo ele, não faria sentido o Brasil se empenhar em criar um fórum alternativo à hegemonia americana no mundo para, posteriormente, ficar sujeito à hegemonia chinesa. Apesar da pressão de Pequim, o governo chinês, segundo ele, não teria dado algum tipo de ultimato ao grupo. Em entrevista concedida ao portal Metrópoles fevereiro deste ano, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse não se opor diretamente ao processo. Ele afirmou que caso os países do bloco formem um consenso, o Brasil teria, inclusive, um candidato: a Argentina. "Já foi dito, em mais de uma ocasião, que a Argentina seria a candidata defendida pelo Brasil numa eventual expansão do Brics", disse Vieira à época. As ressalvas em relação ao projeto de expansão do Brics não são apenas brasileiras. Analistas avaliam que a Índia também oferece resistência à ideia. Segundo eles, o governo indiano defende que a ampliação do grupo não aconteça por meio de convites ou apenas com base no apoio político de integrantes do bloco. A Índia defende que os países que queiram ingressar no grupo precisam atender critérios ainda a serem definidos. A posição é semelhante à de autoridades da África do Sul, que também defende o estabelecimento de critérios a serem analisados para incluir novos países no grupo. A ideia de estabelecer critérios para admissão de novos parceiros constou do comunicado conjunto divulgado na última reunião de cúpula do Brics, em 2022. "Continuaremos a definir prioridades claras em nossa ampla cooperação, com base no consenso, e tornar nossa parceria estratégica mais eficiente, prática e orientada para resultados", diz um trecho do documento. Um ex-diplomata brasileiro ouvido pela BBC News Brasil em caráter reservado disse que a tendência é de que o movimento chinês de expansão do bloco se consolide ao longo dos anos. Segundo ele, seria difícil impedir o desejo chinês de ampliação do grupo por muito tempo dado o tamanho do seu peso econômico e político. Ele diz, no entanto, que, ao menos por enquanto, o Brasil não precisará se opor diretamente à China uma vez que a Índia, outro "peso-pesado" do grupo, tenderia a bloquear a expansão. Esse ex-diplomata afirmou que uma das soluções possíveis para esse impasse seria a adoção de um modelo híbrido em que novos atores sejam admitidos, mas com status de convidado, a exemplo do que, geralmente faz o G7.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwknwzgjpo
brasil
'Ninguém vai proibir que Brasil aprimore relação com a China', diz Lula em reunião com Xi Jinping
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse nesta sexta-feira (14/04) que "ninguém vai proibir o aprimoramento" das relações entre o Brasil e a China. A declaração foi feita no início do encontro do brasileiro com o presidente chinês, Xi Jinping, em Pequim. "Ontem (quinta-feira, 13/4), fizemos uma visita à Huawei numa demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China", disse Lula a Xi Jinping. A declaração de Lula acontece em meio ao recrudescimento das relações entre a China e os Estados Unidos e à pressão dos americanos sobre empresas chinesas de tecnologia. Nos últimos anos, a pressão atingiu a Huawei, que é uma das maiores empresas chinesas. Fim do Matérias recomendadas Em 2022, o governo americano proibiu a importação de equipamentos de telecomunicação produzidos por diversas empresas chinesas, entre elas a Huawei. Os Estados Unidos alegam que haveria riscos "inaceitáveis" à segurança nacional. A fala de Lula vem numa sequência de recados sobre a importância que ele afirma dar às relações com a China. "Nossos interesses na relação com a China não são apenas comerciais [...] Temos interesses políticos e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial dando mais representatividade às Nações Unidas", disse Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O presidente chinês também usou o encontro para mandar recados políticos. Ele chamou o presidente Lula de "amigo" e disse que o sucesso das relações entre os dois países pode trazer estabilidade para o mundo. "Um relacionamento China e Brasil em desenvolvimento constante, saudável e estável desempenhará papel positivo e importante par a apaz, estabilidade e desenvolvimento própsero para as regiões e para o mundo", disse o presidente. Além das declarações políticas, o encontro entre Lula e Xi Jinping também foi marcado pela assinatura de 15 acordos em áreas que envolvem o desenvolvimento de satélites que irão monitorar a Amazônia, tecnologia, economia, cultura e meio ambiente. Parte do objetivo da viagem de Lula era atrair investimentos chineses para o Brasil em um momento em que a economia brasileira vem enfrentado dificuldades para crescer. Segundo estimativas feitas pelo Ministério da Fazenda, a expectativa é de que os acordos firmados entre os dois países durante a visita de Lula à China possam render pelo menos R$ 50 bilhões em investimentos. Além dos acordos firmados entre os dois países, foram firmados pactos envolvendo empresas chinesas e brasileiras. Um dos mais citados por auxiliares de Lula nos últimos dias, porém, ainda aguarda ajustes. Trata-se do plano de que a montadora de automóveis BYD, especializada em veículos elétricos, assuma a plata da Ford na Bahia. A viagem de Lula encerra o que alguns diplomatas brasileiros vinham classificando como um o "pontapé" inicial da agenda de visitas internacionais de Lula. Nos primeiros quatro meses de seu governo, o petista visitou aqueles que são considerados os três principais parceiros comerciais e políticos do Brasil: Argentina (em janeiro), Estados Unidos (em fevereiro) e China (abril). Apesar da expectativa, nem Xi Jinping e nem Lula mencionaram, publicamente, a guerra da Ucrânia o período ao qual os jornalistas tiveram acesso. Nos últimos meses, Lula vem defendendo a criação de um clube de países que teria a missão de intermediar um processo que levasse à paz na Ucrânia. A China, por sua vez, já lançou um plano com 12 itens prevento o fim do conflito entre a Ucrânia e a China. A viagem de Lula ao país asiático termina neste sábado (15/04). Pela manhã, ele embarca ao Brasil, mas antes, passa nos Emirados Árabes Unidos, onde deverá ter um encontro com autoridades do país. A expectativa, agora, fica em torno do comunicado conjunto que os dois países devem divulgar nesta sexta-feira ou nos próximos dias. Segundo diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil, os termos exatos do comunicado ainda estavam sendo negociados poucas horas antes de Lula e Xi Jinping se encontrarem. Há expectativa de que a guerra da Ucrânia e a iniciativa trilionária da China conhecida como "Belt and Road" sejam incluídas, de alguma maneira, no texto.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pne0x3rz2o
brasil
Na China, Lula fala em parceria para 'mudar governança mundial'
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse nesta sexta-feira (14/04) defender uma parceria geopolítica com a China para mudar a governança mundial. A declaração foi feita durante encontro com o presidente do Comitê Permanente da Assembleia Nacional Popular da China, o equivalente ao parlamento chinês, Zhao Leji. "Os nossos interesses na relação com a China não são apenas comerciais [...] Temos interesses políticos e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial dando mais representatividade às Nações Unidas", disse Lula. O presidente brasileiro ainda fez uma crítica à Organização das Nações Unidas (ONU), afirmando que ela não teria força para manter a paz no mundo. "Não podemos continuar com Nações Unidas que não tenha a força necessária para coordenar o equilíbrio que o mundo precisa para que a gente possa viver mais em paz", afirmou. Fim do Matérias recomendadas Lula disse que a China é um parceiro preferencial do Brasil e que é com o país asiático que o Brasil tenta "equilibrar" a geopolítica mundial. "É importante dizer que a China tem sido um parceiro preferencial do Brasil nas suas relações comerciais. É com a China que a gente mantém o mais importante fluxo de comércio exterior. É com a China que nós temos a maior balança comercial e é junto com a China que nós temos tentado equilibrar a geopolítica mundial discutindo os temas mais importantes", disse Lula. Na ocasião, Lula disse que os organismos financeiros multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) não poderiam continuar "asfixiando" países em desenvolvimento, usando como exemplo a Argentina. O discurso de Lula nesta sexta-feira acontece em meio ao estremecimento das relações entre a China e os Estados Unidos. Nos últimos anos, a competição por mercados e influência política entre os dois países tem se acirrado com acusações mútuas de interferências indevidas em áreas de interesse dos dois países. Em 2022, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse que a China é o único país atualmente capaz de "remodelar" a ordem internacional. Na tarde desta sexta-feira, Lula ainda terá um encontro com o presidente chinês, Xi Jinping. Há expectativa sobre o teor do comunicado conjunto que os dois países deverão fazer, especialmente em relação a temas como a guerra na Ucrânia.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c039re2njmdo
brasil
O dólar abaixo de R$ 5 veio para ficar?
O dólar caiu nesta quinta-feira (13/4) pelo terceiro dia consecutivo, chegando a ser negociado abaixo de R$ 4,90. Abaixo dos R$ 5, a moeda americana é negociada aos menores valores desde meados de 2022. Isso é positivo pois o câmbio tem impacto sobre a inflação, já que muitos dos produtos e insumos da economia brasileira – do trigo do pãozinho, ao petróleo que afeta o preço dos combustíveis – são importados ou precificados em dólar. Mas esse é um movimento passageiro ou ele veio para ficar? Perguntamos a três economistas. Os analistas apontam uma combinação de fatores externos e internos que levaram à valorização do real e desvalorização da moeda americana. Fim do Matérias recomendadas Para Silvio Campos Neto, economista da Tendências Consultoria, um primeiro fator externo é a perspectiva de fim da alta de juros nos EUA. "Esse sentimento se intensificou com a crise bancária em meados de março e com uma sequência de dados mais fracos da economia americana, culminando na quarta-feira com o CPI [taxa de inflação dos EUA] em uma tendência de desaceleração", diz Campos Neto – que não tem parentesco com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Isso afeta o câmbio porque juros mais altos nos EUA atraem capital ao país, valorizando a moeda americana. Assim, o fim da alta favorece as moedas de países emergentes. Segundo Rachel de Sá, chefe de economia da Rico Investimentos, um segundo fator externo é uma redução da aversão ao risco após a crise bancária que afetou Silicon Valley Bank (SVB), Signature Bank e Credit Suisse. "Quando uma crise assim acontece, todo mundo foge de investimentos de risco, porque não sabe o que vai acontecer ", explica Rachel. "O dólar se fortalece em momentos de aversão ao risco, mesmo quando o risco vem dos EUA. Mas, agora, há uma percepção de que essa crise não vai se tornar sistêmica, porque os reguladores agiram rápido e não houve quebradeira." Um terceiro fator externo, segundo a economista, é a recuperação da China, que impulsiona o preço das commodities brasileiras e, consequentemente, a entrada de dólares no país. "É uma questão de oferta e demanda: se tem mais moeda estrangeira, ela vale menos", diz a economista da Rico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No terreno doméstico, os economistas apontam o arcabouço fiscal – conjunto de regras apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para limitar o gasto público – como principal fator para o fortalecimento da moeda brasileira. "De forma geral, ainda que tenha problemas, o arcabouço veio melhor do que se imaginava", diz Silvio Campos Neto. "Havia muito temor em relação a um risco de descontrole de gastos e, consequentemente, um descontrole de dívida pública. Do lado positivo, o arcabouço trouxe de fato um mecanismo de limitação de despesas, que era a grande preocupação e a grande dúvida", completa. Pelas regras do arcabouço fiscal, a despesa do governo ficaria limitada a 70% da expansão da receita e a uma banda de crescimento que varia de 0,6% a 2,5%, para evitar queda abrupta em caso de contração da receita, ou gasto exagerado, na situação oposta. A proposta agora precisa passar pelo Congresso, onde poderá sofrer alterações. Segundo Sérgio Machado, sócio gestor da NCH Capital, um segundo fator doméstico foi a inflação no Brasil menor do que o esperado em março – em 12 meses, na passagem de fevereiro para março, o IPCA caiu de 5,6% para 4,65%, ficando abaixo do teto da meta (5%). "Passamos a ter à frente uma visão mais benéfica da inflação e o Banco Central tem uma propensão marginal a baixar a taxa de juros", diz Machado, explicando que isso melhora o ambiente macro ao reduzir a temperatura do embate entre governo e autoridade monetária. Enquanto isso não acontece, a taxa de juros elevada no Brasil é um último fator interno que explica a valorização do real frente ao dólar – embora esse não seja um elemento novo. "Nossas taxas de juros reais [descontadas da inflação] estão entre as maiores do mundo, então há um atrativo para os investidores, de vir para o Brasil para se beneficiar desses juros", diz Machado. "Esse ano, há um fluxo positivo [de entrada de capital estrangeiro no Brasil] quase todas as semanas, então teve uma entrada constante de dólar que ajudou a valorizar o real." Existe uma piada recorrente no mercado financeiro que diz que "Deus criou a taxa de câmbio para tornar os economistas mais humildes". Isso porque, segundo eles, a relação entre moedas é uma das variáveis mais difíceis de prever, já que ela é afetada por uma série de outros fatores, como o saldo das contas externas, o diferencial de juros, o cenário político e o risco fiscal, além do cenário externo e eventuais movimentos de aversão ao risco – quando investidores buscam aportes mais seguros. Mesmo com essa imprevisibilidade, os economistas por ora têm mantido suas apostas num dólar acima de R$ 5 no final do ano. Justamente, devido às incertezas. A Tendências Consultoria mantém sua expectativa para o dólar no fim de 2023 em R$ 5,25. "Lá fora ainda não está claro se o Fed [banco central americano] realmente vai ter espaço para reduzir juros tão cedo. E aqui, o arcabouço tem um lado positivo, mas ainda tem toda a tramitação no Congresso, e ainda há muito ruído na relação entre governo e Banco Central", enumera Silvio Campos Neto. Além destes riscos, ele cita ainda a possível mudança da meta de inflação, a nomeação do futuro presidente do BC em 2024, a política de preços da Petrobras e a atuação do BNDES, como fatores de atenção para o real brasileiro. Rachel de Sá, da Rico Investimentos, mantém sua projeção de câmbio para o fim do ano em R$ 5,30. "Ainda tem muito risco no ar: o arcabouço ainda nem foi apresentado ao Congresso, não sabemos o que tem exatamente dentro da regra, as taxas de juros nos EUA ainda não começaram a cair e ainda não há dados concretos sobre a economia da China. Então tem muita água para rolar", pondera.
2023-04-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd178e9vpl4o
brasil
Tarifa zero: as lições das 67 cidades do Brasil com ônibus de graça
Em março de 2023, uma greve paralisou o metrô de São Paulo. Em meio às negociações, os metroviários propuseram uma forma de protesto diferente: eles voltariam ao trabalho, mas o metrô operaria sem cobrança de tarifa da população até as partes chegarem a um acordo. A ideia acabou barrada pela Justiça, impedindo o que teria sido o segundo maior experimento de tarifa zero no país em menos de um ano. A tarifa zero ou passe livre é uma política pública que prevê o uso do transporte público sem cobrança de tarifa do usuário final. Nesse modelo, o sistema é financiado pelo orçamento do município, com fontes de recursos que variam, a partir do desenho adotado por cada cidade. O primeiro teste em grande escala da proposta no país aconteceu no segundo turno das eleições presidenciais, em outubro de 2022. Naquele dia, centenas de cidades brasileiras deixaram de cobrar passagem nos ônibus e trens, para facilitar o acesso dos eleitores às urnas. Na Grande Recife, a demanda aumentou 115% em relação aos domingos comuns e 59% na comparação com o primeiro turno. Em Belo Horizonte, o aumento foi de 60% e 23% nas mesmas bases de comparação, conforme balanços divulgados à época. Fim do Matérias recomendadas Os números revelam a imensa demanda reprimida pelo transporte urbano e o fato de que, atualmente, milhões de brasileiros não usam ônibus, metrôs e trens por falta de dinheiro. Mas essa realidade está mudando em um número crescente de cidades e projetos em discussão na Câmara dos Deputados querem tornar a tarifa zero uma política nacional – embora financiá-la em grandes centros urbanos ainda seja um imenso desafio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao menos 67 cidades brasileiras já adotam a tarifa zero em todo o seu sistema de transporte, durante todos os dias da semana, conforme levantamento da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), atualizado em março de 2023. São cidades pequenas e médias, com populações que variam de 3 mil a mais de 300 mil habitantes. Outros sete municípios adotam a política de forma parcial: em dias específicos da semana, em parte do sistema ou apenas para um grupo limitado de usuários, segundo os dados da NTU. E ao menos quatro capitais estudam neste momento a possibilidade de adotar a tarifa zero em seus sistemas de transporte: São Paulo, Cuiabá, Fortaleza e Palmas, de acordo com levantamento da área de mobilidade urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). No Brasil, a tarifa zero foi proposta pela primeira vez durante o mandato da então petista Luiza Erundina à frente da Prefeitura de São Paulo (1989-1992). Mas, naquela ocasião, a proposta não avançou. A política voltou ao debate público nos anos 2000, com o surgimento do Movimento Passe Livre (MPL). O movimento social ganhou notoriedade em junho de 2013, ao liderar a maior onda de protestos da história recente do país, deflagrada por um aumento das tarifas de ônibus em São Paulo. Os números da NTU mostram que junho de 2013 teve efeitos concretos: das 67 cidades com tarifa zero no país, 51 adotaram a política após aquele ano. A pandemia deu impulso adicional ao avanço do modelo no Brasil: desde 2021, foram 37 cidades a adotar a tarifa zero – 13 em 2021, 16 em 2022 e outras oito só neste início de 2023. O tema foi discutido pela equipe de transição do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e está no centro de um projeto de lei e uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) na Câmara, o primeiro da autoria de Jilmar Tatto (PT-SP) e a segunda, de Luiza Erundina (Psol-SP). A PEC de Erundina pretende criar um Sistema Único de Mobilidade (SUM), a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é garantir a gratuidade nos transportes, por meio de um modelo de responsabilidade compartilhada entre governo federal, Estados e municípios. A seguir, conheça a experiência de cidades que já adotam a tarifa zero e os desafios para implementação da política em municípios de grande porte, como São Paulo. Maricá, no Rio de Janeiro, iniciou seu projeto de tarifa zero ainda em 2014, durante o mandato de Washington Quaquá (PT) na prefeitura do município. Com uma população de 167 mil habitantes, a cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro conta com um orçamento turbinado por royalties do petróleo – uma espécie de compensação recebida por municípios pela exploração do óleo em suas águas. Foi com esse dinheiro em caixa que Maricá viabilizou uma política de renda básica que atualmente beneficia 42,5 mil moradores e também os ônibus gratuitos para a população. Para dar início à política de tarifa zero, a prefeitura de Maricá criou uma autarquia, a EPT. Com frota e motoristas próprios, a empresa operava a princípio um número reduzido de ônibus gratuitos, que circulavam ao mesmo tempo que linhas pagas, operadas por duas empresas privadas que tinham o direito de concessão no município. Essa operação concomitante levou a embates na Justiça, encerrados apenas com o fim das concessões. Foi apenas em março de 2021 que a EPT passou a operar todas as linhas do município com tarifa zero, por meio de ônibus próprios e outros alugados de empresas privadas através de processos de licitação. Atualmente com 120 ônibus e 3,5 milhões de passageiros por mês, o custo mensal do sistema varia de R$ 10 milhões a R$ 12 milhões. "Em 2022, foram R$ 160 milhões que as famílias deixaram de gastar com transporte, o que é injetado diretamente na economia da cidade", diz Celso Haddad, presidente da EPT de Maricá. O município enfrentou, no entanto, um desafio comum a todas as cidades que implantam a tarifa zero: explosão de demanda e, consequentemente, dos custos de operação. "Aqui em Maricá, [a demanda] cresceu mais de seis vezes. Tínhamos em torno de 15 mil a 20 mil pessoas transportadas diariamente e hoje transportamos mais de 120 mil. A tarifa zero é um propulsor do direito de ir e vir, é muito avassaladora a diferença", afirma o gestor. O avanço da tarifa zero no período recente deixou de ser identificado com um espectro político específico. Prefeitos de esquerda e direita têm implementado o modelo em seus municípios. Josué Ramos, prefeito de Vargem Grande Paulista, por exemplo, é filiado ao PL do ex-presidente Jair Bolsonaro. O prefeito conta que a motivação que o levou a implementar em 2019 a tarifa zero no município foi a necessidade crescente de subsídios – a remuneração do serviço de transporte público é geralmente composta por uma parcela financiada via tarifa e outra via subsídio, com recursos que vêm do orçamento da prefeitura, a partir da arrecadação de impostos. "Assim que eu assumi, em 2017, a empresa de ônibus veio pressionar para aumentar a tarifa ou ampliar o subsídio ao transporte da cidade, e eu não tinha previsão orçamentária para isso", diz Ramos. "Eles, do dia para a noite, retiraram todos os ônibus das linhas e eu tive que, em 12 horas, buscar um transporte alternativo, e coloquei vans operando de forma gratuita. Isso me despertou o interesse em estudar melhor o caso [da tarifa zero]." Ramos conta que estudou exemplos europeus, como Luxemburgo – país que adota a gratuidade em todo seu sistema de transporte, incluindo ônibus, trens e metrôs –, e brasileiros, como os de Maricá e Agudos, no interior de São Paulo. Assim, a prefeitura chegou a um modelo em que a gratuidade é financiada através de um fundo de transporte, cujas principais receitas são uma taxa paga pelas empresas locais no lugar do vale-transporte (de R$ 39,20 mensais por funcionário), além de publicidade nos ônibus, locação de lojas nos terminais e 30% do valor das multas de trânsito. Empresas locais chegaram a ir à Justiça contra a cobrança da taxa, mas Ramos afirma que algumas desistiram após entenderem melhor a proposta, restando uma ação pendente. Com a tarifa zero, a demanda aumentou de 40 mil para 110 mil usuários mensais, exigindo a ampliação da frota de ônibus. Atualmente, são 15 ônibus, em sete linhas, e o custo do sistema é de R$ 600 mil mensais. "É uma questão muito maior do que a de mobilidade. Existe a questão social, a de geração de recursos, porque na hora que eu implantei a tarifa zero, aumentou o gasto no comércio, a arrecadação de ICMS, de ISS", relata Ramos. "Existe também a questão da saúde: tínhamos 30% de pessoas que faltavam à consulta médica e esse índice reduziu, porque as pessoas não tinham dinheiro para ir à consulta. Então ajudou em todas as áreas. A tarifa zero, ao ser debatida, precisa levar em conta tudo isso." Caucaia, segundo município mais populoso do Ceará, com 369 mil habitantes, é um exemplo do avanço da tarifa zero nos municípios após a pandemia. Com a crise sanitária, os sistemas de transportes públicos perderam passageiros e os custos aumentaram com a alta do diesel e da mão de obra. Isso fez crescer a pressão por subsídios, num momento em que as famílias, com a renda pressionada, teriam dificuldade para arcar com um aumento da tarifa. "Tínhamos que fazer alguma coisa para diminuir a perda [de renda] das famílias, elas precisavam ser socorridas de alguma forma na esfera municipal, para além do auxílio emergencial", diz Vitor Valim, prefeito de Caucaia, eleito pelo PROS e atualmente sem partido. Diferentemente de Maricá, que conta com royalties do petróleo, e de Vargem Grande Paulista, que criou uma taxa sobre as empresas locais, Caucaia decidiu arcar com a tarifa zero com recursos do orçamento regular da prefeitura. O programa, que recebeu o nome de Bora de Graça, foi implementado em setembro de 2021. A iniciativa consome atualmente cerca de 3% do orçamento municipal e a remuneração à empresa prestadora do serviço é por quilômetro rodado, não por passagem. "É tão exequível que o modelo de Caucaia será estendido para toda a região metropolitana", diz Valim. A gratuidade no transporte público intermunicipal na Região Metropolitana de Fortaleza foi promessa de campanha do governador Elmano de Freitas (PT) e um projeto sobre o tema tramita na Assembleia Legislativa do Ceará. Além de Caucaia, já adotam a tarifa zero na Região Metropolitana de Fortaleza os municípios de Eusébio, Aquiraz e Maracanaú. A capital estuda adotar a gratuidade para estudantes. A repercussão local é outra característica do avanço recente da tarifa zero: a adoção da política por um município influencia as cidades do entorno. Em Caucaia, com a tarifa zero, a demanda passou de 505 mil passageiros por mês para 2,2 milhões. "Tivemos um aumento de custo de mais 30% com reforço da frota, o que era previsível", relata o prefeito. "Esse foi um desafio em termos de gestão, mas a dificuldade maior foi vencer a descrença da população, que temia ser taxada. Teve uma desconfiança muito grande do povo." Com a tarifa zero avançando nas pequenas e médias cidades, diversas capitais do país estudam caminhos para adotar a política. Desde outubro de 2021, São Luís (MA) testa um projeto-piloto chamado Expresso do Trabalhador, oferecendo a gratuidade para uma região específica da cidade e para trabalhadores do comércio após às 21h. Florianópolis (SC) tem ônibus de graça no último domingo de cada mês – em dezembro e janeiro, a gratuidade foi estendida a todos os fins de semana. Maceió (AL) oferece a gratuidade aos domingos, no programa Domingo é Livre. Em São Paulo, uma subcomissão na Câmara Municipal estuda desde março a viabilidade da tarifa zero na capital de mais de 12 milhões de habitantes. Atualmente, as 74 cidades brasileiras com tarifa zero total ou parcial somam juntas 3,8 milhões de habitantes, segundo a NTU, o que dá uma ideia do tamanho do desafio paulistano. "Em São Paulo, o custo hoje de operação [do sistema de ônibus municipais] passa de R$ 12 bilhões e o município coloca mais de R$ 5 bilhões em subsídios", afirma o vereador Paulo Fringe (PTB), presidente da Subcomissão da Tarifa Zero da Câmara Municipal de São Paulo "A tarifa na capital está atualmente em R$ 4,40 – o valor real dela é de R$ 7,10, portanto o município está subsidiando grande parte desse custo. [Na subcomissão da Tarifa Zero] temos 120 dias, renováveis, para estabelecer um diagnóstico de quais são as eventuais fontes de receita, sem aumento de imposto, para que possamos subsidiar a parte que falta para ter a tarifa zero." Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Idec, afirma que o custo de financiamento não é o único desafio para a implantação da tarifa zero em grandes cidades. Uma segunda dificuldade, segundo o especialista, é conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento não apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana – incluindo faixas exclusivas, eliminação de vagas de estacionamento em vias onde passam ônibus, criação de sistemas de integração e transferência, e assim por diante. Outro desafio é a integração com o sistema de transporte sobre trilhos, já que metrôs e trens operam em muitas capitais no limite de sua capacidade, o que gera uma dificuldade para acomodar os novos fluxos que seriam gerados pela gratuidade. Por fim, um último desafio nas grandes cidades é a questão metropolitana, pois eventuais disputas fiscais entre cidades com políticas diferentes poderiam desequilibrar o sistema. Francisco Christovam, presidente-executivo da NTU, associação que congrega as empresas de transporte por ônibus, acrescenta que há também um desafio jurídico-legal, que diz respeito aos contratos de concessão ou permissão entre operadoras e prefeituras. "Esses contratos precisarão ser revistos, mas as prefeituras não podem ver essa mudança como uma oportunidade de rasgar contratos", diz Christovam. As empresas avaliam, porém, que a tarifa zero pode ser uma solução para voltar a atrair a população para o transporte público – até fevereiro de 2023, a demanda nos ônibus urbanos do país ainda era equivalente a 82,8% do período anterior à pandemia. Também pode ser uma alternativa para o reequilíbrio financeiro dos sistemas, num momento em que crescem os subsídios, em meio à alta de custos. Segundo levantamento da NTU, antes da covid-19, apenas São Paulo, Curitiba e Brasília subsidiavam pesadamente seus sistemas de transporte. Atualmente, são mais de 200 cidades subsidiando seus sistemas de transporte. "Para nós operadores, o importante é a garantia da remuneração justa e adequada pelo serviço prestado. Se o dinheiro veio do passageiro ou do orçamento municipal, para nós não tem importância nenhuma, desde que o valor seja suficiente para pagar o custo do serviço." Na Câmara dos Deputados, ao menos dois projetos tentam fazer da tarifa zero um programa nacional. O projeto de Jilmar Tatto (PL 1280/2023) propõe a criação do Programa Tarifa Zero, com modelo de financiamento similar ao de Vargem Grande Paulista. Pelo projeto, as cidades poderiam aderir ao programa de forma voluntária. Os empresários locais então trocariam o pagamento do vale-transporte pela contribuição a um fundo municipal para subsidiar a gratuidade no transporte – que seria, no entanto, limitada aos trabalhadores. Mais abrangente, a PEC de Luiza Erundina propõe a criação de um Sistema Único de Mobilidade, universal e gratuito ao usuário, a exemplo do SUS, na saúde. A PEC está em fase de coleta de assinaturas – são necessárias 171 para que a proposta possa tramitar na Câmara e o mandato já havia recolhido 32 até o início desta semana. Pela proposta, o financiamento ao sistema seria viabilizado pela instituição de uma contribuição pelo uso do sistema viário e por recursos da arrecadação de impostos de União, Estados e municípios. Erundina explica que o objetivo da proposta é concretizar a Emenda Constitucional 90 de 2015, que naquele ano garantiu o transporte como um direito social, inscrito no artigo 6º da Constituição. Pioneira a propor a tarifa zero, ainda em 1989, a deputada vê com satisfação o avanço da política pública nas cidades brasileiras e se diz otimista com as perspectivas para a PEC. "Quando uma proposta tem coerência, tem consistência, é inteligente para resolver os problemas da coletividade, ela não morre na ideia do povo, ela segue viva. O Movimento Passe Livre sustentou a defesa dessa proposta e hoje já são diversas instituições defendendo essa ideia e vários municípios operando essa política na prática, com grande sucesso", diz Erundina. "Vejo isso com muita esperança."
2023-04-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy65e4qnjjpo
brasil
As duras críticas de Lula a bancos e FMI em discurso na China
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou seu discurso na cerimônia de posse de Dilma Rousseff (PT) como presidente do Novo Banco do Desenvolvimento (NDB) para criticar instituições financeiras tradicionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nesta quinta-feira (13/04), ele disse que essas organizações não deveriam ficar "asfixiando" as economias de países em desenvolvimento. "Os bancos têm de ter paciência. Se for preciso, renovar o acordo e colocar a palavra tolerância em cada renovação porque não cabe ao banco ficar asfixiando as economias dos países, como está fazendo agora com a Argentina o Fundo Monetário Internacional", disse Lula em seu discurso. A Argentina passa, há anos, por uma crise econômica e teve de recorrer a empréstimos do FMI. A relação do país com o organismo, porém, é alvo de críticas e divide a classe política local. Fim do Matérias recomendadas O NDB foi fundado em 2014 pelos membros originais dos BRICS, grupo de países que reúne o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Cada país fez um aporte de recursos e a instituição financia projetos de infraestrutura em seus membros. O banco foi criado oficialmente em 2014 e agora, além dos BRICS, também conta com Egito, Emirados Árabes Unidos e Bangladesh. O banco também avalia a entrada do Uruguai. Dilma assumiu a presidência do banco após uma articulação política liderada pelo governo brasileiro já sob o comando de Lula. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em seu discurso, Lula defendeu a criação de instituições financeiras alternativas para financiar projetos em países em desenvolvimento. Segundo ele, a ideia é evitar a dependência em relação a organismos como o FMI. “Durante os oito anos em que eu estive na presidência do Brasil, nós tentamos criar o Banco do Sul, na perspectiva de unificar toda a América do Sul em torno de um projeto que nos permitisse financiamento para o investimento nas coisas necessárias do nosso país sem que a gente precisasse se submeter às regras colocada pelo Fundo Monetário Internacional", disse Lula. "[O FMI] quando empresta dinheiro para um país de terceiro mundo ou qualquer outro banco quando empresta para outro país do terceiro mundo, as pessoas se sentem no direito de mandar, de administrar a conta do país”, disse o presidente. "Vocês se lembram, sobretudo no Brasil, quando todo ano descia um homem e uma mulher no aeroporto do Rio de Janeiro ou de Brasília para ir fiscalizar as contas do nosso país. Nós mudamos a regra", disse Lula. Lula também criticou a dependência internacional em relação ao dólar. Ele defendeu que os países em desenvolvimento passassem a adotar mecanismos para financiamento de projeto e exportações em suas moedas locais. "Quem decidiu que é era o dólar a moeda depois que desapareceu o ouro como padrão? Por que não foi yene? Por que não foi o Real? Por que não foi peso? Porque as nossas moedas eram fracas [...] porque hoje um país precisa correr atrás do dólar para poder exportar, quando ele poderia exportar sua própria moeda e os bancos centrais certamente poderiam cuidar disso", disse Lula. "É difícil porque tem gente mal-acostumada porque todo mundo depende de uma única moeda. Eu acho que o século 21 pode mexer com a nossa cabeça e pode nos ajudar, quem sabe, a fazer as coisas diferentes", afirmou o presidente. Lula está na China para uma visita de Estado ao país. Nesta quinta-feira, além da posse de Dilma no NDB, ele tem encontros previstos com executivos chineses de empresas com a Huawei, do setor de telecomunicações, BYD, do setor automotivo, e estatais do ramo de infraestrutura. Na sexta-feira (15/04), ele será recebido pelo presidente Xi Jinping, em Pequim.
2023-04-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2jwyx1yddo
brasil
'A indústria virou pó': como agro e mineração já superam manufatura no Brasil
O Brasil caminha na contramão do mundo. O país está se tornando mais primário – isto é, mais dependente da agropecuária e da mineração – e menos tecnológico. Isso já vinha acontecendo nas nossas exportações desde meados da década de 2000. Mas dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que a "reprimarização" – como os economistas chamam essa espécie de "volta ao passado" em termos de desenvolvimento econômico – já abrange toda a estrutura produtiva do país. Em 1995 – ano seguinte à criação do Plano Real, que deu fim à hiperinflação –, a indústria de transformação representava 16,8% do PIB brasileiro, mais de 10 pontos percentuais a mais do que o peso da soma do agro e da mineração (6,5%) na nossa economia. Essa distância veio diminuindo ao longo dos anos, em meio à desindustrialização e à demanda crescente da China por bens primários. Fim do Matérias recomendadas Finalmente em 2021, com as commodities em alta em meio à pandemia, a soma de agro e mineração superou a manufatura no PIB brasileiro pela primeira vez em décadas. A tendência se manteve em 2022 com os efeitos da guerra da Ucrânia e, segundo o economista Paulo Morceiro, pesquisador na Universidade de Joanesburgo (África do Sul), representa um retrocesso para o país. Entenda em cinco gráficos como agro e mineração já superam a manufatura no Brasil e por que Morceiro afirma que "a indústria brasileira virou pó". Os países mais pobres costumam ter sua pauta de produção e exportação concentrada em produtos agrícolas e minerais, os chamados produtos primários, explica Morceiro. À medida que os países se urbanizam e suas economias avançam, cresce a parcela dos produtos industriais tanto na composição do PIB, como nas exportações. Os países mais bem sucedidos nesse processo têm parcela significativa de sua participação no comércio internacional em produtos industriais de alta e média-alta tecnologia – esse é o caso dos principais países ricos do mundo, como Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Japão e mais recentemente, Coreia do Sul e China. "A reprimarização é um retrocesso do ponto de vista do desenvolvimento econômico", defende o economista. Morceiro lembra que o Brasil vem sofrendo com a desindustrialização desde os anos 1980, o que segundo ele é fruto do abandono do planejamento econômico de longo prazo, da redução de investimentos públicos e da perda de protagonismo da indústria como centro da política de desenvolvimento. "Deixamos de priorizar a indústria, essa é a grande verdade", afirma. A esse cenário, a partir do ano 2000, se soma a demanda da China por produtos como minério de ferro, petróleo, carne e soja, em meio ao forte crescimento do país asiático. Mas o que explica a virada a partir de 2021, quando agro e mineração finalmente ultrapassam a manufatura em termos de peso no PIB do Brasil? Uma combinação de alta de preço das commodities, mas também de aumento do volume de exportação desses produtos, devido a safras recordes, pandemia, guerra da Ucrânia e política de estocagem da China em meio à crise sanitária. "Não é problema exportar minério de ferro, soja, suco de laranja, todos esse produtos. Mas isso só seria suficiente, se o Brasil tivesse uma população pequena. Como o país tem uma população grande, de 210 milhões de pessoas, é preciso mais", diz Morceiro. Um exemplo claro disso está na geração de empregos. Mesmo com o avanço da importância dos produtos primários na nossas exportações e no PIB, a participação do agro e das indústrias extrativas no emprego no Brasil vem caindo desde os anos 2000: de 21,5% no início do milênio, para 12,9% em 2020. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As indústria extrativas (petróleo e gás, minério de ferro e outras) representam parcela ínfima dessas ocupações – 212 mil em 2020. Então a maior parte dessa queda é explicada pelo agronegócio, que emprega cada vez menos pessoas, devido a uma combinação de ganhos de produtividade, avanço da mecanização e maior concentração da produção. Também a baixa remuneração e precariedade do trabalho no campo leva cada vez mais pessoas a deixarem a agricultura em busca de empregos nas cidades. "A indústria extrativa já quase não gera emprego e a agropecuária vai gerar cada vez menos", prevê Morceiro. "Nos Estados Unidos, por exemplo, que é o maior exportador mundial de produtos agrícolas (o Brasil é o segundo), só 1% do emprego está na agricultura. A França tem 3%, Alemanha tem 1%. Então, se tivermos sorte, vamos conseguir reter 5% de empregos na agricultura." O economista destaca que o agronegócio foi e ainda é bom para o Brasil: gera um saldo comercial muito grande, permite compensar o déficit da indústria de transformação e gerar superávit para a balança de pagamentos, o que aumenta nossas reservas internacionais. "Isso foi muito importante, reduziu a vulnerabilidade externa do país, que sempre sofria com crises cambiais. Então nem tudo é ruim e nem tudo é bom. Mas, do ponto de vista de gerar empregos e inovação, não são setores que têm um peso significativo", pontua o analista. Ele observa que agro e extrativa também têm impacto mais localizado sobre o crescimento, impulsionando menos o setor de serviços, por exemplo. Atualmente, apenas 2% das exportações brasileiras são de alta tecnologia – que inclui setores como informática, eletrônicos, farmacêutica e aeronaves. No ano 2000, eram 12%. Média-alta tecnologia – que inclui, por exemplo, automóveis, máquinas e equipamentos, químicos e instrumentos médicos – também encolheu: de 24% das exportações em 2000, para 13% no dado mais recente disponível. Por outro lado, agropecuária e extrativa aumentaram o peso na pauta de exportações: de 15% para 49%. "O Brasil nunca foi um gigante na alta e média-alta tecnologia, mas tínhamos alguma relevância no passado", observa Morceiro. "É um país que está entre os dez mais populosos do mundo, entre os dez maiores PIBs do mundo, mas no comércio tecnológico é nanico – já era nanico e ficou menor ainda." Ao se especializar em produtos primários, o Brasil vai na contramão das tendências do comércio internacional, destaca o pesquisador. Enquanto no mundo 21% das exportações são de produtos de alta tecnologia e 31% de média-alta, no Brasil essas fatias eram de 2% e 13% em 2021. Enquanto isso, a agropecuária representa 20% das exportações do Brasil, mas só 3% do comércio internacional global. Na indústria extrativa, essas fatias são de 29% (Brasil) e 7% (mundo). "O comércio mundial é estável e dominado por alta e média-alta tecnologia, que representam entre 50% e 55% do comércio global. São setores em que o Brasil não está", diz Morceiro. "Quem defende a indústria não defende por ter um fetiche pela indústria, mas por que 86% do comércio mundial é indústria de transformação e mais da metade é indústria tecnológica." O economista acrescenta que, nos países com nível de renda mais avançada – EUA, Coreia, Japão, por exemplo – dois terços da pauta de exportação é composta por produtos da indústria de alta e média-alta tecnologia. "Não existe caso de país grande e populoso que conseguiu sair da renda média sem uma parcela expressiva no comércio mundial em produtos de transformação. O que permitiu que esses países saltassem da renda média foi aumentar expressivamente sua participação no comércio internacional em produtos industriais." A parcela do Brasil nas exportações mundiais da agropecuária passou de 2,9% em 2000 para 8,7% em 2021. Na indústria extrativa, o salto foi de mais de cinco vezes, de 0,8% para 4,6%. Um avanço impressionante, certo? Mas tudo toma outra perspectiva quando levamos em conta o tamanho desses mercados no mundo. Por exemplo, como o agronegócio representa só 3% do comércio mundial, a fatia de 8,7% do Brasil nesse mercado é equivalente a 0,26% de todo o comércio global. "Se a gente mais do que dobrar nossa participação nas exportações agrícolas, e chegar a 20% de participação nesse mercado, ainda teremos somente 0,6% de todo o comércio global", exemplifica Morceiro. Enquanto isso, se o Brasil aumentar em apenas 1 ponto percentual sua participação nas exportações mundiais da indústria de transformação, do atual 0,8% para 1,8%, isso representaria 1,5% de todo o comércio mundial. "É muito melhor a gente ter 2%, 3% do comércio mundial de produtos industriais, porque este é um mercado muito grande, do que ter 10%, 15% do mercado de produtos agrícolas", observa Morceiro. "Se a gente tivesse metade do comércio mundial de produtos agrícolas – o que não vai acontecer – teríamos 1,5% do comércio mundial. Conseguimos ter esse mesmo efeito aumentando em apenas 1 ponto nossa participação em produtos industriais."
2023-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxr0vlvqdgqo
brasil
Esquema na Espanha extorque brasileiros prometendo tornar filhos estrelas do futebol
A polícia da Espanha afirmou que identificou duas redes distintas que supostamente aplicavam golpes sobretudo em famílias brasileiras, prometendo transformar seus filhos em jogadores de futebol de elite. As gangues são acusadas de vender "falsas expectativas" às famílias. Segundo a polícia, elas cobravam uma taxa inicial de mais de 5 mil euros (cerca de R$ 27 mil) e depois pagamentos mensais de até 1,7 mil euros (aproximadamente R$ 9 mil) por jogador. Cerca de 70 famílias foram enganadas e 11 pessoas foram presas, segundo as autoridades. As famílias eram informadas que o dinheiro seria usado para cobrir despesas, incluindo mensalidades, moradia e documentação para obter visto de residência na cidade de Granada. Fim do Matérias recomendadas No entanto, na realidade, os jogadores "viviam em casas... em condições precárias, com pouca comida, e nenhum deles conseguiu obter residência legal" na Espanha, diz um trecho do comunicado. A maioria dos jogadores era brasileiro, com idades entre 16 e 23 anos. As gangues — que operam de forma independente uma da outra — dividiam as responsabilidades internamente, segundo a polícia. Alguns membros das gangues se concentravam no recrutamento, tendo como alvo famílias ricas em seus países de origem. O segundo grupo estava envolvido em centros educacionais que falsificavam certificados de registro para que os jogadores pudessem obter vistos. Um terceiro grupo de gerenciamento supervisionava a estratégia geral. A investigação começou depois que um dos jogadores fez denúncia à polícia.
2023-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyrp45pe846o
brasil
Nova Rota da Seda: o que Brasil ganha ou perde se aderir a plano trilionário chinês
A possível aproximação do Brasil ao controverso e ambicioso plano de investimentos em infraestrutura da China conhecido como "Nova Rota da Seda" está no centro das negociações entre diplomatas brasileiros e chineses às vésperas da chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao país asiático. Fontes ouvidas pela BBC News Brasil afirmam que autoridades chinesas querem algum aceno do país à iniciativa. Diplomatas ouvidos em caráter reservado pela reportagem afirmam que o One Belt, One Road (Um Cinturão, uma Rota, em tradução livre) é um dos principais pontos ainda em discussão do comunicado. De acordo com negociadores brasileiros, embora os chineses sempre acenem com o assunto nas trocas diplomáticas, dessa vez eles exerceram um pouco mais de pressão sobre o lado brasileiro por uma adesão. O Brasil, no entanto, ainda não teria decidido se fará alguma menção ao projeto no comunicado conjunto que deverá ser divulgado ao final da visita, na sexta-feira (14/4). Fim do Matérias recomendadas Na sexta-feira, está previsto o encontro entre Lula e o presidente chinês, Xi Jinping. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Nova Rota da Seda completa dez anos em 2023, e a adesão do Brasil ao instrumento seria um ganho político considerável para Pequim. Uma decisão, segundo essas fontes, ainda aguarda a chegada a Xangai da comitiva brasileira. Uma adesão formal ao projeto neste momento, porém, estaria descartada. As discussões em torno da iniciativa chinesa, no entanto, evidenciam uma divisão pública entre uma ala liderada por diplomatas do Ministério das Relações Exteriores (MRE), incluindo o seu chefe, embaixador Mauro Vieira, e um grupo mais próximo ao presidente Lula, que inclui seu assessor especial para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim. O Itamaraty vem afirmando que o Brasil não precisaria aderir ao projeto porque o Brasil já é alvo de parte significativa dos investimentos internacionais chineses. Por sua vez, Celso Amorim e ministros como o da Agricultura, Carlos Fávaro, defendem que o Brasil pode aderir ao projeto chinês como forma de alavancar projetos de infraestrutura no país. O One Belt, One Road é um projeto trilionário lançado em 2013 pelo governo chinês que inicialmente previa uma série de projetos de infraestrutura como rodovias, ferrovias e portos, além de obras no setor energético, como oleodutos e gasodutos ligando a Ásia à Europa. Há diferentes estimativas sobre quanto dinheiro já foi investido desde seu lançamento. Os valores vão de US$ 890 bilhões (R$ 4,46 trilhões) a US$ 1 trilhão (R$ 5 trilhões). O projeto ficou conhecido como Nova Rota da Seda em alusão à antiga rota da seda, nome dado ao fluxo de comércio que funcionava no primeiro milênio e que conectava a Ásia com a Europa Central. Desde que foi lançado, o projeto chinês foi expandido para outras regiões do mundo, como África, Oceania e América Latina. De acordo com o centro de estudos americano Council on Foreign Relations (CFR), especializado em relações internacionais, 147 países já aderiram ou manifestaram interesse em aderir ao plano desde seu lançamento. Eles representam dois terços da população mundial e 40% do Produto Interno Bruto (PIB) global. Na América Latina, pelo menos 20 países já fazem parte da iniciativa, entre eles a Argentina, que, em abril de 2022, assinou um memorando de entendimento com o governo chinês prevendo a adesão. Analistas internacionais avaliam que o projeto é um dos braços do projeto de expansão do poder econômico e político da China. Atualmente, a China é a segunda maior economia do mundo e, até a pandemia de covid-19, havia estimativas que indicavam que poderia superar os Estados Unidos até 2028. Em uma aparente reação ao projeto chinês, líderes do G7 (grupo formado por Estados Unidos, Canadá, França, Reino Unido, Japão, Itália e Alemanha) divulgaram, em 2022, um plano de financiamento a projetos de infraestrutura avaliado em US$ 600 bilhões (R$ 3 trilhões). O projeto, no entanto, é alvo de outras controvérsias. Especialistas alertam, por exemplo, para o risco de superendividamento de países que contraem esses financiamentos. Em 2018, o governo do Sri Lanka transferiu o controle de um porto à China após não conseguir honrar suas dívidas com o país. A China, por outro lado, rebate as críticas afirmando que elas seriam uma tentativa de manchar sua imagem no cenário internacional. Outra crítica frequente é que os empréstimos possibilitados pelo programa dependem da intermediação de empresas chinesas para serem liberados e que, com frequência, a China envia aos países a mão de obra qualificada para as obras infraestrutura e contrata localmente apenas funcionários com salários menores. Especialistas nas relações sino-brasileiras afirmam que uma adesão ao programa teria pouco efeito prático e não resultaria em uma "enxurrada" de investimentos diretos no Brasil no curto prazo. Eles dizem que um aceno brasileiro à iniciativa teria, portanto, um resultado mais político do que econômico. Karin Vazquez, especialista em cooperação internacional e professora da Universidade Fudan, na China, avalia que uma adesão formal do Brasil poderia dar acesso a um fundo de US$ 40 bilhões (R$ 200 bilhões) em investimentos chineses. No entanto, segundo Vazquez, a desaceleração da economia chinesa vem fazendo com que as condições para esses financiamentos sejam menos atrativas do que no passado. "Tampouco vejo como uma adesão favoreceria a participação do Brasil em projetos de integração regional financiados pela China. O Brasil já é considerado em algumas dessas iniciativas, como a ferrovia bioceânica, cujos entraves à execução costumam estar mais relacionados a questões internas dos países e menos ao financiamento desses projetos", diz a professora à BBC News Brasil. Pablo Ibanez, professor de Geopolítica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador visitante da Universidade Fudan, aponta que a entrada do Brasil no projeto teria um caráter mais simbólico. Mesmo assim, ele defende a adesão. "Não vejo grandes desvantagens. A China não exige grandes contrapartidas quando financia os projetos. Acho que o Brasil deveria entrar, porque é grande parceiro da China", diz Ibanez. Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil na China, pondera que, apesar de simbólica, a adesão poderia beneficiar investimentos pleiteados por Estados brasileiros. "A adesão não faz muita diferença prática, mas passa uma mensagem aos agentes econômicos chineses que pode ajudar quando eles forem avaliar investimentos em entes subnacionais como os governos estaduais", explicou. Analistas ouvidos pela BBC News Brasil também avaliam que as desvantagens de uma eventual adesão do Brasil seriam pequenas e não necessariamente relacionadas à parceria em si. "Os problemas que vejo são relacionados às dificuldades de se implantar projetos de infraestrutura, como o impacto ambiental e como isso afeta as populações indígenas ou tradicionais”, diz Ibanez. Os especialistas ouvidos também minimizam o risco de uma eventual retaliação americana ao Brasil caso o país se associe de alguma forma ao projeto chinês. Vazquez ressalta, no entanto, que a sinalização do Brasil em relação ao assunto precisa ser bem calibrada. “Alguns atores acreditam que aderir ao projeto daria maior espaço para o Brasil barganhar com Estados Unidos e China e não ser encapsulado como membro de nenhum dos dois ‘bandos’”, afirma a professora. Mas ela diz que o argumento é questionável na medida em que dar um “sinal” de que o Brasil está alinhado com a China sem sinalizar na mesma direção e intensidade para a Aliança para a Prosperidade Econômica nas Américas, projeto lançado pelo governo de Joe Biden em 2022, pode ser entendido como favorecer um dos dois lados. “No mínimo, teria que se ter clareza do que o Brasil quer e pode ganhar com cada uma dessas iniciativas, o que, a meu ver, não existe”, diz a professora. Os Estados Unidos vivem um dos períodos mais tensos em suas relações com a China e têm sinalizado preocupação com o aprofundamento das relações entre China e Brasil. Washington vê como um ativo o fato de Brasília não ter, até agora, se comprometido a integrar o One Belt, One Road. "Para os Estados Unidos, preocupa ver o Brasil crescentemente endividado com a China, se envolvendo em um número crescente de negócios, especialmente em áreas sensíveis, como tecnologias, serviços públicos, energia, área mineral, que tragam riscos para a cooperação Estados Unidos-Brasil”, afirma Ryan Berg, diretor do programa de Américas do Center for Strategic and International Studies, em Washington. “Se Lula, como dizem os rumores, ceder ao projeto em sua viagem à China, isso também será algo grande para os Estados Unidos e visto com reservas, porque forneceria uma nova via para a influência e empréstimos chineses no país." Em meio a esse cenário, duas alas do governo Lula vêm divergindo publicamente sobre o Brasil ingressar ou não na iniciativa chinesa. Em entrevista a correspondentes de agências internacionais no Brasil na semana passada, Mauro Vieira sinalizou que o Brasil não precisaria aderir ao plano chinês neste momento. “Temos uma parceria estratégica que vai muito além do One Belt, One Road. Não é uma coisa que estejamos apressados nem de um lado e nem de outro. É uma coisa que faz parte de contatos e conversas, mas não é uma decisão premente”, disse Vieira ao ser perguntado sobre o assunto pela BBC News Brasil. Por outro lado, Celso Amorim disse em entrevista ao jornal Valor Econômico que o Brasil não teria motivos para ficar de fora da iniciativa. “Não tem razão para o Brasil não entrar. Não tenho preconceito e não vejo nenhum dano político”, afirmou o assessor especial de Lula. Outro que também defende a entrada do Brasil ao mecanismo é o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. Questionado pela BBC News Brasil, ele argumentou que a adesão do país ao projeto chinês poderia trazer investimentos considerados importantes para a logística do agronegócio brasileiro e para a integração nacional. “Eu defendo (a entrada do Brasil) porque um dos principais gargalos da competitividade do agro brasileiro é a infraestrutura logística. Frete caro é sinônimo de perda de competitividade para produtos de exportação”, afirmou o ministro. Para Pablo Ibanez, a diferença de visões entre o comando do Itamaraty e integrantes do entorno do presidente é resultado da visão de membros do PT como Lula e da ala liderada por Celso Amorim por uma preferência em fomentar relações com países fora do eixo Estados Unidos-Europa. “De um lado você tem o PT, Lula e Celso Amorim que são conhecidos por valorizarem o crescimento das relações do chamado sul global. Já o Itamaraty tem uma ala mais pragmática que acredita que isso (a adesão) pode trazer represálias dos Estados Unidos.”
2023-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c728gjrked2o
brasil
Ataque a escolas: os boatos no WhatsApp que criam pânico entre pais e alunos
Pais, professores e até crianças estão alarmados com o compartilhamento em grupos de WhatsApp de milhares de mensagens, fotos, vídeos e áudios falando de supostas ameaças de ataques a escolas que poderiam ocorrer nos próximos dias. Circulam desde listas de supostos Estados e escolas onde os ataques poderiam acontecer a datas que estariam marcadas para ataques em massa, além de perfis de supostos agressores. Esse conteúdo, que começou a surgir na última semana, tem deixado pais e mães com medo de enviar seus filhos à escola e levado crianças e adolescentes a pedir para ficar em casa. Um ponto em comum entre os diversos boatos compartilhados é a ideia de que haveria um ataque em massa em escolas em um mesmo dia. As polícias de diversos Estados e o Ministério da Justiça afirmam que estão trabalhando para combater ameaças reais que foram registradas. Só em São Paulo, a Polícia Civil diz que frustrou dezenas de possíveis atos violentos em diversos municípios em março, com apreensão de facas, máscaras e celulares. No entanto, muitas das ameaças compartilhadas em mensagens de "alerta" são falsas, dizem as secretarias de segurança de São Paulo e Espírito Santo, Estados onde ataques em escolas nos últimos anos deixaram vítimas fatais. Fim do Matérias recomendadas E o compartilhamento desse conteúdo amplia o risco de que agressões reais aconteçam. Muitos usuários espalham os boatos com a intenção de alertar amigos, colegas e parentes - algo que tanto pesquisadores dedicados ao tema quanto a polícia indicam que não deve ser feito. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Secretaria de Segurança de São Paulo (SSP-SP) afirma que todos os casos de ameaça são investigados e que as diretorias das unidades de ensino estão em alerta e em contato com a Polícia Militar. A secretaria pede ainda que o público pense duas vezes antes de compartilhar boatos não confirmados. “Da mesma forma, percebe-se que a divulgação de ameaças (muitas das quais não passam de boatos) tem seguido o mesmo comportamento. Quanto mais se noticia, mais casos surgem.” Ou seja, espalhar boatos sobre ameaças de ataques que não são reais pode ter o efeito indesejado de incentivar uma agressão verdadeira. A advogada Ana Paula Siqueira, especialista em direito digital, ressalta que as pessoas que espalham um conteúdo duvidoso também têm responsabilidade por ele. “Quem compartilha uma notícia falsa comete o mesmo crime de quem criou aquele conteúdo”, diz ela. “Se tem um vídeo com uma mentira, por exemplo, de que tem uma bomba em um estádio de futebol, e isso gerar pânico, pessoas forem pisoteadas... Quem compartilha a notícia falsa também pode ser responsabilizado por esse dano.” Consultado pela BBC News Brasil, o WhatsApp diz as mensagens são criptografadas e por isso a plataforma não acessa o conteúdo trocado pelos usuários e nem faz moderação de conteúdo. No entanto, a empresa afirma que usuários devem reportar condutas inapropriadas por meio da opção “Denunciar”, disponível no menu do aplicativo (Menu > Mais > Denunciar), ou enviando um email para [email protected]. A plataforma diz ainda que "conteúdos ilícitos também devem ser denunciados para as autoridades policiais competentes" e que coopera ativamente com as autoridades "fornecendo dados disponíveis em resposta às solicitações de autoridades públicas e em conformidade com a legislação aplicável." Embora a idolatria a atiradores aconteça de fato em comunidades de adolescentes radicalizados, pesquisadores notaram neste mês, após os ataques recentes, um aumento expressivo de novas contas e publicações que demonstram um comportamento diferente do que vinha sendo observado em anos de monitoramento daquelas comunidades. Isso leva à conclusão de que não são esses adolescentes que estão por trás do novo conteúdo. “A gente viu um aumento de posts com um perfil totalmente diferente do postado pelos adolescentes (radicalizados), posts que fogem muito da dinâmica que encontramos nesses grupos”, afirma Letícia Oliveira, editora do site El Coyote, que monitora grupos de adolescentes admiradores de autores de ataques a escolas há 11 anos. Oliveira é coautora do relatório sobre violência nas escolas entregue ao governo de transição no ano passado. Para Oliveira, os adolescentes que participam de comunidades de admiradores de agressores não estão por trás de grande parte das supostas ameaças circulando em boatos nesta semana. A pesquisadora aponta que muitas das supostas ameaças que estão sendo divulgadas em postagens alarmistas reutilizam as mesmas fotos, diversas delas retiradas de sites como Pinterest ou do buscador Google Imagens. Uma imagem muito compartilhada mostra um facão e outras armas brancas, outra exibe uma foto de um revólver. “Quando os adolescentes (radicalizados) postam imagens que não são dos atiradores e agressores, normalmente são fanarts (desenhos feitos por fãs) feitas por eles mesmos ou fotos de si mesmos, não fotos do Pinterest", afirma Oliveira. O conteúdo que surgiu com esse aumento repentino de atividade online sobre ataques nas escolas também emprega uma linguagem muito diferente da usada pelos adolescentes, com gírias e formas de falar que lembram muito mais as usadas por facções criminosas. “Normalmente, a linguagem usada nesses grupos (de adolescentes) é muito mais próxima da de um fandom (grupo de fãs) adolescente de artistas”, afirma Oliveira. “Os perfis de adolescentes que monitoramos pararam de usar certas hashtags a partir do momento em que elas se tornaram conhecidas de um público mais amplo.” Pesquisadores apontam que o prestígio dos agressores em seus grupos sociais aumenta quanto maior a divulgação obtida e o número de vítimas, mas isso não significa que eles atuem de forma conjunta ou participem de uma “competição” - como dão a entender os boatos que estão sendo compartilhados agora. “Esses adolescentes não atuam assim de forma coordenada. Se articulam nessas comunidades, mas agem individualmente ou duplas”, afirma Oliveira. Em uma entrevista coletiva na segunda-feira (10/4), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), falou que sua pasta está trabalhando para evitar qualquer ocorrência nas datas de supostos ataques citadas nos boatos. “Até la muitas pessoas vão ser presas, muitas pessoas vão ser responsabilizadas”, afirmou o ministro. “Muitos perfis serão derrubados, e tenho certeza de que Estados e municípios também estarão mobilizados. E as famílias dos estudantes também." Na segunda-feira, o ministro se encontrou com representantes de redes sociais para discutir o combate a comunidades online que incentivam ataques às escolas. O ministério divulgou depois que está preparando medidas para obrigar as plataformas a combater esse conteúdos que façam apologia à violência, mas não informou se o combate ao pânico gerado por boatos foi discutido na reunião com as redes sociais. Dino também afirmou que a pasta tem múltiplas iniciativas contra possíveis ameaças. Em nota à reportagem, o TikTok afirma que está trabalhando "agressivamente para identificar e remover conteúdo que possa causar pânico ou validar farsas, incluindo a restrição de hashtags relacionadas." "Onde encontramos ameaças iminentes de violência, trabalhamos com as autoridades policiais, de acordo com nossas políticas de relacionamento com as autoridades locais", pontua a plataforma. Ainda em nota, o TikTok diz que o "conteúdo que estimula o pânico" sobre ameaças potenciais de violências nas escolas "não tem absolutamente nenhum lugar em nossa plataforma". A Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo, um Estado onde houve um grave ataque no último ano, afirmou que acredita que as notícias que se propagaram nas redes sobre possíveis ataques em escolas locais são falsas e têm o objetivo de causar pânico. No entanto, a pasta informou que monitora os casos e usa os setores de inteligência para tentar identificar a origem dos boatos. “Não há objetivamente nenhuma ameaça ou alerta concreto no momento”, disse um porta-voz da secretaria à BBC News Brasil. “No momento em que houver, quem irá comunicar somos nós.” O órgão enfatizou também a importância da atuação das redes sociais neste momento. “Não há nenhuma razão para pânico. O que há é uma necessidade de fortalecimento das ações do governo federal e dos estaduais. Neste momento, é decisivo o comportamento das plataformas de tecnologia”, afirmou a pasta. A Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, onde ocorreu o ataque a uma creche em Blumenau, disse estar preparando um material especial sobre os cuidados e a atenção que os pais devem ter. O documento será divulgado em breve. Os boatos que circulam em grupos falam também sobre supostas ameaças feitas a universidades. Em um dos casos, a mesma foto com uma ameaça de conteúdo neonazista foi compartilhada em diversos grupos como sendo uma imagem do campus de quatro universidades diferentes. Às vezes, episódios reais de violência podem ser divulgados em grupos como tendo sido atentados, sem que haja confirmação disso. Na segunda-feira, por exemplo, uma estudante da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) foi ameaçada por uma mulher com uma faca. Alunos disseram ao jornal Tribuna Online que o episódio causou pânico entre alunos e professores. No entanto, segundo a Ufes, o caso foi um episódio isolado que não teve a ver com a universidade ou sua comunidade. Um dos boatos dizia que a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) teria cancelado as aulas, o que não é verdade. A Unicamp informou à BBC News Brasil que apura possíveis ameaças à universidade, mas diz que não houve nenhum caso concreto. Em razão disso, não suspendeu nenhuma das suas atividades.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck7z92v4898o
brasil
FMI prevê crescimento do Brasil abaixo da média mundial
A economia brasileira deverá crescer 0,9% em 2023, novamente abaixo da média mundial e da média dos países da América Latina e Caribe, segundo projeções divulgadas nesta terça-feira (11/4) pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em Washington. A projeção é menor que a do relatório anterior do FMI, de janeiro, quando se esperava crescimento de 1,2% no PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, mas é semelhante ao que prevê o mercado brasileiro. Nesta segunda-feira (10/04), o relatório Focus, do Banco Central do Brasil, feito a partir de pesquisa semanal com analistas de mercado, projetava crescimento de 0,91% para a economia brasileira em 2023. Segundo o relatório do FMI, denominado World Economic Outlook ("Perspectivas da Economia Mundial”), a média de crescimento mundial e dos países da América Latina e Caribe em 2023 será mais alta que a do Brasil, o que já havia ocorrido no ano passado. O fundo projeta que a economia mundial deverá avançar 2,8% neste ano (a projeção de janeiro era de 2,9%) e que a região da América Latina e Caribe terá crescimento de 1,6% (levemente abaixo dos 1,8% projetados em janeiro). Considerando-se apenas os países da América do Sul, a média esperada é de 1%. Fim do Matérias recomendadas No grupo de países que inclui mercados emergentes e economias em desenvolvimento, do qual o Brasil também faz parte, a média de crescimento deverá ser de 3,9% neste ano e 4,2% em 2024. A China tem projeção de avanço de 5,2% neste ano, a Índia, de 5,9%, e a Rússia, de 0,7%. Entre as economias avançadas, a projeção é de crescimento de 1,3% neste ano, e os Estados Unidos deverão avançar 1,6%. As projeções para este ano, tanto para o Brasil quanto para as médias regional e mundial, são de crescimento menor do que o registrado no ano passado, e também foram revisadas para baixo desde janeiro. Em 2022, o PIB brasileiro avançou 2,9%, enquanto o crescimento mundial foi de 3,4%. A região que engloba América Latina e Caribe cresceu 4%. Para 2024, o FMI projeta crescimento de 1,5% para o Brasil, um pouco acima do esperado pelo Boletim Focus, que projeta avanço de 1,44% no ano que vem. A economia mundial deverá crescer 3% no ano que vem, segundo o FMI, e a média da América Latina e Caribe deve avançar 2,2%. O relatório também projeta inflação de 5% neste ano no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esta edição do relatório tem o subtítulo de “Uma recuperação difícil”. Segundo os economistas do FMI, “a economia mundial volta a viver um momento de grande incerteza, com os efeitos cumulativos dos últimos três anos de choques adversos - principalmente a pandemia de covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia - manifestando-se de maneiras imprevistas”. “Estimulada pela demanda reprimida, interrupções persistentes na oferta e picos nos preços das commodities, a inflação atingiu máximas de várias décadas no ano passado em muitas economias, levando os bancos centrais a apertar agressivamente para trazê-la de volta às suas metas e manter as expectativas de inflação ancoradas”, diz o relatório. De acordo com o FMI, no início deste ano havia sinais de que a economia mundial “poderia alcançar uma aterrissagem suave, com a inflação caindo e o crescimento estável”. No entanto, isso mudou nos últimos meses, diante de inflação “persistentemente alta” em termos globais e das recentes turbulências no setor financeiro. “Embora a inflação tenha diminuído à medida que os bancos centrais aumentaram as taxas de juros e os preços dos alimentos e da energia caíram, as pressões de preços subjacentes estão se mostrando difíceis, com os mercados de trabalho apertados em várias economias”, diz o documento. O relatório menciona as vulnerabilidades do setor bancário, que ficaram evidentes recentemente, e o temor de contágio em todo o setor financeiro. Cita também outras forças que moldaram a economia mundial no ano passado e devem permanecer este ano, apesar de mudanças de intensidade. “Os níveis de dívida permanecem altos, limitando a capacidade dos formuladores de políticas fiscais de responder a novos desafios. Os preços das commodities, que subiram acentuadamente após a invasão da Ucrânia pela Rússia, diminuíram, mas a guerra continua e as tensões geopolíticas são altas”, diz o documento. Em relação à pandemia de covid-19, que teve grande impacto global nos últimos anos, o FMI diz que “as economias que foram duramente atingidas – principalmente a China – parecem estar se recuperando, diminuindo as interrupções na cadeia de suprimentos.” No entanto, segundo o relatório, “não se prevê no momento que a economia mundial retorne no médio prazo às taxas de crescimento anteriores à pandemia”.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25vy8glw18o
brasil
O que está em jogo para América Latina ao apoiar Rússia ou Ucrânia na guerra
A invasão da Ucrânia pela Rússia dividiu o mapa geopolítico do mundo. Como se fosse um jogo de xadrez, as duas forças envolvidas na guerra movem suas peças de maneira cautelosa para reunir o maior apoio possível. Nessa complexa equação, a América Latina não é exceção e despertou o interesse tanto de Moscou quanto de Kiev. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, se reuniu virtualmente com alguns dos líderes da região, incluindo o presidente do Chile, Gabriel Boric, com quem conversou em 21 de março. Os dois discutiram a possibilidade de conseguir "maior consolidação" do apoio dos países latinos a seu país. Neste esforço, o líder ucraniano falou ao Congresso chileno, naquela que foi sua primeira intervenção perante um parlamento latino-americano. Fim do Matérias recomendadas Em julho de 2022, o único encontro pessoal de Zelensky com um presidente da região foi realizado em Kiev, quando ele conheceu seu colega Alejandro Giammattei, da Guatemala. Vladimir Putin, por sua vez, continuou estreitando laços com ex-aliados, como Venezuela, Nicarágua e Cuba, além de lançar uma campanha de comunicação a seu favor através da mídia estatal com presença em diferentes países da região. Apesar desses esforços, a posição da maioria dos países latino-americanos à Rússia ou à Ucrânia tem sido ambíguo, no mínimo. Especialistas em relações internacionais descreveram essa posição como "neutra", lembrando o longo histórico de "não-alinhamento" em grandes conflitos de poder. Ainda assim, é preciso reconhecer que houve alguns sinais importantes a favor de Kiev. Em fevereiro, a maior parte da região votou a favor da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que pedia o fim das hostilidades e exigia que a Rússia "retirasse imediata, completa e incondicionalmente suas forças militares do território da Ucrânia". Até agora, no entanto, nenhum país latino-americano foi além de declarações diplomáticas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Exemplo disso é a recusa de alguns países em enviar armas para a Ucrânia, apesar das pressões dos Estados Unidos e da Alemanha. Até o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se ofereceu para substituir as armas militares dos países latino-americanos (fabricadas na Rússia) por um arsenal americano mais moderno. Mas a proposta não foi bem-sucedida. "Mesmo que elas acabem como sucata na Colômbia, não entregaremos as armas russas para serem levadas à Ucrânia para prolongar a guerra", respondeu Gustavo Petro, presidente da Colômbia. "Não estamos de nenhum lado. Somos pela paz", acrescentou. Resposta semelhante foi dada por outros presidentes, como o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e seu colega argentino Alberto Fernández, em decisão que foi interpretada por Moscou como um gesto simpático da região para seu país. Por outro lado, apesar de Zelensky ter pedido à América Latina que introduzisse sanções contra a Rússia, a grande maioria dos países não atendeu ao pedido. O que está por trás dessa suposta "neutralidade"? E o que está em jogo para os vários países latino-americanos quando se trata de apoiar a Rússia ou a Ucrânia no conflito? A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, listou 4 pontos-chave que respondem a essas perguntas. Desde o início da guerra, o relacionamento da Rússia com a China tem sido fundamental para resistir a essa pressão. Pequim absorveu grande parte das exportações russas de hidrocarbonetos, amenizando assim o impacto das sanções ocidentais na economia do país euro-asiático. Segundo o governo dos Estados Unidos, Xi Jinping considera agora a possibilidade de enviar armas e munições para a Rússia, algo que o governo chinês nega categoricamente. Ainda que Xi Jinping se esforce para se posicionar como um facilitador da paz — e não como um forte aliado de Putin —, a verdade é que seus sinais amistosos ao Kremlin colocaram o mundo em alerta, inclusive a América Latina, que atualmente mantém estreitas relações comerciais com os chineses. Só nos últimos 20 anos — entre 2000 e 2020 — o comércio entre a região e a China aumentou 26 vezes, passando de US$ 12 bilhões para US$ 310 bilhões, segundo dados das Nações Unidas. Para vários países da América do Sul — como Chile, Peru, Colômbia, Brasil e Argentina —, a China é hoje um parceiro essencial para o qual se dirige grande parte das exportações, como minerais (incluindo cobre) ou alimentos (como soja). Por isso, os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam que a amizade de Xi Jinping com Putin deve ser acompanhada de perto pelas nações latino-americanas. "Dada a influência que a China tem em termos econômicos na América Latina, e especialmente na América do Sul, eles devem levar em conta essa situação e pensar em como o apoio a um ou outro país pode afetá-los", diz Margaret Myer, diretora do Departamento de Ásia e América Latina no Centro de Estudos do Diálogo Interamericano. “Acho que é parte das razões que explicam por que o Brasil não tem criticado fortemente o que está acontecendo com a guerra na Ucrânia”, acrescenta. Para Pamela Aróstica, diretora da Rede China e América Latina: Abordagens Multidisciplinares (Redcaem), não se pode ignorar que a invasão russa à Ucrânia ocorre em um contexto de guerra comercial entre Estados Unidos e China. “É uma questão muito mais profunda", diz. "Eles estão em uma competição para saber quem será a superpotência nos próximos anos. E é por isso que é tão importante para a China ter um bloco oriental. Ela precisa de aliados do calibre de países como a Rússia e regiões inteiras como a América Latina", diz. Doutora em Ciência Política, Aróstica acrescenta: "Já passou o tempo das sutilezas, agora é muito mais frontal. Somos amigos ou não? Estão comigo ou não? É por isso que muitos países latino-americanos mantiveram uma atitude ambivalente por medo das consequências". Aróstica diz que também é preciso ter em mente a crise econômica que atinge muitos países latino-americanos e o papel da China como fonte de empréstimos. "Os países precisam avaliar a irritação da China e as implicações que isso pode ter ao querer acessar, por exemplo, um empréstimo." Visão semelhante é compartilhada por John Griffiths, chefe de Estudos de Segurança e Defesa da Fundação AthenaLab, um think tank chileno focado em assuntos internacionais, segurança e defesa. "No campo estratégico, todo país latino-americano deve considerar sua relação com a China para realizar sua política de relações exteriores. E há alguns interesses que têm feito com que várias nações da região não condenem com mais veemência a agressão da Rússia contra a Ucrânia", afirma. Embora os laços comerciais diretos entre a Rússia e a América Latina não sejam tão difundidos - representa, por exemplo, apenas 0,6% das exportações da região -, existem alguns países e setores que podem sofrer um impacto maior em caso de rompimento das relações com Moscou. Manteiga, salmão, queijo e frutas como maçã, banana e pera, que são produzidas em lugares como Paraguai, Chile, Argentina, Equador, Brasil e Colômbia, têm a Rússia como um de seus principais destinos. Em relação às importações, embora a Rússia também tenha uma baixa participação global no continente, envia alguns produtos estratégicos para a produção. É o caso dos fertilizantes, fundamentais para produtores agrícolas como Argentina e Brasil. No ano passado, de fato, Putin garantiu ao então presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) que a Rússia estava "comprometida" em garantir o "fornecimento ininterrupto" de fertilizantes. O Brasil importa mais de 80% dos fertilizantes que utiliza e a Rússia é o principal fornecedor. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a Rússia também é um "importante fornecedor de alguns insumos essenciais para a produção de conversores catalíticos e semicondutores". Portanto, a escassez pode pressionar ainda mais o setor automotivo, setor que já enfrenta restrições de insumos. Mas, para além do estritamente econômico e comercial, a verdade é que a Rússia também mantém relações políticas de longa data na região que não são fáceis de romper. Um pequeno, mas relevante grupo de países latino-americanos demonstrou simpatia direta e aberta pela posição da Rússia no conflito. A Venezuela é um deles, já que a Rússia é um pilar importante para política e questões militares do país. Cuba, Nicarágua e Bolívia também expressaram seu apoio a Putin em oposição aos Estados Unidos. Por outro lado, é importante notar que a guerra na Ucrânia coincide com a chegada de uma nova onda de presidentes de esquerda à América Latina, apoiados por coalizões que historicamente têm afinidade com a então União Soviética. Desde 2018, a presidência do México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, Chile, Colômbia é ocupada por esses líderes. Já Lula, do PT, assumiu no início deste ano após derrotar Bolsonaro. “Muitos desses países historicamente estiveram alinhados com a Rússia. Portanto, não é tão fácil para os governos dizerem que são a favor da Ucrânia”, aponta Pamela Aróstica. Já Luis Beneduzi, especialista em questões latino-americanas da Universidade Ca' Foscari de Veneza, acredita que "para muitos líderes, estar com a Ucrânia é estar com os Estados Unidos". “A história do imperialismo estadunidense é muito importante para pensar na reação desses países que hoje vivem uma mudança progressiva”, acrescenta. O caso de Gabriel Boric, no Chile, talvez seja uma posição que quebra essa regra, já que desde o início do conflito ele foi enfático em condenar Putin pela invasão. Mas, segundo especialistas consultados pela BBC News Mundo, os demais líderes têm dado fracos sinais de apoio. Lula, por exemplo, agora se oferece como mediador pela paz. No entanto, segundo analistas internacionais, sua posição pode acabar favorecendo Moscou. "As tentativas de mediação provavelmente vão favorecer a Rússia. A Ucrânia precisa lutar para libertar seus cidadãos. Moscou pode concordar com um cessar-fogo para 'congelar' a linha de frente e manter o controle dos territórios ocupados, enquanto espera ganhar força e confiança suficientes para avançar", diz Keir Giles, consultor-sênior do Programa Rússia e Eurásia da Chatam House. Assim, apesar de muitos insistirem em chamar a América Latina de "quintal" dos Estados Unidos, a verdade é que a multiplicidade de posições em relação à invasão russa da Ucrânia mostra que Moscou ainda desperta simpatia no continente. Mas não é tão fácil para a América Latina virar as costas para a Ucrânia, fortemente apoiada pelos Estados Unidos e pelo Ocidente. Existem laços comerciais, políticos e militares profundos e duradouros com esses blocos. Em termos comerciais, por exemplo, 42% das exportações totais da região (equivalente a 8,5% do PIB regional) vão para os Estados Unidos, superando até a China. Segundo a Cepal, a União Europeia atrai 9% das exportações, e somente em 2022 aumentou 26% em relação ao ano anterior. Os principais parceiros comerciais dos Estados Unidos são México, Brasil, Chile, Colômbia e Peru. O México é especialmente importante nesse cenário porque, ao compartilhar uma fronteira de mais de 3 mil quilômetros com os Estados Unidos, possui um vínculo que vai muito além das relações diplomáticas e oficiais. Eles não só são parceiros comerciais estratégicos: de acordo com o Departamento de Estado dos EUA, em 2021, o comércio de bens e serviços entre os dois países ultrapassou US$ 720 bilhões, tornando o México o segundo maior parceiro comercial dos Estados Unidos. Por outro lado, os dois países vizinhos também precisam lidar com questões complexas, como a imigração e a cooperação em matéria de segurança. Embora o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, não tenha cedido às pressões da Ucrânia para impor sanções econômicas e políticas à Rússia — e também não quis enviar armas a Kiev —, ele votou a favor da resolução da ONU que pedia à Rússia o fim da hostilidade contra a Ucrânia, em fevereiro. Desta forma, Obrador tem feito malabarismos para tentar permanecer o mais neutro possível, argumentando que seu país é pela "paz e diálogo". Por outro lado, um elemento importante que vários países latino-americanos devem levar em conta ao analisar seu apoio à Ucrânia é a forte relação do ponto de vista militar com o Ocidente. Essa é a opinião da cientista política e especialista em relações internacionais Paulina Astroza. “Há uma parte importante dos países latino-americanos que sempre vai acompanhar os Estados Unidos por uma questão de segurança. É o caso da Colômbia ou de muitos países da América Central que dependem militarmente dos Estados Unidos”, diz Astroza. Uma opinião semelhante é mantida por John Griffiths. “A Força Aérea do Chile, por exemplo, depende de sua aliança com os Estados Unidos, de sua frota de caças F16. A Marinha do Chile também é muito dependente do Ocidente, e o Exército tem uma frota blindada que é alemã. Peru, Brasil e Colômbia são mais ou menos parecidos. A Colômbia tem uma relação de décadas com os Estados Unidos, e não é porque hoje existe um governo ideologicamente de esquerda que essa relação desapareceu", diz. Os especialistas concordam que, apesar dos fortes laços que várias nações latino-americanas têm com países ocidentais, a Ucrânia e os líderes que a apoiam — como Joe Biden — ainda esperam um sinal mais claro de apoio da região. E essa pressão, acrescentam, só continuará a aumentar enquanto a guerra não acabar. Há outro elemento importante que os países latino-americanos devem avaliar ao apoiar a Rússia ou a Ucrânia: o que seus próprios cidadãos pensam sobre a guerra. Neste ponto, é fundamental ter em mente que, para muitos latino-americanos, este é um conflito distante, explica Juan Pablo Toro, membro do Royal United Service Institute (RUSI), instituição sediada no Reino Unido que reúne especialistas em defesa e segurança. "Dada a crise de segurança na América Latina, as pessoas se perguntam por que dar importância para uma guerra a milhares de quilômetros de distância se não podem sair às ruas por causa do domínio do narcotráfico. Em relação às questões de segurança, a prioridade começa pela interna", aponta. Assim, explica, há mais incentivos para adotar uma posição neutra diante do conflito. "Dizer às pessoas que o que está em jogo aqui é legalidade, soberania e um sistema internacional baseado em regras é muito difícil. Além disso, ninguém sabe o que vai acontecer e, no final das contas, apoiar a Ucrânia é se indispor com um inimigo que também é amigo de China", diz Toro, que também é diretor-executivo da AthenaLab. Por outro lado, os governos latino-americanos — muitos deles de esquerda — foram pressionados por suas próprias coalizões políticas. É o caso de Boric, que chegou ao poder pelas mãos do Partido Comunista Chileno (PC). Durante a invasão russa, em fevereiro de 2022, este partido condenou a Rússia, mas também os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) pelos seus “desejos expansionistas” que, segundo eles, “aumentaram o perigo de guerra”. Além disso, o partido se opôs ao discurso do líder ucraniano perante o parlamento chileno, criando um problema interno para Boric. "A decisão de Boric de apoiar a Ucrânia com tanta força gerou custos e intimidações de sua própria base de apoio", diz Paz Zárate, advogado chileno especializado em direito internacional público. "Boric assumiu um compromisso pessoal com os direitos humanos, independentemente do país. Talvez não sinta, como outros presidentes latino-americanos, uma identificação com os tempos soviéticos", acrescenta. Mais de um ano após a invasão russa da Ucrânia, analistas de política internacional concordam que a cada dia haverá mais pressão para que os países latino-americanos tomem uma posição definitiva sobre a guerra. Embora a neutralidade possa ser um bom aliado para muitos países da região, as grandes potências estão ansiosas para exibir seu apoio em um mundo cada vez mais polarizado e, às vezes, ao estilo da Guerra Fria.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c149zkkvp88o
brasil
O que muda no STF e no TSE com saída de Lewandowski
A aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski nesta terça-feira (11/04) mexe com a composição do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No caso do STF, o novo balanço de forças da Corte só ficará claro após a posse de um novo ministro, que precisa ser indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e aprovado pelo Senado. A expectativa é que Lula escolha um jurista progressista na agenda de costumes e de direitos humanos e garantista na área penal. Caso isso se confirme, o futuro ministro ou ministra terá um perfil parecido com o de Lewandowski, que chegou à Corte em 2006, indicado por Lula em seu primeiro mandato presidencial. No TSE, a aposentadoria do ministro provoca uma mudança imediata no balanço de forças da Corte. A tendência é que o ministro do STF Nunes Marques assuma sua posição, o que pode ter impacto sobre as ações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro que tramitam na Justiça Eleitoral. Entenda melhor a seguir o impacto da saída de Lewandowski nas duas Cortes e o que acontece no Supremo enquanto sua vaga não é preenchida, já que não há prazo para Lula e o Senado concluírem a escolha do novo nome. Fim do Matérias recomendadas O TSE é composto por sete integrantes, sendo três ministros do STF, dois ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois ministros representantes da advocacia. Há ainda ministros substitutos para cada uma dessas categorias. Todos cumprem mandatos de dois anos, renováveis por mais dois no caso dos ministros oriundos do STF e da advocacia. No caso dos ministros oriundos do STF, o rodízio é historicamente feito por antiguidade. Dessa forma, a tradição indica que o ministro Nunes Marques tomará posse como integrante titular do TSE no lugar de Lewandowski, porque no momento ele é o ministro substituto mais antigo entre os representantes do Supremo na Corte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora a nomeação seja assinada pelo presidente, é improvável que Lula rompa a tradição, algo sem precedentes. Há expectativa de que o novo integrante titular seja mais favorável a Bolsonaro do que seria seu antecessor. Nunes Marques foi nomeado ministro do STF no final de 2020 por indicação de Bolsonaro e, em geral, vota alinhado com interesses do bolsonarismo. Isso ocorreu, por exemplo, quando se posicionou contra a proibição de aglomeração em cultos religiosos durante a pandemia, ou quando interrompeu julgamento para suspender decretos do ex-presidente sobre acesso a armas com um pedido de vista. Ele foi também o único ministro a votar pela absolvição do ex-deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), aliado de Bolsonaro que foi condenado no ano passado a ​oito anos e ​nove meses de prisão por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo (uso de violência ou grave ameaça para tentar interferir no processo). Apesar desse histórico, a advogada Vânia Aieta, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em direito eleitoral, não considera garantido que Nunes Marques votará a favor de Bolsonaro nessas ações. Na sua avaliação, o alinhamento do ministro com o bolsonarismo foi circunstancial e tende a se reduzir. “Há muito um casuísmo momentâneo nos candidatos para conseguir ser indicado (ao STF). Eu acredito que, com o fim do governo Bolsonaro, essa adesão toda do Nunes Marques tende a se mitigar”, disse. Por outro lado, mesmo que ele vote em favor de Bolsonaro, sua posição pode ser insuficiente para evitar uma condenação, caso fique isolado na Corte. Para a professora, há “ações perigosas”, em que o ex-presidente corre risco considerável de ficar inelegível. O caso mais adiantado é uma ação movida pelo PDT argumentando que Bolsonaro cometeu abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação ao realizar uma reunião com embaixadores em julho de 2022 para questionar o sistema eleitoral brasileiro, sem apresentar provas de ilegalidades. Em fevereiro, o TSE decidiu por unanimidade validar como elemento de prova nesse processo a "minuta de golpe" encontrada na residência do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres. Essa minuta trazia um possível decreto para estabelecer um Estado de Defesa a fim de mudar o resultado da eleição de 2022, vencida por Lula. A defesa do ex-presidente tentou, sem sucesso, questionar a competência do TSE para julgar o caso, argumentando que o evento com os embaixadores não teve caráter eleitoral. A ação, agora, está prestes a ser liberada para julgamento, faltando apenas as alegações finais do Ministério Público, que devem ser apresentadas no máximo nesta semana. Depois, caberá ao presidente do TSE, Alexandre de Moraes, marcar o julgamento. Outras ações tramitando na Corte abordam se houve ilegalidade na suposta liberação por Bolsonaro de recursos públicos para beneficiar-se eleitoralmente, como a antecipação dos repasses do Auxílio Brasil e do Auxílio-Gás durante o 2º turno; a inclusão de 500 mil famílias no programa Auxílio-Brasil em outubro de 2022; e antecipação de pagamento de benefício para caminhoneiros. Quando ainda era presidente, Bolsonaro negou que o apelidado "pacote de bondades" tivesse viés eleitoral e argumentou que as medidas se justificavam pela situação de "emergência" do país, após a pandemia de covid-19. Seguindo o exemplo do STF, o TSE recentemente adotou prazo para pedidos de vista, o que reduz a possibilidade de Nunes Marques ou qualquer outro ministro travar o julgamento dessas ações. No caso da corte eleitoral, o limite para o ministro analisar melhor o caso passou a ser de 30 dias. A escolha de Lula para substituir Lewandowski não deve ocorrer antes do retorno de sua viagem à China e aos Emirados Árabes Unidos – ele embarca nesta terça e retorna no início da próxima semana. O presidente não tem prazo para anunciar o escolhido, que só tomará posse após ter o nome aprovado no Senado. Há mais de um século que os senadores não rejeitam indicações para a Corte. Ainda assim, a tendência é que Lula avalie a receptividade do escolhido entre senadores, antes de definir o nome, ressalta a professora de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza. A expectativa é que o presidente buscará um jurista garantista, ou seja, que valorize as garantias previstas na Constituição para a defesa dos acusados. Caso a escolha de um garantista se confirme, o novo ministro terá perfil semelhante ao de Lewandowski. O ministro aposentado adotou uma postura crítica à Lava Jato mais cedo que o restante da Corte e também liderou posições mais garantistas no julgamento do escândalo do Mensalão, quando foi o ministro revisor da ação e atuou em contraponto ao ministro relator do caso, Joaquim Barbosa. A professora Estefânia Barboza ressalta que a mudança de um ministro não deveria ter um impacto relevante na Corte, já que a permanência dos outros dez tende a dar estabilidade ao Tribunal. Ela ressalta, porém, que no Brasil a atuação individual de ministros tem um peso importante. "O mais preocupante do ponto de vista do Supremo é que tem muitas decisões monocráticas, individuais. Então, o impacto de um ministro é grande. Ainda que (as decisões individuais) sejam provisórias, dá pra fazer uma bagunça um ministro sozinho no Supremo”, ressalta. Por enquanto, quem aparece com mais força na disputa pela vaga é o advogado Cristiano Zanin, que defendeu Lula nos casos da Lava Jato. E, justamente por essa ligação pessoal com o petista, seu nome sofre resistência em setores da sociedade. Apesar disso, o presidente afirmou em março que Zanin seria merecedor de uma indicação ao STF, ao ser questionado durante entrevista à rádio BandNews FM. “Todo mundo compreenderia que ele (Zanin) merecia”, respondeu na ocasião. “Não quero escolher um juiz para mim. O juiz é para nação. Nunca pedi nenhum favor a nenhum ministro. Não foi indicado para me fazer favor, para me proteger. Os ministros foram indicados para cumprir a Constituição e garantir o processo democrático deste país”, disse ainda na entrevista. Seja quem for o escolhido, o substituto de Lewandowski vai integrar também a Segunda Turma do Supremo, colegiado que julga casos da Lava Jato. Os outros quatro integrantes são André Mendonça, Gilmar Mendes, Edson Fachin e Nunes Marques. Se o nomeado for Zanin, ele não poderá julgar casos em que atuou como advogado, mas não fica automaticamente impedido de atuar em outros processos da operação. O novo ministro também vai herdar a relatoria de todos os processos do gabinete de Lewandowski, entre eles o caso do advogado Rodrigo Tacla Duran, que acusa o ex-juiz Sergio Moro, hoje senador, de extorsão durante as investigações da Lava-Jato. O processo de substituição de ministros no STF pode levar de semanas a meses. No caso de Edson Fachin, que entrou na vaga de Joaquim Barbosa, a demora da então presidente Dilma Rousseff em definir a indicação deixou a vaga aberta por quase um ano. Quando a Corte atua desfalcada, com apenas dez ministros, o gabinete vago deixa de receber novos processos, sobrecarregando os demais. Além disso, é comum que o presidente da Corte, atualmente a ministra Rosa Weber, evite pautar ações de maior repercussão ou controvérsia até que o colegiado esteja completo de novo, devido ao risco de um empate. Quando ocorre empate nas ações que não são de natureza criminal, “o encaminhamento a ser dado a cada julgamento deve ser definido caso a caso”, explicou à reportagem a assessoria do STF. Nas ações penais, tradicionalmente prevalece o princípio do “in dubio pro reo” (na dúvida, prevalece a presunção da inocência do acusado). No entanto, uma questão levantada por Fachin, com previsão de julgamento nesta quarta (12/04), pode mudar isso nos julgamentos das Turmas, colegiados responsáveis pela maioria dos processos criminais da Corte. Relator da maioria dos casos da Lava Jato no STF, Fachin defende que, em caso de empate, a ação penal fique suspensa até que possa ser tomado o voto de desempate. Ou, caso não seja possível esperar, que um ministro da outra turma seja convocado a decidir. A sugestão foi proposta em 2020, quando o então ministro Celso de Mello estava de licença médica e muitos julgamentos da Segunda Turma terminavam empatados. Outra questão relevante quando há desfalque na Corte é que os processos do gabinete vago tendem a ficar parados até que o novo integrante tome posse. Mas, caso haja ações consideradas muito relevantes e urgentes, a presidência do STF pode determinar a redistribuição dos processos para outros ministros, por meio de sorteio. Quando Teori Zavascki faleceu em 2017 em um acidente de avião, por exemplo, a então presidente Cármen Lúcia determinou o sorteio das ações da Lava Jato, que eram relatadas por ele. Os casos foram para relatoria do ministro Fachin.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2q4q0yz7vo
brasil
Brasileiros se preocupam mais com pobreza do que com mudanças climáticas, mostra pesquisa
Os brasileiros se preocupam mais com pobreza e desigualdade social, crime e violência e corrupção do que com inflação, mudanças climáticas, conflito militar entre nações e covid-19. Essa é a conclusão de uma pesquisa online global realizada pelo Instituto Ipsos em 29 países entre fevereiro e março deste ano. Segundo a sondagem, que ouviu 24.516 pessoas entre 16 a 74 anos no total, das quais 1 mil no Brasil, a pobreza e a desigualdade social formam o tema apontado como mais problemático pelos brasileiros — citado por 41% dos entrevistados, contra 31% da média mundial. A pesquisa tem margem de erro de 3,5 pontos porcentuais para mais ou para menos. Além do Brasil, Bélgica, Holanda e Japão consideram a pobreza e desigualdade como sua maior fonte de preocupação. Nesse quesito, os mais preocupados com pobreza e desigualdade social são os tailandeses (43%) e os menos preocupados, os americanos (18%). Fim do Matérias recomendadas "Pobreza e desigualdade social foi a agenda da eleição", lembra Helio Gastaldi, diretor de pesquisas de opinião pública e reputação corporativa na Ipsos Brasil. "A pandemia de covid-19 afetou de forma drástica todos os países do mundo, mas mais notadamente aqueles com maior desigualdade social e com maior proporção da população economicamente ativa atuando na informalidade". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O Brasil perdeu muitas vagas de emprego, e a população que vivia na informalidade, com todas as suas dificuldades que ela traz, encarou um período muito desafiador. Quando a situação começou a se normalizar, passamos a viver um período de inflação alta, que acaba afetando mais fortemente os mais pobres", conclui. Já inflação lidera o ranking global — e tem sido assim nos últimos 12 meses, mas não no Brasil. Entre fevereiro e março, quatro em cada dez pessoas (42%) ouvidas pelo levantamento consideraram a alta dos preços como o mais preocupante entre todos os 18 temas pesquisados, que vão desde inflação a acesso ao crédito, passando por pobreza e desigualdade social, crime e violência, corrupção, saúde, impostos, entre outros. No Brasil, contudo, a inflação só foi apontada como preocupante por 28% dos entrevistados, portanto, abaixo da média mundial (42%). Entretanto, Gastaldi faz uma ressalva. "A inflação hoje está menos da metade do que o pico, de 11%. Naquele momento, as pessoas reportavam a inflação como preocupante, pois percebiam a escalada dos preços. Mas a população continua sentindo seus efeitos. Ela deixa de reportar a inflação como problemática, mas continua sentindo suas consequências, e passa a expressar suas opiniões de forma diferente", nota. Em relação à inflação, os argentinos foram os mais preocupados (66%), enquanto os indonésios (22%) os menos preocupados. Segundo o levantamento, em fevereiro, pela primeira vez, mais da metade dos entrevistados na Colômbia, França e Austrália considerou a subida dos preços como problemática. No mês passado, Hungria, Estados Unidos, Coreia do Sul e Itália registraram o maior nível de preocupação, mas desde então esse índice caiu, com destaque para os húngaros, com redução de nove pontos percentuais na comparação mensal. Além da pobreza e desigualdade e inflação, os brasileiros também demonstraram maior preocupação com crime e violência (36%) e corrupção política e financeira (31%) — em ambos os temas o índice nacional está acima da média global, respectivamente, 29% e 26%. Em relação ao crime e violência, os sul-africanos foram os mais preocupados (59%). Já os poloneses, os menos preocupados (3%). Sobre corrupção política e financeira, a África do Sul também liderou o ranking (55%). Na outra ponta, aparece Cingapura (3%). No caso do desemprego, o Brasil está em linha com a média global. Dos entrevistados, 28% afirmaram que a falta de trabalho é preocupante, patamar similar ao restante do mundo. Nesse quesito, os sul-africanos foram os que mais demonstraram preocupação com a falta de trabalho (67%). Na outra ponta, estão os holandeses — o desemprego foi citado apenas por 7% dos entrevistados. Além da inflação, os brasileiros também se disseram menos preocupados com mudanças climáticas (9%), conflito militar entre nações (2%) e covid-19 (5%). Em todos esses tópicos, o índice nacional é inferior às médias globais de 15%, 10% e 6%, respectivamente. Questionado sobre a menor preocupação do brasileiro com as mudanças climáticas, Gastaldi diz que o tema continua influenciado pelo nível socioeconômico e saiu do radar do governo anterior, de Jair Bolsonaro (PL). "Há dois fatores para isso. O primeiro tem a ver com a classe. A percepção desse problema é muito mais presente na classe média do que na população mais pobre, que enxerga dificuldades muito mais urgentes", diz. "Em segundo, esse tema entra diretamente na agenda de comunicação do governo anterior, do grupo político que governou o Brasil nesse período. Houve muitas informações desencontradas em vários assuntos, especialmente em relação ao meio ambiente. Isso deixou parte da população num estado de indiferença por não compreender não só a gravidade do tema, mas não ter mais clareza sobre a pertinência dele", acrescenta. No mês passado, pela primeira vez desde que a pesquisa começou a ser feita, em 2010, mais da metade dos entrevistados brasileiros disse considerar que o país estava no rumo certo (56%). Esse porcentual variou ligeiramente para baixo em março (55%), o que, segundo Gastaldi, indica "uma oscilação dentro da margem de erro, mas claramente um ponto de arrefecimento nesse crescimento". Ele disse acreditar que o índice continue positivo, mas que não deve subir nos próximos meses. Em sua leitura, isso tem a ver com o otimismo em relação ao novo governo, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas já dá sinais de que está cedendo após 100 dias do início do mandato. "Já tínhamos uma perspectiva de melhora desde o ano passado. Chegou a 35% em novembro e para 40% em dezembro. Havia uma expectativa de mudança quanto ao novo governo. Em janeiro, chegou a 48%. E, em fevereiro, 56%". "Parece que a população também está fazendo um balanço de que o governo está com dificuldade de cumprir tudo o que prometeu, embora o voto de confiança continue. O cenário é positivo e traz alento, mas a percepção é de que não houve grandes mudanças. Não parece um grande entusiasmo de que o governo entregou o que a população queria nesses 100 dias", nota Gastaldi. O índice brasileiro, no entanto, é bem superior à média global. No mundo, apenas 38% consideram que seus países estão no caminho certo, e 62%, no caminho errado. Nessa categoria, os mais otimistas são os indonésios — 83% acreditam que seu país está no caminho certo. Já os argentinos são os mais pessimistas, com apenas 13% compartilhando uma visão positiva sobre o futuro do país. A sondagem também verificou a opinião dos entrevistados quanto à situação econômica atual de seus países. Entre os brasileiros, 32% avaliaram como "boa" e 68% "ruim", um pouco abaixo da média mundial de 33% e 67%, respectivamente. A melhor avaliação positiva veio de Cingapura, com 77% considerando como "boa" a situação econômica de seu país. Na outra ponta, estão os japoneses e os argentinos — em ambos os países, 91% dos entrevistados descreveram-na como "ruim".
2023-04-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crge0vk7z10o
brasil
Por que 'Bolsonaro do Paraguai' tem dificuldade para crescer na disputa pela Presidência
O vídeo no Instagram mostra a imagem de um senador paraguaio arremessando água no rosto de um colega no meio de uma sessão da chamada Cámara Alta, o Senado do país. No fundo toca a música Rockstar, do fenômeno do trap argentino Duki: "¿Qué quién me creo que soy? / El mejor al menos en estos días / Cada liga tiene su Jordan" ("Quem acho que sou? / O melhor, pelo menos nesses dias / Cada liga tem seu [Michael] Jordan", em tradução literal). É assim que Paraguayo Cubas - ou Payo Cubas, como é conhecido -, de 61 anos, apresenta-se como candidato na disputa pela Presidência do Paraguai. A eleição acontece no próximo dia 30 de abril. Político veterano, Cubas se apresenta como candidato antissistema, rejeita as instituições tradicionais da política, tem um discurso centrado na intolerância, uma retórica de combate à corrupção e se comunica com seus eleitores principalmente por meio das redes sociais. Fim do Matérias recomendadas Características como essas o aproximam de figuras como o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro - mas ele possui uma série de particularidades, pontua Andrei Roman, do instituto de pesquisas Atlas Intel. "Existe uma certa ambiguidade em seu posicionamento político. Assim como, historicamente, o populismo latino-americano se vestiu de diversas formas, ele também tem essa tradição de ambiguidade do populismo do nosso continente", avalia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar de ter um discurso mais alinhado com a direita, o ex-senador já falou em legalizar a maconha no Paraguai e defendeu a reforma agrária, ainda que em uma versão bastante "desconexa e heterogênea", na definição de Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). "Ele também não tem um vínculo com os militares, uma diferença central em relação a Bolsonaro. As Forças Armadas no Paraguai, aliás, têm um vínculo enorme com os colorados", diz ele, referindo-se ao Partido Colorado, que há anos governa o país de forma quase ininterrupta. O ditador Alfredo Stroessner, no poder entre 1954 e 1989, era filiado ao partido. Ao lado do Partido Liberal, o Colorado (conhecido também pela sigla ANR, de Asociación Nacional Republicana) está há mais de um século no centro da política paraguaia. E esta é, de certa forma, uma particularidade do país. Ao contrário do que acontece no Brasil - e em vários dos países da América do Sul -, no Paraguai há uma identificação forte da população com partidos políticos. Os filiados aos dois partidos, segundo ele, somam cerca de 75% dos quase 5 milhões de eleitores do país. "Quando você faz 16, 17 anos, a família inscreve no seu partido. É uma filiação afetiva." Não por acaso, os dois candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto são das duas legendas. Santiago Peña concorre pelo Colorado e Efraín Alegre, pelo Liberal. Cubas aparece com 14,5% no mais recente levantamento do Atlas, de 5 de abril, em terceiro lugar. Um desempenho que, na avaliação de cientistas políticos ouvidos pela reportagem, de um lado reflete as particularidades da estrutura político-partidária do Paraguai e, de outro, pode ser sintoma de crise no sistema político e da influência cada vez maior das redes sociais na comunicação e articulação política. Um cenário acompanhado de perto por observadores brasileiros, dada a importância crescente da relação entre os dois vizinhos. O próximo presidente paraguaio terá de lidar com a renegociação do acordo da hidrelétrica de Itaipu com o Brasil e com os problemas trazidos pela atuação de grupos brasileiros do crime organizado no país. "Ainda que jogue sozinho, Payo Cubas não é um outsider na política", diz o cientista político Marcos Pérez Talia, referindo-se ao currículo do candidato. Cubas foi deputado entre 1993 e 1998 e desde então se candidatou a diversos cargos políticos, de prefeito (intendente) de Ciudad del Este a governador do departamento de Alto Paraná - até conseguir se eleger senador em 2017 pelo recém-criado Movimento Cruzada Nacional (hoje Partido Cruzada Nacional). A essa altura, já era uma figura polêmica. Em 2016, fora detido depois de pichar a sede da promotoria de Justiça em Ciudad del Este em uma manifestação contra a corrupção e chegou a defecar na sala do juiz encarregado do caso em uma audiência. Nos meses seguintes, empreendeu o que chamou de “rallys de grafite”, em que pichava os muros das casas de autoridades supostamente envolvidas em corrupção. Uma vez eleito, não abandonou o estilo. Com frequência tirava o cinto da calça para batê-lo no chão como um chicote ou empunhá-lo como símbolo de uma suposta luta contra corruptos e bandidos. Ele também agredia verbalmente os colegas no Congresso. "No Senado, ele tentou fazer alguns acordos, mas logo quebrou com todo mundo, numa lógica absolutamente conflitiva", diz Pedro Feliú Ribeiro, do Instituto de Relações Internacionais da USP. "Ele não quis ou não soube construir pontes no Senado e, depois de algumas escaramuças, foi expulso do Congresso e perdeu o mandato", acrescenta Talia. Apesar de isolado politicamente e de não ter efetivamente um programa de governo, Cubas aparece em terceiro lugar na pesquisa da Atlas, com 14,5% da preferência dos eleitores. Essa parcela, segundo Roman, concentra homens jovens e com renda abaixo da média, público que se demonstra mais receptivo à retórica do candidato - um "discurso improvisado", mas que muitas vezes acaba entrando "em sintonia com um desejo de mudança entre setores da sociedade que se sentem marginalizados, que sentem que o sistema político no país favorece os segmentos mais privilegiados". Dentro do universo de insatisfeitos que o candidato parece aglutinar, o cientista político Marcos Pérez Talia destaca dois grupos: aqueles decepcionados com as legendas nas quais tradicionalmente votavam e os desencantados com a política. Ainda que a identificação com os partidos políticos permaneça como um traço da sociedade paraguaia, há um descontentamento crescente em relação à política tradicional, sentimento que é alimentado por denúncias de corrupção em diversas esferas da política, inclusive no alto escalão do governo. O atual presidente, Mario Abdo Benítez, que é do Partido Colorado, tem um nível de rejeição alto e quase sofreu impeachment em 2021. Seu antecessor e correligionário, Horácio Cartes, foi colocado em uma lista de corruptos elaborada pelo governo americano e virou réu em um dos desdobramentos da Operação Lava Jato no Brasil por suspeita de ter ajudado na fuga do doleiro Darío Messer. "Segundo a pesquisa da Atlas, o Partido Colorado tem por volta de 36% [das intenções de voto], quando em 2013 e 2018 superou 45%. Com a feroz crise interna e externa da qual padece a sigla, Payo Cubas também pode estar capitalizando o descontente colorado que não quer votar em Santiago Peña", diz Talia. Em outra frente, acrescenta, ele "também pode estar ativando melhor o eleitorado antissistema e o voto de protesto". "Nas últimas eleições gerais, em 2018, apenas 62% dos eleitores compareceram às urnas. Talvez [sua intenção de voto] se alimente daí", conclui. "Há um enorme descontentamento social", comenta. Alijado da estrutura político-partidária, Payo Cubas usa as redes sociais como instrumento preferencial para se comunicar com seu eleitorado. "Por uma questão de radicalismo, por ter chegado em situações muito extremas em alguns casos, com instalação de discursos de ódio, ataque político, nos últimos tempos ele foi marginalizado do debate público midiático e acabou encontrando uma via bastante livre nas redes sociais", diz Leonardo Gómez Berniga, advogado e membro da Tedic, organização dedicada a defender e promover direitos humanos nos meios digitais. Ele acrescenta que o discurso mais radical, os conteúdos que despertam polarização, os ataques de ódio e as informações tendenciosas - que por uma série de razões acabam gerando engajamento e tendo grande alcance nas redes sociais - têm estado mais presente nas plataformas de diversos candidatos paraguaios, mas particularmente de Cubas. E, ainda que o acesso à internet seja limitado no país, que tem uma grande parcela da população entre pobres e vulneráveis, redes como WhatsApp e Facebook acabam tendo uma grande penetração porque têm muitas vezes o uso gratuito dentro dos pacotes de dados vendidos pelas operadoras de celular. Nesse contexto, para Berniga, há hoje uma lacuna da legislação eleitoral paraguaia em relação às redes sociais e uma grande necessidade de discussão sobre gastos de políticos nas plataformas, mecanismos de controle e de transparência. Ainda que Cubas, segundo indicam as pesquisas, possa estar capitalizando parte da insatisfação do eleitorado, seu desempenho ainda é muito modesto quando comparado aos líderes Santiago Peña e Efraín Alegre, que têm 36,4% e 38,1% das intenções de voto, respectivamente, conforme o levantamento do Atlas Intel, empatados dentro da margem de erro que é de dois pontos percentuais. Uma das razões colocadas pelos especialistas é o fenômeno da identificação partidária, que é muito forte no Paraguai. E a maneira como o Partido Colorado se estruturou e cresceu com o passar das décadas, aglutinando grupos de diferentes matizes ideológicas, contribui para a manutenção, em alguma medida, dessa identificação, afirma Andrei Roman. Um exemplo ilustrativo, ele diz, aconteceu durante as eleições primárias da sigla, quando os políticos que postularam a vaga de candidato à presidência pelo partido tentaram se posicionar como alternativas de mudança ao atual presidente, Mario Abdo Benítez. Santiago Peña é aliado de Horacio Cartes, que, apesar de ser correligionário de Benítez, se tornou uma espécie de desafeto político do atual presidente. "Existe um discurso de renovação política por dentro do Partido Colorado." "Mesmo que isso tenha certos limites no quanto você consegue articular um discurso de mudança sendo do mesmo partido que o atual mandatário", ressalva. Outro fator relevante que limita o potencial de crescimento do candidato, e que pode reduzir significativamente seus votos nas urnas no dia 30, é o fato de que não há segundo turno na disputa para presidente no Paraguai - quem tem o maior número de votos vence o pleito, independentemente do percentual. Nesse contexto, o voto útil pode mudar muito o retrato trazido pelas pesquisas no decorrer da disputa. Caso os eleitores descontentes com o Partido Colorado, que governa o país, acreditem que o opositor Efraín Alegre tem chances reais de derrotá-lo, por exemplo, podem migrar seus votos para o candidato, ainda que não tivessem preferência por ele inicialmente. Na visão de Lachi, é muito difícil quebrar a hegemonia dos dois principais partidos do país - o que torna as chances de qualquer candidato fora desse eixo ganhar as eleições algo muito pouco provável. Talia concorda. Ele afirma que os partidos tradicionais paraguaios não estão em crise como outras siglas na região e ainda têm um enraizamento forte no eleitorado. "Por isso, uma candidatura fora das organizações partidárias, como a de Payo, não tem chance de competir com sucesso diante das de Santiago Peña e Efraín Alegre."
2023-04-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxep3nrj0m4o
brasil
O que é a Unasul, que Lula quer 'reconstruir'
No discurso de abertura da reunião com os representantes dos países da América do Sul nesta terça-feira (30/5) em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) falou em "voltar a olhar coletivamente para a nossa região". "Entendemos que a integração sul-americana é essencial para o fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe. Uma América do Sul forte, confiante e politicamente organizada amplia as possibilidades de afirmar, no plano internacional, uma verdadeira identidade latino-americana e caribenha", afirmou ele. Lula também lembrou da criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) em 2008 e disse que o órgão "permitiu que nos conhecêssemos melhor". Após criticar a postura diplomática brasileira em anos mais recentes, afirmando que o país "optou pelo isolamento do mundo e do seu entorno", o presidente falou em "reavivar o compromisso com a integração sul-americana". "A Unasul é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor. Sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção", disse Lula. Fim do Matérias recomendadas O governo federal já havia anunciado em 7 de abril o retorno do Brasil à Unasul. Na prática, Lula reverteu uma decisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que em 2019, retirou o Brasil, oficialmente, da instituição. Mas, afinal, o que é a Unasul e o que ela representa para a região? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A criação de um grupo que reunisse países da América do Sul começou a ser debatida em 2004, quando Lula estava em seu primeiro mandato. A Unasul só foi estabelecida, porém, quatro anos mais tarde, em 2008. O grupo foi inicialmente formado por doze países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Sua sede fica em Quito, no Equador. De acordo com o seu tratado de criação, a Unasul tem como objetivos criar um espaço de "integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político" entre seus países-membros e "com com vistas a eliminar a desigualdade socioeconômica" existente na região. A presidência do grupo é exercida por nomes indicados por seus países-membros em mandatos de um ano e trocados de forma rotativa seguindo a ordem alfabética dos nomes dos países. Entre as atribuições do grupo está a realização de reuniões entre chefes-de-Estado para debater questões que possam afetar a estabilidade da região e criar mecanismos que aumentem a integração econômica, financeira, política e social dos países-membros. Críticos, no entanto, argumentam que a Unasul tinha pouca efetividade e suas funções seriam pouco concretas e que alguns dos temas debatidos pelo grupo poderiam ser discutidos em outros fóruns já existentes. Nos últimos anos, diversos países suspenderam suas participações na Unasul ou deixaram a instituição. Até o anúncio do retorno do Brasil, a Unasul contava com apenas cinco dos 12 integrantes originais: Bolívia, Guiana, Suriname, Venezuela e Peru, que está suspenso. Em 2017, o grupo viveu um impasse depois que a Venezuela, com apoio da Bolívia, vetou o nome indicado pela Argentina para assumir a secretaria-geral da Unasul, paralisando, em parte, as atividades do organismo. Em meio à controvérsia, Brasil, Peru, Paraguai, Colômbia e Chile anunciaram a suspensão de suas participações na Unasul em meio a disputas sobre os rumos da instituição, em abril de 2018. O esvaziamento da Unasul aconteceu no mesmo momento em que houve uma mudança no perfil dos líderes de alguns dos países que compõem o grupo. À época em que foi criado, parte significativa dos países que compunham o órgão era comandada por políticos de esquerda ou centro-esquerda como Lula (Brasil), Michelle Bachellet (Chile), Hugo Chávez (Venezuela), Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). A partir de segunda metade da década do século 20, líderes de centro-esquerda foram substituídos por políticos de direita ou centro-direita. Foi o caso, por exemplo, de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro, no Brasil, Maurício Macri, na Argentina e Sebastian Piñera, no Chile, em 2018. Em 2019, foi a vez do Equador se retirar do grupo. A situação ficou ainda mais sensível depois que o então presidente do país, Lenín Moreno, pediu a devolução do prédio onde funcionava a sede da Unasul e anunciou que não faria mais nenhuma contribuição financeira à instituição. Moreno era um político de centro-esquerda, mas era adversário político de seu antecessor, Rafael Correa, um dos fundadores da Unasul. A saída oficial do Brasil da Unasul aconteceu em 2019, durante o governo do então presidente Jair Bolsonaro. Ele retirou o país do grupo e endossou a adesão do Brasil a um outro organismo, o Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul). Ainda não está claro se, sob o governo Lula, o Brasil continuará a fazer parte do Prosul ou não. O retorno do Brasil à Unasul segue a mesma linha da política externa dos dois primeiros governos do presidente Lula. Nas últimas décadas, o petista frequentemente defendeu uma maior integração dos países sul-americanos como uma forma de trazer uma suposta autonomia da região em áreas como a economia, infraestrutura e estabilidade política. Em seu discurso de posse no Congresso Nacional, em janeiro deste ano, Lula já havia dado indicações de que o Brasil poderia retornar à Unasul. "Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana, a partir do Mercosul, da revitalização da Unasul e demais instâncias de articulação soberana da região", disse. Durante seus dois primeiros mandatos, por exemplo, o Brasil e outros países da região lançaram projetos para intensificar a criação de projetos de infraestrutura na região como a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IRSAA). No artigo "Autonomia, integração regional e política externa brasileira: Mercosul e Unasul", publicado em 2014, os professores e pesquisadores de Relações Internacionais Tullo Vigenani e Haroldo Ramanzini Júnior argumentam que o empenho do Brasil na formação da Unasul teria como um dos focos a criação de uma "polaridade sul-americana" que seja autônoma em relação a potências como os Estados Unidos. "O forte interesse brasileiro na formação da Unasul indica uma nova forma de compreender o que seja autonomia na política externa. No período 1986-1999 prevalecia a ideia de que a integração alavancaria a projeção conjunta, no mundo, da Argentina e do Brasil. Hoje, anos 2010, alguns objetivos estratégicos do país conectam-se com a cooperação na América do Sul, entre eles o de uma polaridade sul-americana, não subalterna, autônoma mas não antagônica aos países centrais, particularmente aos Estados Unidos", escreveram os pesquisadores. Os críticos da política externa do petista, no entanto, argumentam que a política externa do Brasil na época era marcada por um forte viés ideológico, uma vez que parte dos países da região eram comandados por líderes de esquerda. "Libertaremos o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos. O Brasil deixará de estar apartado das nações mais desenvolvidas", disse Bolsonaro em um dos seus pronunciamentos logo após sua vitória no segundo turno das eleições de 2018. Além disso, há críticas sobre uma agenda marcada pela criação de fóruns multilaterais em um momento em que diversos países do mundo tentam dinamizar a integração regional a partir de acordos bilaterais. A política externa de Bolsonaro, no entanto, também foi criticada justamente pelo seu suposto componente ideológico. Durante sua gestão, o presidente mostrou um alinhamento forte com os Estados Unidos enquanto o país era comandado pelo republicano Donald Trump, além de demonstrar e receber apoio de líderes de direita europeus como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbn. A expectativa nos meios diplomáticos, agora, é de que a eleição de novas lideranças alinhadas à centro-esquerda em países como o Brasil, Colômbia (com Gustavo Petro) e Chile (com Gabriel Boric) possa dar um novo impulso a iniciativas como a Unasul. Antes de o Brasil anunciar o seu retorno, a Argentina, no final de março deste ano, já havia anunciado que tomaria providências para regressar ao grupo.
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cevn775q5z8o
brasil
Em 10 anos no Brasil, chikungunya atingiu 60% das cidades e afetou mais as mulheres
Identificado pela primeira vez na Tanzânia na década de 1950, o vírus chikungunya chegou oficialmente ao Brasil a partir de 2013 — e causou o primeiro surto em meados de 2015 e 2016. Em uma década, o patógeno que também é transmitido pela picada do Aedes aegypti, assim como os seus "primos-irmãos" dengue e zika, se alastrou por 6 em cada 10 cidades brasileiras e causou sete grandes surtos. O virologista brasileiro William M. de Souza, um dos autores principais do trabalho e pesquisador do Centro Mundial de Referência de Vírus Emergentes e Arbovírus da University of Texas Medical Branch, nos Estados Unidos, avalia que o impacto do chikungunya na saúde pública do país ficou um tanto difuso, em meio às crises de dengue e zika. "O chikungunya foi introduzido no Brasil apenas um ano antes do zika, vírus que provocou aquela emergência por causa das doenças congênitas que causa em crianças pequenas", lembra o especialista. Fim do Matérias recomendadas "E a dengue, por sua vez, sempre esteve muito associada a casos graves e mortes." Vale lembrar que a infecção pelo chikungunya tem uma fase aguda, marcada por febre, dor no corpo e fadiga. Porém, numa parcela de pacientes, a doença evolui para a forma crônica, marcada por fortes dores nas articulações, que são incapacitantes e podem se prolongar por meses. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O próprio nome do vírus e da doença, aliás, vem do maconde, uma das línguas faladas na Tanzânia, onde a primeira epidemia foi registrada no ano de 1953. Neste idioma, a palavra chikungunya remete a "contorcer-se" ou "dobrar-se", numa referência direta aos fortes incômodos que afetam as articulações e os músculos e fazem os pacientes ficarem encolhidos e prostrados. "De forma geral as pessoas têm a noção errada de que o chikungunya causa dor, mas não mata", observa Souza. Portanto, no meio de tantos surtos e epidemias por zika e dengue e uma pretensa baixa gravidade, o chikungunya passou a ser encarado como uma questão de menor importância. Mas o estudo recém-publicado mostra que a história é bem mais complexa: nesses dez anos de circulação pelo país, o vírus causou sete surtos e teve casos confirmados em praticamente 60% das cidades brasileiras. Ele também afetou mais as mulheres do que os homens — e apresentou uma taxa de mortalidade maior do que se imaginava. Para fazer a pesquisa, o grupo de cientistas reuniu dados genômicos e epidemiológicos sobre a doença. Segundo o trabalho, entre 3 de março de 2013 e 4 de junho de 2022, foram confirmados 253,5 mil casos de chikungunya no Brasil. Nesse período, aconteceram sete ondas epidêmicas. Elas atingiram o pico nos primeiros meses do ano, principalmente na época das chuvas, e se repetiram entre 2016 e 2022. Essas infecções foram confirmadas em 3.316 dos 5.570 municípios do país, ou 59,5% das cidades. E é justamente aqui que a história começa a ficar ainda mais detalhada. Os especialistas resolveram analisar a fundo o que aconteceu nos Estados mais atingidos: Ceará, Pernambuco e Tocantins. Eles conduziram uma série de análises para entender porque esses locais concentraram a maior parte dos casos. No Ceará, por exemplo, ocorreram três grandes ondas nos anos de 2016, 2017 e 2022. "Nós sabemos que o chikungunya é um vírus que só se pega uma vez. Quando a pessoa tem a infecção, ela desenvolve uma imunidade por meio de células e anticorpos que muito provavelmente impede um segundo episódio da doença", diz Souza. Isso é diferente do que ocorre na dengue, que têm quatro tipos diferentes do mesmo vírus — ou seja, uma pessoa pode ter essa enfermidade até quatro vezes ao longo da vida. O time de acadêmicos até testou a hipótese de existirem novas variantes do chikungunya com capacidade de reinfectar as pessoas — e, embora eles tenham encontrado genótipos diferentes do patógeno, eles não eram diferentes o suficiente para escapar das células de defesa e causar novos episódios da doença em indivíduos que já a tiveram no passado. Como então um Estado teria surtos repetidos num curto espaço de tempo? A resposta está na distribuição geográfica dos surtos: no caso do Ceará, os casos de 2016 e 2017 se concentraram principalmente nos municípios localizados mais ao norte. Já em 2022, a onda epidêmica aconteceu nas cidades mais ao sul. Você pode ver a diferença no mapa a seguir — quanto mais fortes as cores com as quais as cidades estão pintadas, maior a incidência de casos de chikungunya em cada local. "Anteriormente, nós achávamos que o chikungunya iria chegar num Estado, causar uma explosão de casos e desaparecer", analisa Souza. "Porém, diferentemente da dengue, que se alastra por regiões maiores, este vírus afeta bolsões menores em cada surto", complementa. Outro achado do estudo foi o de que as mulheres são mais afetadas pelo chikungunya em comparação com os homens, especialmente na vida adulta. O risco de elas testarem positivo para essa doença é significativamente maior em relação a indivíduos do sexo masculino. Souza explica que os números de casos são relativamente parecidos nos extremos de idades — entre as crianças e os mais idosos. A diferença fica aparente, como é possível observar no gráfico em inglês a seguir, entre pessoas de 20 a 70 anos. As mulheres estão representadas pela cor verde e os homens, nas colunas em azul. Em algumas faixas etárias, as mulheres chegam a responder por mais da metade das infecções por esse vírus. Existem algumas hipóteses que ajudam a entender esse fenômeno. A principal delas tem a ver com o comportamento humano. "Nós sabemos que as infecções por dengue, zika e chikungunya acontecem principalmente no ambiente doméstico", contextualiza Souza. "A configuração da sociedade em muitos lugares do Brasil ainda segue aquela lógica de o homem sair para trabalhar enquanto a mulher cuida da casa e dos filhos", responde o virologista. Ou seja: como em muitos municípios a mulher adulta permanece mais no ambiente doméstico do que o homem, ela fica naturalmente exposta por um tempo maior às picadas do Aedes aegypti que podem carregar o chikungunya e outros vírus Essa tese é corroborada por estudos feitos no exterior e também pelo fato de as crianças e os idosos de ambos os sexos terem uma incidência de casos parecida, uma vez que eles tendem a ficar um tempo similar dentro ou fora de casa. Em trabalhos anteriores, dos quais Souza também participou, o time de cientistas chegou a outra conclusão relevante: aquela história de que chikungunya não mata também não corresponde à realidade. Em todos os óbitos, a principal suspeita eram as arboviroses (doenças provocadas por uma família de vírus da qual fazem parte dengue, zika e chikungunya). Os testes encontraram o chikungunya em 68 das vítimas (ou 52,9% do total). Em muitos desses indivíduos, o patógeno chegou a provocar danos no sistema nervoso central. Isso permitiu estabelecer uma taxa de 1,8 morte a cada mil casos da infecção naquele ano de 2017 no Ceará. "São números que parecem baixos, mas, quando temos dezenas ou centenas de milhares de infecções, eles ganham uma escala muito grande", aponta Souza. "No período dessa onda, é possível afirmar que a chikungunya chegou a provocar mais óbitos que a dengue na região", compara. "Ou seja, a frase correta para definir essa doença é 'a chikungunya causa muita dor — e também pode matar'", completa. A médica Claudia Marques, professora de reumatologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), viu na prática aquilo que foi descrito no trabalho recém-publicado. Ela conta que, no auge da crise do chikungunya em Recife no ano de 2016, a chegada de pacientes com queixas de dores na junta configurava um cenário "muito grave". "Naquela época, as pessoas faziam fila na porta do hospital. Elas estavam aflitas e sequer conseguiam andar direito", relata a médica, que não esteve envolvida na pesquisa publicada no The Lancet Microbe. "Depois desse período, não observamos mais ondas de casos por aqui. É como se o vírus 'esgotasse' um lugar e fosse para o outro", raciocina a especialista, que hoje recebe relatos parecidos ao que viveu em 2016 de colegas médicos que atuam em outras cidades, como Salvador e Fortaleza. "Eu mesma nem me lembro da última vez em que atendi um paciente com dores reumáticas relacionadas ao chikungunya por aqui", diz Marques, que também é gerente de ensino e pesquisa do Hospital das Clínicas da UFPE. A médica acrescenta que, com o passar do tempo, os próprios profissionais de saúde foram aprendendo a lidar com a fase crônica do chikungunya, quando a dor se prolonga por mais de três meses e impede o indivíduo de realizar as atividades diárias. "No início, pensávamos que a maioria dos acometidos tinha um quadro inflamatório e precisaria lidar com um tipo de artrite pelo resto da vida", pontua. "Hoje sabemos que a minoria vai desenvolver esses quadros inflamatórios, que exigem o uso de medicamentos imunossupressores." Segundo a reumatologista, metade dos pacientes infectados tem o quadro agudo de chikungunya, que dura 14 dias e depois melhora. Dos que continuam com sintomas após essas duas semanas, cerca de 30% evoluem para a forma crônica, em que os incômodos se prolongam por três meses ou mais. "Cerca de 95% desses pacientes com a forma crônica têm uma dor não inflamatória, que pode ser manejada por meio de alongamentos, fisioterapia e atividade física. Apesar do longo tempo de recuperação, que se estende por até dois ou três anos, é possível se recuperar", calcula Marques. Souza espera que a pesquisa sobre os dez anos do chikungunya no Brasil inspire mudanças nas políticas públicas para conter o vírus daqui em diante. Afinal, se casos de infecção foram confirmados em 60% dos municípios na última década, isso significa que o patógeno ainda pode se espalhar e causar surtos pelos outros 40% que estão livres até agora. "Provavelmente continuaremos a ver aquelas ondas epidêmicas nos próximos anos, que acometem pequenos bolsões de municípios dentro dos Estados", antevê o virologista. "Nossa ideia com esse trabalho foi justamente a de fornecer subsídios para que o governo possa determinar quais locais estão mais suscetíveis", complementa. Em outras palavras, a partir da análise de dados, as prefeituras, os governos Estaduais e até o Ministério da Saúde podem concentrar os esforços de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento naqueles lugares que ainda não registraram surtos (e estão pintados de branco ou com cores claras nos mapas). Outra ação possível, segundo Souza, é criar estratégias públicas para proteger os mais vulneráveis, como as mulheres adultas. Já que elas são mais atingidas, será que não é possível criar uma campanha de conscientização para controlar o Aedes aegypti no ambiente doméstico voltado a esse público? Ao eliminar qualquer reservatório de água parada — que serve de criadouro para o mosquito — é possível diminuir o risco não apenas de chikungunya, mas também de dengue e zika. "O Brasil é o país das Américas mais afetado pelo chikungunya. Num cenário em que ainda não temos remédios ou vacinas à disposição, precisamos de políticas públicas para prevenir os casos", conclui o pesquisador.
2023-04-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51qkvkz49no
brasil
Como bacalhau virou prato típico da Sexta-Feira Santa
Em seus quase 37 anos de sacerdócio, não foram poucas as vezes que o padre Eugênio Ferreira de Lima questionou o costume, tradicional em muitas famílias católicas brasileiras, de não comer carne vermelha na quaresma — alguns, apenas na Semana Santa; outros, exclusivamente na Sexta-Feira Santa, dia em que o protagonista à mesa costuma ser o bacalhau. “Sobretudo porque bacalhau é mais caro do que certas carnes”, disse Lima, em troca de mensagens com a reportagem da BBC News Brasil dias atrás. “Também não vejo sentido em fazer jejum ou não comer carne e não dar o que deixou de comer para os mais pobres. Às vezes me sinto uma voz isolada nesse sentido.” O questionamento levantado pelo religioso faz muito sentido, sobretudo em tempos de inflação, crise socioeconômica e volta do Brasil ao mapa da fome. Mas, ao mesmo tempo, é uma crítica que instiga: de onde veio o costume do bacalhau na sexta-feira que antecede à Páscoa? Para especialistas, é uma história longa em que não há uma única explicação. E, claro, tem suas raízes na influência de Portugal enquanto país colonizador do que depois se tornaria o Brasil. Outra parte da explicação está no fato de ser um produto que pode ser conservado por mais tempo sem refrigeração. “Quando o assunto é o ‘não se pode comer tal coisa’ e ‘é permitido consumir tais produtos’, a regra não é tanto baseada na questão econômica”, explica à reportagem o historiador André Leonardo Chevitarese, professor titular do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro ‘Jesus de Nazaré: O Que a História Tem a Dizer sobre Ele’, entre outros. “E o caso do bacalhau tem a ver com a colonização portuguesa.” Fim do Matérias recomendadas “A chave para pensar essa questão, se não é econômica, tem a ver com a questão religiosa. Por isso é tão tensa essa questão. Nem todo cristão faz jejum ou abre mão de comer carne vermelha durante a Semana Santa. O que leva alguém a consumir ou não carne vermelha diz respeito a olhares, formas de se ler teologicamente o que vem a ser o sacrifício de Jesus na cruz”, completa ele. É por isso que a abstinência de carne suscita comentários que vão desde o “a Igreja Católica proibiu sem base bíblica” aos que defendem que regulamentações oriundas de documentos ou da tradição católica estariam, sim, ancoradas pelos ensinamentos dos livros sagrados, como contextualiza Chevitarese, em “simbologias teológicas do ato do sacrifício de Jesus”. “Ou seja: eu não discutiria questões econômicas, mas pensaria em simbologias”, conclui ele. E aí há algumas questões que precisam ser levadas em conta: a prática do jejum, o simbolismo do peixe, o prazer de comer carne vermelha e, por fim, a disseminação do bacalhau no mundo lusitano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Tudo começa, na verdade, com o jejum”, afirma à BBC News Brasil a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Desde os primeiros séculos do cristianismo tal prática é observada, mas sem focar em um alimento específico. Até porque, na era primitiva do cristianismo, havia essa preocupação de romper com as práticas judaicas em alguns aspectos, embora a influência, do ponto de vista cultural, fosse mais que evidente. É na Idade Média que se começa a desenhar tal preceito.” Chevitarese ressalta que desde os primeiros cristãos já havia uma reflexão sobre “pensar o sacrifício de Jesus” experimentando alguma forma de abstinência. “A ideia de jejuar, de ter uma ascese, representaria, sob muitos aspectos, uma austeridade, um autocontrole diante dos prazeres humanos, sempre em dimensão ao sacrifício feito por Jesus na cruz”, pontua. O historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, ressalta que essa ideia de jejum, no catolicismo, está ligada ao sacramento da penitência, ou seja, um sacrifício feito para a remissão dos pecados. “No catolicismo, é um conceito que trabalha de modo muito forte com a ideia de reconciliação.” Ora, a quaresma é, por assim dizer, o momento perfeito para a ocorrência dessa experiência religiosa. “Porque é um período de perdão, de reconstrução. E é dentro dessa lógica toda que aparece a abstinência da carne, como um símbolo dessa vida que pede para ser reconciliada”, acrescenta Moraes. Afinal, a simbologia está na narrativa: a quaresma é o percurso que resulta na Páscoa. E a Páscoa, a festa da ressurreição, seria o ápice dessa história de renovação, essa possibilidade de que cada um se torne um novo ser humano. Moraes aponta que essa prática de abstinência não costuma ser seguida por cristãos protestantes, evangélicos ou de outras denominações. Segundo ele, a raiz dessa diferença está justamente na questão dos sacramentos — se para os católicos, são sete, incluindo a penitência ou arrependimento dos pecados, protestantes têm apenas dois: batismo e eucaristia. Mas se a ideia é jejuar, por que o peixe seria permitido? São muitas as explicações que, somadas, resultam numa unânime permissão. Em primeiro lugar, é preciso lembrar como peixes eram importantes no contexto do Jesus histórico, ou seja, no dia a dia daquelas comunidades do Oriente Médio de cerca de 2 mil anos atrás. Não à toa, os primeiros seguidores de Jesus são apresentados, nos evangelhos, como pescadores. “Ele tinha entre os discípulos, pescadores. É lógico que o peixe é um alimento importante na cultura judaica. Mas não há uma relação explícita, direta, [disso com a ideia da troca da carne pelo peixe]”, diz Moraes. O que há, lembra Chevitarese, é uma questão ortográfica. Peixe, no grego antigo, era ichthys. Os cristãos primitivos, naqueles tempos em que eram perseguidos por sua fé, decidiram usar o peixe como símbolo atribuindo à palavra um acrônimo: Iesous Christos Theou Yios Soter, que significa Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. “Assim, o consumo do peixe também passa por um conjunto de simbolismos, na experiência, na prática cotidiana de muitos cristãos”, argumenta o historiador. “As letras que compõem a palavra ichthys formam o sentido que está muito relacionado ao cristianismo”, afirma. “Este peixe é, por si só, simbolicamente algo que se remete a Jesus como salvador.” OK, havia a prática do jejum, já disseminada. E havia o hábito do peixe, acrescido da simbologia toda. Mas qual o problema com a carne vermelha, afinal? A teoria mesmo veio apenas no século 13, graças ao filósofo, teólogo e frade italiano São Tomás de Aquino (1225-1274), um dos grandes pensadores do mundo medieval. “Quando ele prescreveu uma orientação aos fiéis a respeito do jejum, apontou a carne como um dos alimentos mais prazerosos, juntamente com os laticínios”, conta Medeiros. “Fez isso porque o jejum era concebido como o ato de se abster de algo que mais se gostava, não necessariamente privar-se de carne. Mas a carne, em si, por satisfazer o prazer do paladar, estava muito associada à luxúria, aos pecados sexuais, comumente chamados de ‘pecados da carne’.” “A teologia [da abstinência de carne vermelha] foi trazida por Tomás de Aquino”, concorda Chevitarese. Medeiros atenta para a recorrência de exemplos que confirmam essa ideia. Por exemplo, a regra de São Bento, documento atribuído ao monge São Bento de Núrsia (480-547) e que rege a ordem beneditina. “Exigia que os monges só comessem carne em caso de necessidade extrema ou por questão de saúde”, afirma a estudiosa do catolicismo. Ela conta que o tema foi muito debatido em sínodos da Igreja ao longo de séculos. “Foi colocado em questão, inclusive, se a carne moída e o presunto poderiam ser consumidos no lugar da carne [em si] porque, uma vez triturados, teriam perdido suas propriedades ‘carnosas’”, exemplifica Medeiros. “Por fim, na Idade Média, os fiéis observavam o chamado ‘jejum magro’, que previa a abstinência de carne em várias épocas do ano, incluindo na sexta-feira”, conta a pesquisadora. A regra atual consta de dois documentos do Vaticano: o Código de Direito Canônico de 1917 e a Constituição de 1966, do papa Paulo VI (1897-1978). Não são poucos os artifícios retóricos que buscam explicar a diferença entre carnes de diversos bichos, de modo a autorizar o consumo do peixe e proibir o de outros animais, por exemplo. “Há o elemento do peixe como uma carne cujo sangue é frio, em detrimento ao sangue quente da carne vermelha dos bovinos e do frango”, comenta Chevitarese. As nuances não são muito claras tampouco na hora de definir o que é um peixe ou não. Nesse sentido, a religião não necessariamente bebe nas fontes da ciência. “Na tradição judaica, o peixe seria o animal que tem escama e barbatana. Embora consideremos peixes muitos outros animais marinhos que não necessariamente tenham escama e barbatana”, explica o historiador. Ele relata que já se deparou com entendimentos bastante afrontosos ao conhecimento taxonômico. “Por exemplo, em Nova Orleans [nos Estados Unidos] houve um bispo que disse que jacaré deve ser considerado um peixe. Então os católicos de lá podem comer carne de jacaré na Sexta-Feira Santa”, conta. “Tem culturas que encaram a capivara como peixes, então católicos podem comer capivara na quaresma. E em Quebec [no Canadá], um bispo disse que castores também são peixes…” “Então, a regra varia muito sobre o que é peixe (no âmbito religioso), como definir o que é peixe…”, acrescenta ele. “Há muitas brechas.” “Não há nenhuma prescrição da Igreja sobre o uso do bacalhau”, frisa Medeiros. Ela vai direto ao ponto: a tradição pegou no Brasil “simplesmente porque fomos influenciados pelos costumes portugueses”. Ora, pois… “Eles trouxeram a iguaria para cá no século 19. Por ser considerado um peixe de longa conservação, muitos fiéis o consumiam durante toda a quaresma”, acrescenta ela. Aí parece estar o pulo do gato — ou o salto do peixe. Em tempos anteriores à invenção da geladeira, sobretudo em que a quaresma ocorre no verão, como o Brasil, era preciso facilitar essa ideia de comer peixe. Como o bacalhau costuma ser curado, em um processo com adição de sal e desidratação, ele é um produto que pode ser conservado por mais tempo sem refrigeração. Em resumo: não foi por fé no bacalhau, foi por puro pragmatismo. O historiador Chevitarese explica que o consumo do bacalhau foi trazido ao Brasil com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. Aos poucos, a iguaria começou a estar disponível nos famosos empórios de secos e molhados. “A lógica da penitência impõe ao fiel que ele obedeça, de livre e espontânea vontade, a um momento penitencial importante”, enfatiza Moraes. “A Páscoa é uma excelente oportunidade para isso. Na Sexta-Feira Santa, então, o sujeito faz essa substituição [da carne pelo bacalhau], que é uma coisa histórica, tradicional.” “Somos um país criado sob a influência do catolicismo, então essa observância dos fiéis católicos vem desde a época da colonização e é algo muito evidente, ancorado pela orientação dos padres daqui. E o peixe [o bacalhau] apareceu como uma tradição da própria corte portuguesa”, diz ele. O teólogo sintetiza: se o ritual da abstinência veio com a colonização, a prática se acentuou com a chegada da corte portuguesa ao Rio. “Então o bacalhau, com praticidade de algo que fazia parte da culinária portuguesa e não se estragava com facilidade, foi inserido. E aquilo foi sendo ressignificado ao longo do tempo”, comenta. Sim, porque com todos os ingredientes, é a hora de lembrar da frase bíblica que apregoa que as coisas de Deus devem ser deixadas a Deus e as coisas de César, a César. Porque o deus mercado é capaz de fazer perpetuar as mais diversas tradições inventadas… “O consumo do bacalhau, trazido pela corte, caiu no gosto do brasileiro. Vivemos num modo de produção capitalista e quando algo cai no gosto da prática mercantilista comercial, tudo vira mercadoria: tem gente que vende e gente que consome”, reflete Moraes. “Então está aí: ficou sendo uma prática muito explorada até hoje. E os vendedores de peixe agradecem.”
2023-04-06
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